A primeira dificuldade que se encontra ao tentar resenhar uma obra de Friedrich Kittler diz respeito à sua fama: por um lado, Kittler é, a um só tempo, pai fundador, figura chave e enfant terrible da chamada teoria da mídia, conhecido e lido tanto nos departamentos de literatura, comunicação e arte alemãs quanto nas hard sciences aplicadas, como computação e engenharia. Por outro, é razoavelmente desconhecido nos departamentos de humanidades, que o originaram e para quem, no fundo, Kittler escrevia. Kittler é conhecido o bastante para prescindirmos de uma introdução? Tanto para as humanidades quanto para os estudos da Internet, este resenhista acredita que não.
Sua obra é comumente dividida em três fases. Nascido no final da Segunda Guerra Mundial e falecido em 2011, Friedrich Kittler, influenciado pela teoria francesa dos anos 60, começou sua carreira como crítico literário, passando pelo estudo das mídias analógicas, depois para a gênese do computador e, por fim voltou à Grécia Arcaica para investigar a relação entre os deuses, o alfabeto e a matemática, numa espécie de gênese do ocidente sob perspectiva tecnológica. Gramofone, Filme, Typewriter é considerada sua obra mais conhecida. À notável exceção de Aufschreibesysteme, com a publicação desta obra no Brasil graças aos esforços de Adalberto Müller (UFF) e Erick Felinto (UERJ) junto às editoras da UERJ e da UFMG, o leitor brasileiro dispõe do principal corpus kittleriano em português, complementando Mídias Óticas e A verdade do mundo tecnológico, lançados entre nós pela editora Contraponto. Sua obra, porém, não tem recebido a atenção que merece, talvez por conta de sua interdisciplinaridade sui generis, mistura de literatura, história militar, computação, matemática e teoria pós-estruturalista. Por essas mesmas razões, é difícil escolher uma porta de entrada para acessá-la. Uma alternativa é começar como o próprio Kittler costumava começar: pela literatura.
Além disso como é que você ia poder lembrar de todo mundo? Olhos, andar, voz. Bom, a voz, sim: gramofone. Ter um gramofone em cada túmulo ou deixar em casa. Depois da janta num domingo. Coloque o coitadinho do bisavô Craahraarc! Oioioi toumuitcontent craarc toumuitcontentderrevervocês oioi toumuitr crptschs. Lembrar a voz que nem uma fotografia lembra o rosto. Senão não dava pra lembrar do rosto depois de quinze anos, digamos (Joyce, 2012, p. 243).
Neste capítulo de Ulysses, quando Leopold Bloom divaga sobre os muitos mortos no cemitério de Dublin, o gramofone aparece como condição da memória. A voz do vovô não sai limpa, mas é entrecortada pelo ruído do gramofone. A cena joyceana ajuda a entender uma típica tese kittleriana que será desenvolvida em Gramofone, Filme, Typewriter: “O que permanece das pessoas é aquilo que a mídia é capaz de registrar e transmitir. Portanto, o que conta não é a mensagem ou o conteúdo (…), mas sim seus circuitos, sobretudo esse esquematismo de perceptibilidade” (Kittler, 2019, p.19). Kittler investiga não a mensagem que sai das mídias – a voz do vovô –, mas sim a voz entremeada ao ruído do aparelho. Em outras palavras, Kittler investiga como, por que, a que finalidade, e quais as consequências de as mídias possibilitarem vozes, textos e imagens serem mecanicamente reproduzíveis, ou seja, prescindirem das pessoas.
Friedrich Kittler não fornece teorias. Como seu predecessor Michel Foucault e, antes dele, Friedrich Nietzsche, Kittler desenha genealogias. Em seu caso, genealogias do desenvolvimento de processamento, armazenamento e transmissão de informação. De mídias, portanto. Mídias tornam algo possível de ser escutado, lido e visto. Kittler elenca as três do título como as principais a transformarem o século XX. Contudo, sua história – e esse é um dos principais pontos de Kittler – não se presta à hermenêutica. Ela é uma histórica técnica, impossível de ser extraída como se extrai sentido de um texto, pois ocorrem no limite da perceptibilidade humana, no interior da “caixa-preta”, no termo consagrado de Vilém Flusser. Assim, os personagens do livro de Kittler não são filósofos que abstrairiam o gramofone em ideias e discursos, mas inventores, cientistas e escritores-testemunhas do impacto das mídias nas relações sociais, psicológicas e literárias entre as pessoas.
Por que esses três aparatos, o gramofone, o filme e a máquina de escrever? Dentre as muitas razões, porque são as três mídias que, pela primeira vez desde a invenção do alfabeto, quebram o monopólio da escrita, monopólio este o qual, na filosofia e na teoria crítica, se confunde com a modernidade. Ao quebrarem o monopólio da escrita, o gramofone, a película/câmera de cinema e a máquina de escrever fragmentam a informação em incompatíveis fluxos acústicos, visuais e escritos. Pela primeira vez, as pessoas (não) se reconhecem em mídias que registram a natureza e os corpos humanos de forma não-hermenêutica, automática e técnica.
O gramofone possibilita o armazenamento e a reprodução de ruídos e sons por meio de uma agulha que converte ondas sonoras em riscos num cilindro. O filme, a película cinematográfica e o cinematógrafo permitem o registro da luz – condição primeira da visão – em soluções químicas, que por sua vez produz a ilusão de imagens – corpos e natureza – em movimento. E a máquina de escrever substitui o fluir da escrita caligráfica por símbolos discretos no teclado, transformando a tradicional sensualidade da escrita cursiva em perfurações no papel, escancarando a materialidade que, no período anterior, era essencializado em espírito e sentido. Se, durante a Galáxia de Gutemberg, todo o fluxo sensorial da sociedade precisava passar pelo funil do significante para ser transmitido e percebido, agora outros sentidos humanos ganham autonomia técnica. São esses os traços o que “sobram” das pessoas. Sons, imagens e palavras – toda a memória humana – agora prescindem de signos: a natureza se armazena e assombra. À despeito de Aby Warburg, a história das mídias analógicas, para Kittler, é a primeira história de fantasmas.
O fim da Galáxia de Gutenberg é revelador. Como sistema simbólico, a escrita depende de pessoas para fazer sentido. Não se inscreve a si mesma (até a chegada do computador), nem fornece acesso direto à natureza. Da perspectiva nietzschiana de Kittler, seres humanos são programas decodificadores de signos em sentido. O gramofone e o filme, ao contrário, sobrepujam (override) esse programa ao enganarem diretamente os sentidos humanos. O ouvido decodifica automaticamente ruído em sentido, e o olho decodifica o corte em movimento no tempo. É uma ilusão, mas uma que sugere, para Kittler, uma profunda conexão entre a tecnologia e o corpo/o inconsciente.
Daí o influente movimento kittleriano de associar as três mídias de seu título às categorias lacanianas do real, imaginário e simbólico. Na verdade, essa associação é mais que mera analogia, mais que uma relação abstrata: para Kittler, o gramofone, o filme e a máquina de escrever revelam o a prori material das categorias lacanianas, que seriam impensáveis de outra forma. O modelo material do pensamento é o que Kittler busca trazer à luz.
Na máquina de escrever, escancara-se o sistema simbólico que fundamenta a escrita, antes oculto pela sensualidade da caligrafia. Símbolos dispostos no teclado revelam que a escrita, apesar da literatura, nunca passou de um código. Ela não armazena, ela “representa” os sons da língua por meio de símbolos. A queima da luz em películas sensíveis, que permite o humano se reconhecer, e se estranhar, por seus corpos decepados por cortes e close-ups dão ao filme e ao cinema o mesmo status do “imaginário”. O resto, o arbitrário fisiológico, o ruído da matéria, como o que a laringe humana produz no milissegundo anterior à formação de palavras, dão ao gramofone o status de real. Assim, tais traços humanos são manipulados, armazenados e reproduzidos – não mais apenas a linguagem humana. Pela primeira vez, as pessoas têm contato consigo mesmas em formas esquartejadas, fantasmáticas. O espírito humano (Geist) torna-se materialmente transmissível.
Essa exposição um pouco minuciosa dos principais movimentos kittlerianos serve apenas para dar uma ideia das questões principais presentes em Gramofone, Filme, Typewriter, em particular, e da teoria da mídia, no geral. Sendo seu meio, mídias para Kittler são também o pressuposto de toda compreensão e autocompreensão humana. O problema é que elas ocultam seus métodos, seus “esquematismos de perceptibilidade”: o gramofone reproduz ruído, porém entendemos como “vozes”. O filme contém luz, mas enxerga-se corpos em movimento no tempo. A máquina de escrever martela letras, mas lemos sentido e texto. Esse limite entre a materialidade brutal e o mundo humano é, para Kittler, “o limite da compreensibilidade” sob o qual as mídias operam. Daí que a loucura, a absurdez, a falta de sentido, a patologia – tudo humano que foge à normalidade – são os objetos de pesquisa científica onde Kittler identifica a descoberta do discurso de normalidade que as mídias precisam reproduzir.
O método de Kittler consiste, como comentou Eva Horn (2012), mais em decifração que em hermenêutica: leituras entrecruzadas de textos técnicos, teorias científicas, psicanálise, plantas de produção, psicofísica e, sempre, textos literários. Thomas Edison, Alan Turing, documentos de empresas de máquina de escrever e escritores e filósofos como Reiner Maria Rilke, Carl Schmitt, Martin Heidegger e outros que registraram experiências com tecnologias emergentes. Em Kittler, tudo isso vira código a ser decifrado como informação acerca da relação humano – tecnologia. A heterogeneidade das fontes kittlerianas são uma verdadeira planta de montagem do século XX que, por sua vez, ao final da leitura, com Alan Turing e a conversão de todo fluxo de informação em dígitos e eletricidade, aparece como um ensaio para o século XXI.
Pois Gramofone, Filme, Typewriter termina com a gênese da tecnologia digital. Através de uma discussão sobre a máquina universal de Alan Turing e Von Neumann, Kittler completa o arco, que começou com a quebra do monopólio da escrita, com a reunião dos fluxos de informação acústico e visual na linguagem binária de 0 e 1. O digital representa a redução da natureza a um tipo de escrita que é capaz de emular matematicamente todas as outras mídias e sentidos. Se o significante era a mídia universal, o computador concretiza essa potencialidade de forma automatizada ao permitir que ele escreva a si mesmo. O preço a se pagar, para Kittler, é o desaparecimento do hardware em interface e sensualidade, uma espécie de novo romantismo, porém gerido por corporações, altamente lucrativo e com infinitas possibilidades de controle, como sabemos.
Tal história ocorre na tensão entre dois grandes polos kittlerianos: a guerra e o entretenimento. Mesmo a reconhecida influência da obra de Paul Virilio em Kittler não dá conta do que Kittler tirou da história militar. Nada mais distante de sua obra do que a ideia de que tecnologias, que hoje servem à comunicação e ao entretenimento, sejam criadas para melhorar a vida humana: nunca passaram de instrumentos de guerra. Especial atenção é dada a Alan Turing, Claude Shannon, dedicados a melhorarias técnicas de transmissão e interceptação de sinais em contexto bélico. Essa é, para Kittler, a história da indústria de entretenimento a partir da guerra. O entretenimento não é estudado por seu conteúdo, mas em sua possibilidade técnica de visualidade, como um entrecruzamento de discursos de poder e tecnologias:
Um compromisso entre engenheiros e vendedores é o que regula o quão ruim pode ser o som na televisão, o quanto a imagem de um filme pode ser trêmula ou o quanto uma voz amada é filtrada ao telefone. A variável dependente deles são as nossas percepções sensoriais (Kittler, 2019, p. 23).
Uma das muitas possibilidades de leitura da obra kittleriana é como uma arqueologia do entretenimento, que começa na guerra e termina com um ser humano entubado: olhos colados a telas, comidas processadas na boca, fones de ouvido, tudo servindo “para ocultar um fundo real: ruído, noite, frio de um exterior insuportável. Por outro lado, há música de elevador, cinema de bordo e forno de micro-ondas (Kittler, 2019, p. 23).
Em resumo, a história da mídia kittleriana é uma espécie de negativo do “ser humano” entendido como traços materiais no tempo e no espaço. O arco de Gramofone, Filme, Typewriter, como os mísseis V-2 que caem sobre Londres no romance O arco-íris da gravidade, de Thomas Pynchon, termina em queda. Essa anti-humanismo tecno-determinista é a base das críticas comumente dirigidas a Kittler. Mas é possível entender Kittler de outras formas que não essa, demasiadamente filosófica. Por exemplo, pode-se considerar que Kittler, com seu estilo apocalíptico, humorístico e farpado, buscava uma forma de contar histórias à altura da impenetrabilidade de seus objetos, por meio de um estilo que corta a densa camada de séculos de inocência humanista a respeito da tecnologia.
Hans Ulrich Gumbrecht chamava seu amigo Friedrich Kittler de mitógrafo: um criador e registrador de mitos, alguém que se ocupa dos fundamentos até então inexplorados de uma cultura. Como no estudo estruturalista da mitologia, a mitografia de Kittler é a de alguém que desenha a linha de batalha entre a natureza e a cultura, uma linha além da qual os mitos lembram que não se deve ir, mas não nos deixam esquecer que existe. A obra de Kittler fornece um valoroso material para entendermos nossa atual situação midiática, não apenas nos obrigando a pensar em como a Internet veio a ser, mas também insistentemente nos lembrando do Outro da tecnologia: o ser humano, que, apesar de tudo, ainda existe em formas outras que a da propaganda do Vale do Silício: “usuário”. É difícil minimizar o chamado às armas presente em sua obra. Ao trazer à luz uma história até então oculta, Kittler fornece uma poderosa ferramenta para à crítica do capitalismo global: não só capital, dinheiro, força e trabalho, mas também mídia.
Referências
Horn, E. (2012). “Maschine und Labyrinth. Friedrich Kittlers ‘Aufschreibesysteme 1800. 1900’”. In: Kittler, Friedrich. Technik oder Kunst?. Wetzlar: Büchse der Pandora, pp. 13-23
Joyce, J. Ulysses (2012). Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras.
Kittler, F. A. (2019). Gramofone, Filme, Typewriter. Belo Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: Ed.UERJ