<span class="sans">Os artilheiros que estão faltando no time da inteligência artificial: </span>Big Data, o direito fundamental à pesquisa, e as (insuficientes) limitações para mineração de textos e dados na Diretiva (UE) 2019/790 relativa aos direitos de autor no mercado único digital.

↘ Tradução
↘ Tradução

tradução por
Christophe Geiger

download da versão pdf ↓
volume 3 ⁄ número 2 ⁄ dez 2022 ↘ Tradução

Os artilheiros que estão faltando no time da inteligência artificial: Big Data, o direito fundamental à pesquisa, e as (insuficientes) limitações para mineração de textos e dados na Diretiva (UE) 2019/790 relativa aos direitos de autor no mercado único digital.

Christophe Geiger

Resumo

Este artigo propõe que as recentes estratégias da União Europeia no campo da Inteligência Artificial (IA) se assemelham a um time de futebol que não dispõe de um artilheiro para vencer qualquer uma das competições com outras jurisdições que possuem limitações mais flexíveis aos direitos autorais, em particular aquelas que permitem uma robusta mineração de textos e dados (TDM). Analisam-se aqui as limitações de TDM recentemente introduzidas na legislação europeia em direitos autorais pela diretiva relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital, de modo a demonstrar que essas disposições não apenas falham ao levar em conta o direito à pesquisa alicerçado no direito fundamental à informação, como também não permitirão que a União Europeia crie um ambiente competitivo para o desenvolvimento de inovações em IA e aquelas intensivas em dados. O artigo conclui pela necessidade de uma revisão imediata da estrutura dos direitos de autor para as atividades de TDM na UE e, no plano internacional, da implementação da diretiva pelos Estados-Membros que esteja em conformidade com o arcabouço dos direitos fundamentais da UE e com o objetivo estabelecido pelos legisladores europeus.

Em 19 de fevereiro de 2020, a Comissão Europeia anunciou uma ambiciosa estratégia digital para a União Europeia, definindo, em duas comunicações, os objetivos a serem atingidos – uma sobre o futuro digital da Europa1 e outra sobre dados2, ambos complementados pelo White Paper sobre inteligência artificial3. Ao ler estes documentos estratégicos, seria de se esperar que fosse finalmente elaborado um quadro jurídico sólido e ponderado para o ambiente digital e que as políticas da UE nesta área constituíssem, no futuro, mais do que uma simples colcha de retalhos de interesses setoriais. Com efeito, no que diz respeito à revolução que a tecnologia digital trouxe a muitos setores da UE, lê-se:

Esta profunda transformação da sociedade apela a uma reflexão de fundo a todos os níveis sobre a melhor forma de a Europa responder a estes riscos e desafios. As dificuldades serão enormes, mas a Europa dispõe, inquestionavelmente, dos meios necessários para concretizar um futuro digital melhor para todos4.

Ou: “Criar uma Europa preparada para a era digital é um quebra-cabeças complexo, cujas diversas peças estão interligadas; tal como em qualquer quebra-cabeças, só é possível ter uma visão do conjunto uma vez inseridas todas as peças”5. A vontade de finalmente modernizar e adaptar o quadro jurídico da propriedade intelectual (PI) aos desafios colocados pelo ambiente digital foi reiterada no plano de ação da Comissão Europeia sobre a PI, publicado no final de novembro de 2020, onde se destacou que:

A revolução tecnológica – a economia e a sociedade dos dados, a transição para a inteligência artificial (IA), a importância crescente das novas tecnologias como a tecnologia das cadeias de blocos, a impressão 3D e a Internet das Coisas, bem como o desenvolvimento de novos modelos de negócios como a economia das plataformas e a economia de dados e a economia circular – oferece uma janela de oportunidade única para modernizar a nossa abordagem de proteção dos nossos ativos incorpóreos6.

Em resumo: uma reflexão horizontal sobre as questões digitais é desejada pela Comissão Europeia antes de se (re)definir as regras do jogo por meio de uma legislação adequada. No entanto, em um exame mais atento, nem no plano de ação proposto, nem na agenda de implementação para essas estratégias, aparece qualquer questionamento sobre os espaços livres deixados pela legislação em PI para permitir o desenvolvimento de um ecossistema digital equilibrado na UE7. A questão também foi totalmente ignorada pela Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (regulamento inteligência artificial) e altera determinados atos legislativos da União, publicada em 21 de Abril de 2021, apesar do fato de um dos principais objetivos propostos pela Comissão Europeia ser o de “garantir a segurança jurídica para facilitar os investimentos e a inovação no domínio da IA”8. A menos que a Comissão considere que a ques- tão já foi resolvida, nomeadamente pela diretiva de 17 de abril de 2019 relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital (Diretiva 2019/790)9, é difícil entender como uma reflexão horizontal sobre inovação digital pode ser conduzida sem incluir grande parte do direito digital, como o direito autoral (incluindo suas limitações e exceções) e a propriedade intelectual em geral10. Ainda pior, é provável que as soluções que foram adotadas anteriormente na Diretiva 2019/790 estejam em contradição direta com os objetivos agora apresentados, e que, como resultado, as muitas ambições recentemente apresentadas provavelmente permaneçam letra morta.

Muitos exemplos poderiam ser fornecidos, mas gostaríamos de destacar apenas um nesta contribuição: uma política proativa no campo da inteligência artificial e da inovação digital exige, sem dúvida, propor um quadro jurídico moderno que reconheça o risco de obstáculos ou proibições injustificados para o desenvolvimento da inteligência artificial na União Europeia11. Nesse contexto, sabe-se que para permitir o aprendizado de máquina, essencial à inteligência artificial, é necessário ter exceções robustas para mineração de textos e dados para que a máquina possa reproduzir, armazenar e processar dados existentes e propor novas soluções12. A questão também é bastante atual no campo da saúde pública, porque é óbvio que grandes estoques de dados sobre a COVID-19 precisam ser processados ​​e analisados ​​em nível global para permitir o desenvolvimento de novos tratamentos13.

A mineração de textos e dados tornou-se, de fato, uma ferramenta fundamental para a pesquisa, seja aquela realizada por órgãos públicos ou por agentes privados14. Contudo, como foi argumentado por Bernt Hugenholtz e outros15, a solução proposta pela diretiva de 2019 é amplamente inadequada; é muito restritiva no que diz respeito às exceções para mineração de textos e dados. Assim, para usar uma analogia “futebolística”, a estratégia de Inteligência Artificial da União Europeia pode se assemelhar a um time de futebol que ficaria sem atacantes para marcar gols com sucesso e vencer qualquer uma das competições com outras jurisdições que possam ter a vantagem de disposições legais mais flexíveis, que permitam atividades mais abrangentes de TDM.

Por que este é o caso? Voltemos rapidamente às duas exceções introduzidas na legislação europeia pela diretiva de 2019. Em primeiro lugar, deve-se notar que a Comissão Europeia claramente não entendeu, no início, a importância das exceções de mineração de textos e dados para o desenvolvimento da inteligência artificial. É certo que a proposta de diretiva de 14 de setembro de 201616 previu uma exceção mandatória17, permitindo a mineração de textos e de dados, que não poderia ser afastada por contratos18. Contudo, foi limitada às “[…] reproduções e extrações efetuadas por organismos de investigação para a realização de prospecção de textos e dados de obras ou outro material protegido a que tenham acesso lícito para efeitos de investigação científica”19. Essas organizações beneficiárias foram compreendidas de forma restritiva, uma vez que o Considerando 11 especificou que:

[…] os organismos de investigação dos Estados-Membros têm geralmente em comum o fato de agirem sem fins lucrativos ou no âmbito de uma missão de interesse público reconhecida pelo Estado. Esta missão de interesse público pode refletir-se, por exemplo, no financiamento público, em disposições da legislação nacional ou em contratos públicos20.

Isso abrange apenas organizações de pesquisa e universidades públicas (ou aquelas que realizam uma missão de serviço público).

Mas o que dizer das importantes atividades de pesquisa conduzidas por startups que operam no ambiente digital, que são a fonte de importantes inovações, particularmente no domínio da inteligência artificial, e cujo potencial de crescimento foi fortemente visado na nova estratégia da Comissão?21 As startups não foram consideradas e, portanto, suas atividades de mineração de dados permanecem sujeitas aos direitos exclusivos. Em linhas semelhantes, o que dizer das parcerias público-privadas tão incentivadas na apresentação de candidaturas em concursos para a União Europeia? É certo que o considerando 10 afirma, de forma relativamente vaga, que “os organismos de investigação devem também beneficiar da exceção ao participarem em parcerias público-privadas”, sem, contudo, explicar como isso funcionaria. Isso sem contar os pesquisadores individuais sem vínculo com uma instituição, cujas atividades também não são contempladas, e os jornalistas que, por definição, trabalham para estruturas privadas, que também não se beneficiarão da exceção.

Esta situação é altamente problemática em termos de direitos fundamentais e, em particular, no que diz respeito ao direito à pesquisa. De fato, o direito à pesquisa tem uma forte base nos direitos humanos e é protegido em âmbito internacional, europeu e nacional22. Baseado no direito à informação, inclui o direito ativo de buscar informações efetivas e objetivas por meio do uso de fontes existentes, o que implica na capacidade de utilizar legalmente, no ambiente digital, técnicas de mineração de textos e dados para a realização de pesquisas23. Para os jornalistas, é de crucial importância, pois certas investigações só são possíveis hoje por meio da mineração, em larga escala, de textos e dados. A título de exemplo, há que se recordar do escândalo dos “Panama Papers”, que evidenciou uma evasão fiscal em larga escala de políticos, bilionários, celebridades e desportistas de alto nível, e que só pôde ser revelado através da busca e mineração de informações e de técnicas de busca automatizada, de mais de um milhão de documentos bancários de offshores.

Ao restringir desta forma o escopo da exceção, a Comissão correu o risco de criar uma disposição ineficaz e, portanto, rapidamente obsoleta, notadamente no que diz respeito ao desenvolvimento da inteligência artificial, mas também quanto a outras atividades de investigação e inovação essenciais e que não são conduzidas por entidades públicas. Isso é especialmente verdadeiro porque a proposta de diretiva só permitiu que organizações de pesquisa buscassem textos e dados “sobre obras ou outros assuntos aos quais tenham acesso legal para fins de pesquisa científica”, o que parece excluir grande parte da pesquisa on-line, na medida em que a licitude das fontes permaneceria incerta24.

Por todas estas razões, a proposta de diretiva foi alvo de muitas críticas durante a fase parlamentar25, levando a mudanças em seu texto final26. Como resultado, o círculo de beneficiários da exceção foi estendido às “Instituições responsáveis pelo patrimônio cultural”, que, de acordo com o considerando 13 da diretiva, inclui, principalmente, bibliotecas, museus e arquivos27. Além disso, foi incluída a possibilidade de armazenar obras para fins de busca e mineração, o que é importante porque pesquisa leva tempo: deve, portanto, ser possível voltar às obras em que os dados estão contidos sem ter que reproduzi-las todas as vezes. Por último, foi introduzida uma nova exceção no corpo da diretiva, em que “Os Estados-Membros devem prever uma exceção ou limitação aos direitos previstos […] a fim de permitir a utilização digital de obras e outro material protegido…”28. O objetivo da introdução de um novo dispositivo era claramente responder às críticas dirigidas ao texto inicial e permitir aos Estados-Membros prever uma exceção para os casos não abrangidos pelo artigo 3 da diretiva, nomeadamente para autorizar a mineração de textos e dados para entidades excluídas do escopo do artigo 3. Isso decorre claramente do considerando 18 da diretiva 2019/790, que afirma que:

[…] Para além da sua importância no contexto da investigação científica, as técnicas de prospecção de textos e dados são amplamente utilizadas, tanto pelas entidades públicas, como privadas para analisar grandes quantidades de dados em diferentes domínios da vida e para vários fins, nomeadamente para serviços públicos, decisões empresariais complexas e para o desenvolvimento de novas aplicações ou tecnologia.

Essa nova disposição seria um grande avanço se a exceção não tivesse sido acompanhada de um mecanismo de “opt-out”, permitindo aos titulares de direitos reservar expressamente a utilização de obras “[…] de forma adequada, em particular por meio de leitura ótica no caso de conteúdos disponibilizados ao público em linha”29. Ao condicionar a nova exceção à boa-fé dos titulares de direitos, corre-se o risco de inviabilizar esta exceção na prática, uma vez que a sua eficácia dependerá da implementação (ou não) do “opt-out”30.

O objetivo do legislador foi o de levar em conta os interesses legítimos dos titulares de direitos e, em particular, dos produtores de bases de dados, também abrangidos pela exceção, que têm interesse em impedir a superexploração das suas bases de dados que seriam afetadas pela disposição31. No entanto, se a intenção fosse promover a pesquisa e, em particular, criar um arcabouço legal que estimulasse a inovação, seria possível sujeitar as atividades de mineração de textos e dados exploradas para fins comerciais a um direito à remuneração32. As incertezas criadas pela diretiva a esse respeito, que se repetirão na fase de transposição a nível nacional33, podem conduzir a um grande atraso para a Europa no desenvolvimento de novas tecnologias e no campo da inteligência artificial34, enquanto, em outros lugares, essas atividades com alto potencial de inovação possivelmente já estão cobertas por normas abertas, como o uso justo (“fair use”)35, ou exceções mais flexíveis36. Isso sem mencionar o fato de que o legislador europeu também achou por bem especificar que o famoso teste dos três passos é aplicável às duas exceções recém-criadas37, bem como o enigmático artigo 6(4) da diretiva InfoSoc, de 200138, que, recorde-se, visa à resolução de conflitos entre usuários e titulares de direitos em caso de implementação de “medidas técnicas de proteção” (MTP), mas que ainda hoje permanece incerto na sua compreensão e aplicação39. Por último, ainda que o escopo das exceções tenha sido ampliado, muitas questões pendentes no âmbito da proposta de diretiva permanecem, no texto final, por resolver, dando origem a uma grande insegurança jurídica sobre as atividades de mineração de textos e dados, correndo, assim, o risco de prejudicar a competitividade da União Europeia como espaço de pesquisa e de criatividade no cenário mundial40.

Em suma, se a ambição da Comissão é propor uma política proativa que posicione a União Europeia na vanguarda da inovação digital e da inteligência artificial, receia-se que tal tarefa se revele simplesmente impossível se o debate sobre o alcance das exceções de mineração de textos e dados não for reaberto, com urgência, em um futuro muito próximo41. O impulso pode vir da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, que recentemente abriu uma grande consulta sobre a propriedade intelectual e a inteligência artificial, incluindo o tema da mineração de textos e dados42. Nesse contexto, estudiosos convidaram a OMPI a assumir a liderança nessa área, por exemplo, por meio de uma proposta legislativa destinada a criar uma nova exceção aos direitos autorais no modelo do Tratado de Marrakesh43. Fundamentalmente, isso só será possível se repensarmos o pressuposto subjacente e, ainda, amplamente aceito, de que apenas fortes direitos exclusivos podem servir à inovação e à criatividade, e reconhecendo que limitações e exceções podem, igualmente, desempenhar essa tarefa44.

Christophe Geiger cgeiger@luiss.it

Professor de direito da Universidade Luiss Guido Carli, em Roma.