<span class="sans">Expressões culturais tradicionais e acesso aberto: </span>uma postura ética diante de um conflito

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Nanashara Ferreira Piazentin Gonçalves

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volume 3 ⁄ número 2 ⁄ dez 2022 ↘ Artigo

Expressões culturais tradicionais e acesso aberto: uma postura ética diante de um conflito

Nanashara Ferreira Piazentin Gonçalves

Resumo

O sistema de propriedade intelectual existente é baseado em conceitos e valores ocidentais, e nem sempre protege adequadamente o grande léxico de expressões culturais tradicionais, nem manifesta de forma suficiente os valores de culturas que muitas vezes são baseadas em uma perspectiva de compartilhamento e coletividade, que entendem noções de criatividade e custódia sobre a sua herança cultural de uma forma comunitária. Porém, quando se está diante da disponibilização do bem cultural em um formato digital e de aberturas de conteúdos advindos dessas expressões culturais tradicionais, é comum ocorrerem tensões e conflitos sobre usos e apropriações desses conteúdos por terceiros. Dessa maneira, este artigo busca compreender como o acesso aberto pode ser utilizado de forma ética e respeitosa quando se está tratando da difusão de Expressões Culturais Tradicionais em um ambiente digital.

1. Introdução

A Internet e a sociedade informacional possibilitaram um acesso à informação e a conhecimentos nunca antes imaginados. A informação é o ponto central das transformações dos últimos tempos, que se destaca pela emissão e acesso de determinado conteúdo. A informação aplicada na lógica das redes e a partir das novas tecnologias de informação e comunicação é capaz de gerar mais conhecimento em todos os campos da atividade humana, o que faz com que a sociedade informacional se sobressaia em relação a outros momentos históricos da humanidade.

A IBM estima que o mundo atual produz em dados mais de 2.5 quintilhões de bytes por dia (Bhaskar, 2020). Porém, ao mesmo tempo que a Internet permite um amplo acesso ao conhecimento, também cria um ambiente em potencial para o uso indevido desse conhecimento, principalmente quando estamos diante de conhecimentos e expressões culturais tradicionais.

As Expressões Culturais Tradicionais (ECTs) são, de acordo com a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO, de 2005, as expressões “que resultam da criatividade de indivíduos, grupos e sociedades e que possuem conteúdo cultural”. Aqui se entende uma ampla gama de expressões que vão desde saberes tradicionais indígenas, folclore, danças e rituais ligados a uma comunidade tradicional, artesanato e artes visuais, além de todo um conjunto de expressões que podem ser entendidas como características de um povo ou comunidade.

De acordo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), prevista no Decreto n. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) são definidos como:

[…] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição1.

O território brasileiro abriga uma diversa gama de Povos e Comunidades Tradicionais. Entre os PCTs do Brasil, estão os povos indígenas, os quilombolas, as comunidades tradicionais de matriz africana ou de terreiro, os extrativistas, os ribeirinhos, os caboclos, os pescadores artesanais, entre outros que são formadores da diversidade cultural brasileira.

Então, se por um lado a Internet possibilita aos seus usuários um rico potencial para aprender mais sobre toda a diversidade de cultura e expressões tradicionais; por outro, a falta de proteção ou de indicações adequadas permitem abusos e exploração dessas expressões.

Analisando sob a perspectiva da propriedade intelectual, muito desse conhecimento fora comumente tratado como parte do domínio público, seja por não atender aos critérios estabelecidos para a proteção, ou porque as comunidades tradicionais que o criaram não se encaixavam em regras de propriedade privada (Dutfield, 2001).

Nesse aspecto, os conhecimentos tradicionais se aproximam de modo muito similar à produção de conhecimento na Antiguidade grega e romana, onde não havia uma atenção especial à questão de propriedade ligada à cultura, e as narrativas faziam parte de uma tradição comum, na qual a autoria era principalmente coletiva, atribuída a uma dada cultura ou aos deuses, fruto de uma inspiração divina ou de uma construção comunitária em que importava mais o conteúdo e o que ele poderia ensinar do que seu porta-voz (Foletto, 2021).

Assim, a problemática se instaura quando tratamos essas expressões e esses conhecimentos tradicionais como efetivamente sem propriedade, ou tentamos enquadrá-los à legislação existente sobre propriedade intelectual. Helfer (2003) alerta que a falta de proteção fragiliza e acaba por tornar esse conhecimento disponível para exploração irrestrita por “estranhos”, e muitos desses “estranhos” usaram esse conhecimento como partida para inovações posteriores de forma privatizada, utilizando-se também da propriedade intelectual, como por meio de patentes e direitos autorais, com o benefício financeiro e tecnológico dessas inovações raramente sendo compartilhado com as comunidades tradicionais, como as indígenas.

De tal modo, a aplicação dos instrumentos jurídicos tradicionais nesse ambiente tem se mostrado um grande desafio em decorrência do uso de meios incompatíveis com a peculiaridade e especificidade do tema. O processo de regular realidades modificadas por novas tecnologias com um sistema legal do qual se tem uma aparente incompatibilidade apresenta-se como uma lacuna, que ora pode distanciar a sociedade de um acesso a um vasto material cultural, ora as comunidades podem não ter a proteção adequada de suas expressões culturais.

Assim, o desafio que tratamos quando analisamos a proteção das expressões culturais tradicionais pode ser resumido no binômio: como evitar a apropriação e uso indevido sem que a sociedade seja impedida de utilizar e acessar a sua própria cultura.

Neste artigo, abordamos algumas cautelas que podem ser tomadas de forma que a disponibilização desses conteúdos esteja de acordo com os desejos de seus guardiões. Para tanto, buscamos considerar alguns mecanismos que podem ser usados para melhor proteger as expressões culturais tradicionais em um ambiente digital.

O presente artigo consiste em uma análise bibliográfica no sentido de selecionar conceitos e marcos legais que possam trazer ao texto um panorama do aparente conflito entre a dificuldade de equalização entre a proteção das expressões culturais tradicionais e o acesso e utilização desse conteúdo pela sociedade.

Concomitantemente, analisamos as características de alguns dos principais acervos digitais brasileiros que contêm expressões culturais tradicionais, com o intuito de verificar se há indicação de licenças de uso e reuso e quais são as utilizadas.

 

2. As Expressões Culturais Tradicionais e a proteção em âmbito internacional

Para uma completa compreensão do tema, é importante adentrarmos no panorama inter- nacional de proteção das Expressões Culturais Tradicionais (ECTs), as também chamadas pela sigla em inglês TCE (Traditional Cultural Expressions).

As primeiras proteções internacionais a abordarem o conhecimento tradicional datam de 1978, com um conselho que unia OMPI2 e UNESCO3. Nesse ano foi criado um conjunto de diretrizes para os membros da OMPI protegerem o folclore com leis nacionais em suas jurisdições (UNESCO-WIPO, 1983). Foi nesse momento que tais instâncias reconheceram que os indígenas têm direito à proteção de sua cultura como parte de seu direito à autodeterminação.

A partir do início da década de 1990, as comissões de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) começaram a dedicar atenção significativa aos direitos das comunidades indígenas. Entre as muitas alegações, os povos indígenas exigiram dos Estados o direito ao reconhecimento de controle sobre sua cultura, incluindo o conhecimento tradicional relacionado à biodiversidade, a medicamentos e à agricultura.

Ainda hoje, em âmbito internacional, as discussões continuam se desenvolvendo especialmente na OMPI e na UNESCO. Em 2005, o Comitê Intergovernamental de Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore (ICIPGRTKF)4 publicou projetos de artigos para a proteção do conhecimento tradicional (TK) e das Expressões Culturais Tradicionais, que incluíram definições atualizadas desses termos.

Assim, atualmente o secretariado da OMPI tem duas definições para conhecimentos tradicionais:

[…] o conhecimento que é resultado da atividade intelectual em um contexto tradicional e inclui know how, habilidades, inovações, práticas e aprendizados que formam parte do sistema de conhecimentos tradicionais, e conhecimento que é incorporado no estilo de vida de uma comunidade ou povo, ou está contido em sistemas de conhecimento codificado passados entre gerações (WIPO como citado em Tedeschi, 2009, pp. 245-246).

Refere-se também a trabalhos literários, artísticos ou científicos, invenções, descobertas científicas, desenhos, marcas, nomes e símbolos, informações confidenciais baseadas na tradição (que foram transmitidas de geração em geração e pertencem a um povo ou seu território).

Uma ideia é então destacada pela UNESCO, organizando uma convenção destinada a proteger as ECTs. Ela é chamada de Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, cujo texto oficial foi ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 485/20065. A partir dela, expressões, saberes e habilidades defendidos ao longo dos tempos pelas comunidades, por grupos e/ou, em casos específicos, por indivíduos são reivindicados por eles como seus legados culturais.

A convenção tenta regular tal reivindicação, explicando legados culturais intangíveis como: “práticas, representações, expressões, conhecimentos e habilidades – também ferramentas, objetos, artefatos e espaços culturais – considerados por comunidades, grupos e/ou em vários casos, indivíduos, como seus legados”.

O Comitê Intergovernamental da OMPI sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore está negociando a proteção legal internacional das ECTs. Há disposições-modelo UNESCO-OMPI para leis nacionais e um vasto material de documentação e gerenciamento de ECTs, que vão desde um programa de treinamento em documentação cultural e gestão de propriedade intelectual a guias de gerenciamento de propriedade intelectual para organizadores de festivais de artes, artesanato tradicional e museus, bibliotecas e arquivos6.

Porém, ainda existe a pendência de uma promulgação de legislação específica, no ambiente digital, que abarque o desenvolvimento e a implementação de protocolos para lidar com materiais culturais; protocolos estes que seriam um meio importante para garantir que direitos
dos povos tradicionais fossem reconhecidos.

Janke (2006) explica, utilizando o exemplo de culturas indígenas, que os protocolos são maneiras apropriadas de usar o material cultural indígena e interagir com indígenas e suas comunidades: os protocolos incentivam a conduta ética e promovem a interação com base na boa fé e respeito mútuo.

Embora os protocolos sejam o que chamamos de soft law7, e não sejam juridicamente vinculantes, eles estabelecem práticas que podem, com o tempo, vir a ser consideradas como padrões. O uso de protocolos culturais para superar deficiências no reconhecimento legal de interesses indígenas ganhou apoio nos últimos anos.

Em 2003, na Austrália, o Conselho de Artes Aborígenes e das Ilhas do Estreito de Torres (ATSIAB) lançou uma série de guias de protocolo de direitos de propriedade intelectual e cultural indígena, abrangendo novas mídias, artes cênicas, música, artes visuais e literatura. Os protocolos, escritos pelas ad- vogadas indígenas Terri Janke e Robynne Quiggin (Janke, 2006), são guias detalhados e práticos para usar e lidar com material intelectual indígena e suas expressões culturais, descrevendo maneiras apropriadas de usar a cultura indígena material. Eles são baseados em nove princípios gerais, que podem auxiliar em um caminho para outros protocolos: 1) respeito; 2) controle indígena; 3) comunicação, consulta e consentimento; 4) interpretação, integridade e autenticidade; 5) segurança e confidencialidade; 6) atribuição; 7) retornos adequados; 8) culturas contínuas; e 9) reconhecimento e proteção.

No Brasil, exemplos similares ocorrem com a Associação dos Jovens da Jureia e da União dos Moradores da Jureia, comunidades tradicionais caiçaras da região conhecida como Jureia, localizada no litoral sul do estado de São Paulo, em que uma das estratégias para estabelecer parcerias com grupos e instituições que não são das comunidades está em construir protocolos a partir de discussões e regras internas das próprias comunidades tradicionais.

Essa estratégia permite o diálogo mais amplo com os parceiros, criando espaços de confiança e de trocas, mas, acima de tudo, de escuta. As parcerias são consolidadas ao longo das discussões enredadas nas reuniões, bem como na prática dos projetos realizados em conjunto. Na relação de confiança, é possível apresentar as reais demandas das comunidades para que os parceiros possam decidir sobre as possibilidades de sua atuação (Lima et al., 2022).

É fato que, durante muito tempo, as comunidades tradicionais foram tratadas apenas como objeto de pesquisa de instituições acadêmicas. Nesse histórico, os moradores foram anfitriões dos pesquisadores. Eles atuaram durante muito tempo como os principais informantes, guias do território, mediadores de contatos internos e coletores de espécies nativas. Contudo, os moradores têm aparecido em trabalhos das mais diversas áreas somente como pessoas a quem se deve agradecer, e não como coautores da produção de conhecimentos (Lima et al., 2022).

3.Produção e acesso das Expressões Culturais Tradicionais

Parte da importância da análise de como conhecimentos e expressões culturais são equalizados em um ambiente digital passa pelo panorama de resistência e fortalecimento da identidade dos povos tradicionais e pelo campo de possibilidades intrínsecos que o ambiente digital permite, a maneira como a rede é apropriada, entendendo-a, sobretudo, como um espaço potente para a afirmação do discurso cultural de grande alcance e como forma de estender a cultura.

Dardot e Laval (2017) ponderam que não há neutralidade na produção e disseminação de conhecimento, pois este não é nem naturalmente raro, nem naturalmente abundante. A produção, a circulação e o uso do conhecimento dependem das instituições que organizam e moldam as práticas.

Nesse viés, Milton Santos (2008) retoma termos como desterritorialização e cidadania universal, considerados por ele como um mito. Por esses termos, é possível classificar a construção das narrativas on-line como atividades globais em uma atuação ativa em prol da confirmação de identidades:

Fala-se, também, de uma humanidade desterritorializada, uma de suas características sendo o desfalecimento das fronteiras como imperativo da globalização, e a essa ideia dever-se-ia uma outra: o da existência, já agora, de uma cidadania universal. De fato, as fronteiras mudaram de significação, mas nunca estiveram tão vivas, na medida em que o próprio exercício das atividades globalizadas não prescinde de uma ação governamental capaz de torná-las efetivas dentro do território. A humanidade desterritorializada é apenas um mito. Por outro lado, o exercício da cidadania, mesmo se avança a noção de moralidade internacional é, ainda, um fato que depende da presença e da ação dos Estados nacionais (Santos, 2008, p. 21).

A propriedade intelectual tornou-se temática central quando tratamos de disposição de conhecimento e cultura no ambiente digital. Brea (2007) nos alerta para a existência de cenários sucessivos de revolta, de confronto revolucionário: aqueles mesmos em torno dos quais se constitui a violência metafísica da propriedade. Sob um regime de produção agrária: a luta pela posse da terra. Sob outra produção industrial: a luta pelo capital. Para o atual momento, e cada vez mais, a geração de riqueza se baseia na gestão do conhecimento, do conhecimento como força produtiva por excelência, o novo campo ampliado que se constitui no cenário do conflito principal vai ser, se não já o for, o da propriedade intelectual.

A liberdade de se referir ou de pertencer a uma comunidade cultural é muito sensível politicamente; sua realização garante o exercício dos direitos culturais, favorece o desenvolvimento das liberdades e responsabilidades das pessoas, individualmente ou em grupo, e permite o desenvolvimento de locais culturais de manutenção, de comunicação, de cruzamento e de criação de saberes. Não pode haver cultura democrática forte sem uma valorização da atividade – mais precisamente, da interatividade – das comunidades culturais enquanto meio de exercício e de desenvolvimento de todos os direitos humanos. A valorização dos saberes passa pelas estruturas sociais e comunitárias que são portadoras dos saberes (Meyer-Bisch & Bidault, 2017).

Assim, pensar em como o conhecimento é produzido, em como ele circula e também em como ele é acessado pelas pessoas, trata-se de tema central no entendimento de como desigualdades históricas foram constituídas e de quais são os caminhos para o seu enfrentamento.

 

4. Acesso aberto

Para se conceituar acesso aberto, tomamos como base as declarações de Berlim, Bethesda e Budapeste8, que se debruçam sobre o termo acesso aberto e, a partir disso, este pôde ser consensualmente definido como o acesso à “literatura que é digital, online, livre de custos, e livre de restrições de copyright e licenças de uso”.

Sendo assim, para se determinar que um conteúdo possui acesso aberto, este deve ser gratuito e deve estar livre quanto às permissões de uso desse material.

É certo que o processo de digitalização dos conteúdos culturais oferece oportunidades ímpares, como a integração ampla e efetiva de diferentes instituições de preservação do patrimônio cultural. Tal processo pode ampliar exponencialmente a visibilidade e o alcance da influência de uma Expressão de Cultura Tradicional, além de ser um elemento de contribuição para a sua preservação e consequente difusão.

A relevância cultural da integração dessas bases de dados, se forem abertas, fez surgir um movimento que promove uma denominação comum para o domínio que abrange acervos arquivísticos, bibliográficos e museológicos digitalizados que são compartilhados de maneira aberta. Essa denominação utiliza o acrônimo Open GLAM e enfatiza a promoção do livre acesso como missão principal9.

Brea (2007) considera salutar que o museu como instituição deva ser situado social e historicamente e que pertença a um certo projeto cultural, civilizatório, e, portanto, assuma seu sentido sob uma certa economia de práticas significantes, que opera e administra articulações muito específicas de representação e verdade, inscritas no complexo de uma época e de uma ordem cultural do discurso.

Sendo assim, devemos começar lembrando que o museu foi, e provavelmente ainda é, um dispositivo de importância crucial nesse sentido, um dispositivo organizador dos imaginários de autorrepresentação e reconhecimento recíproco do “humano” (Brea, 2007).

4.1. Licenças Públicas e as Licenças Creative Commons

Diversos museus ao redor do mundo têm adotado políticas institucionais de abertura dos dados de seus acervos, permitindo o acesso e a reprodução, de forma livre, para diferentes usos, dos itens digitalizados de seus acervos. A operacionalização dessa possibilidade é, em alguns casos, realizada por meio de legislações nacionais e/ou locais que regulam direitos autorais. Dada a complexidade dessas legislações e/ou a ausência de soluções para as questões de compartilhamento da informação trazidas pela Internet, quando o assunto são os acervos digitais de museus e outras instituições culturais, o padrão internacional reconhecido são as licenças Creative Commons (CC) (Ibram, 2020). As licenças Creative Commons têm sido muito utilizadas por instituições que fazem a gestão de acervos e, no caso de acervos relativos a ECTs, podem se mostrar grandes aliadas de uma busca por uma padronização e uma correta identificação de como um conteúdo pode ser utilizado.

O Creative Commons é uma organização não-governamental internacional sem fins lucrativos, que visa a promover o compartilhamento do conhecimento, da cultura e da criatividade e fornece licenças gratuitas para os criadores disponibilizarem seus trabalhos ao público. Essas licenças permitem que o criador dê per- missão para que terceiros utilizem sua criação, sob certas condições.

As licenças e instrumentos de direito de autor do Creative Commons forjam um equilíbrio no seio do ambiente tradicional “todos os direitos reservados” criado pelas legislações de direito de autor e de direitos conexos. Os instrumentos fornecem a todos, desde criadores individuais até grandes empresas, uma forma padronizada de atribuir autorizações aos seus trabalhos criativos. Em conjunto, esses instrumentos e seus utilizadores formam um corpo vasto e em crescimento de bens comuns digitais, um repositório de conteúdos que podem ser copiados, distribuídos, editados, remixados e utilizados para criar outros trabalhos, sempre dentro dos limites da legislação de direito de autor e de direitos conexos10.

As licenças Creative Commons são licenças públicas. Em uma licença tradicional, a pessoa que é titular de direitos entra em uma relação específica com outra pessoa para autorizar determinados usos. No caso das licenças públicas, titulares de direitos estabelecem os termos da
autorização, que é dada para qualquer pessoa do público que queira fazer uso daquela obra – naqueles termos. A pessoa que vai usá-la precisa respeitar as condições e limites estabelecidos na licença, assim como ocorre quando uma licença é dada para uma pessoa particular11.

Atualmente, existem seis licenças disponíveis12:

Há ainda instrumentos que operam no espaço “todos os direitos concedidos”, do domínio público, e o instrumento CC0, que permite que os licenciantes renunciem a todos os direitos e coloquem um trabalho no domínio público. Porém, as licenças categorizadas nos quadros são os principais instrumentos utilizados quando tratamos de instituições de preservação e memória.

5. Acesso aberto em acervos de Expressões Culturais Tradicionais Brasileiras

Tendo esse norte, passamos à análise de alguns dos principais acervos digitais brasileiros, em quantidade de material disponibilizado, e que possuem em suas coleções expressões de cultura tradicional. Para tanto, elegemos duas instituições com acervos de cultura indígena e duas de cultura afro-brasileira. Analisamos especificamente se há indicações de licenças de uso e reuso desse material e quais são elas.

5.1.Expressões da cultura Indígena em acervos digitais brasileiros

5.1.1.Museu do Índio

O Museu do Índio é uma das principais instituições de memória brasileira, que tem o objetivo de divulgar a história e a contemporaneidade das culturas indígenas, a instituição tem sob sua guarda acervos relativos à maioria das sociedades indígenas brasileiras. Seu acervo é constituído por mais de 18 mil peças etnográficas e cerca de 20 mil publicações nacionais e estrangeiras, especializadas em etnologia e áreas afins.

A instituição é responsável pelo tratamento técnico de centenas de milhares de documentos arquivísticos, entre registros textuais, que datam desde o século XIX, e documentação audiovisual, como fotos, vídeos e áudios, em sua maioria produzida pelos próprios povos indígenas13.

Em visita ao seu sítio eletrônico, há a indicação de que todo o conteúdo disponível está publicado sob a licença CC-BY-ND (Creative
Commons – Atribuição – Sem Derivações 3.0 Não Adaptada), ou seja, isso quer dizer que o material disponível do acervo do museu pode ser utilizado desde que não haja derivações.

A utilização de uma licença que não a de domínio público parece uma alternativa razoável diante do conflito que estamos explorando: acesso à cultura versus apropriação e uso indevido. Dutfield (2001) nos lembra que, muitas vezes (e convenientemente), assume-se como de domínio público um conteúdo, e isso é suscetível de encorajar a presunção de que ninguém é prejudicado e nenhuma regra está sendo violada quando instituições de pesquisa e corporações o usam livremente.

5.1.2.Museu Nacional do Rio de Janeiro

O Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é a mais antiga instituição científica do Brasil que, até setembro de 2018, figurou como um dos maiores museus de história natural e de antropologia das Américas.

Figurou, pois na noite de 2 de setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções atingiu a sede do Museu Nacional, destruindo quase a totalidade do acervo em exposição, uma perda inestimável e incalculável para a formação histórica e cultural não só do país, mas do mundo.

O museu possuía mais de 20 milhões de itens catalogados e era detentor do maior acervo de história natural e antropologia da América Latina, bem como a instituição museológica brasileira que tinha sob sua guarda o maior número de bens culturais.

Segundo a instituição, o núcleo de etnologia indígena brasileira era o mais representativo, abrangendo objetos produzidos por povos nativos de todas as regiões do país, desde o início do período colonial até os dias de hoje. A coleção abrangia também significativos conjuntos de artefatos referentes à etnologia africana, à etnologia afro-brasileira e às culturas do Oceano Pacífico. Por fim, o núcleo de linguística conservava um vasto conjunto de registros documentais e sonoros relativos às línguas indígenas brasileiras.

Antes de 92,5% do acervo do Museu Nacional se tornar cinzas, o projeto Arts & Culture, do Google, em 2016 digitalizou as peças e também o espaço físico do palácios, estando grande parte do acervo disponível de maneira online na plataforma14.

Com a destruição de 20 milhões de itens pelo fogo, a experiência pela plataforma proporciona, ainda que apenas de forma digital, uma catalogação e preservação, o que sem essa iniciativa significaria uma perda definitiva. Do acervo correspondente à arte indígena, foram perdidos registros de dialetos e cantos indígenas de comunidades que já se extinguiram.

Eventos trágicos como o incêndio do Museu Nacional do Rio trazem a importância e urgência em se digitalizar, preservar e viabilizar o acesso a conteúdos de patrimônio cultural.

Analisando a licença disponível na plataforma Arts & Culture, destinada ao museu há a designação de todos os direitos protegidos com a seguinte indicação: Copyright © 2017 Museu Nacional/UFRJ.

Sendo assim, não é possível utilizar de qualquer desses materiais e reutiliza-los sem que haja uma autorização expressa da instituição.

5.2. Expressões da cultura afro-brasileira e acervos digitais brasileiros

5.2.1.Museu Afro Digital Galeria do Rio de Janeiro

O Museu Afro Digital Galeria Rio de Janeiro, vinculado a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, tem por objetivo construir um acervo digital e exposições virtuais sobre as práticas daqueles que se identificam a si mesmos ou são identificados como afrodescendentes. A criação da Galeria Rio de Janeiro parte da importância da cidade e do estado do Rio de Janeiro em termos de construção de uma memória para a população negra ou afrodescendente. Não só é uma referência histórica e cultural, como também reúne instituições como a Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, além de outras de ensino e pesquisa que vêm se dedicando ao tema. O museu possui uma galeria digital de grande parte do acervo15.

Segundo a instituição a digitalização de informações é um instrumento que pode facilitar a repatriação de documentos e divulgar outros de difícil acesso e a proposta, segundo suas diretrizes é que este atue democratizando o acesso ao saber acumulado, descentralizando formas de conhecimento.

No acervo do museu, há um conjunto amplo de registros de documentos: reproduções de material impresso, como: recortes de jornais; documentos pessoais; cartas; atas; textos publicados ou não; poesias; receitas culinárias ou da medicina tradicional; fotos; iconografia; gravações e partituras de músicas; depoimentos; rezas; cantigas; reproduções de objetos ou artefatos da cultura material; filmagens; e gravações de eventos culturais ou políticos. A documentação está disponibilizada em formato de exposições e arquivos.

A indicação da licença utilizada pelo Museu Afro Digital em seu sítio eletrônico é a copyleft Creative Commons, sem, no entanto, fazer uma indicação específica de qual seria a licença, dentre as seis disponíveis. Entendemos, portanto que, ao referenciar como copyleft, a licença es-
colhida pela instituição seria a CC-BY-SA.

A licença CC-BY-SA permite a utilização, dando o devido crédito, e com a condicionante de que o material reutilizado deva manter-se com a mesma licença ou se utilizar de uma mais aberta, ou seja, o material derivado não pode ser objeto de proteção por direitos autorais quanto a sua utilização.

5.2.2.Museu Afro Brasil16

O Museu Afro Brasil é uma instituição pública administrada pela Associação Museu Afro Brasil – Organização Social de Cultura, localizada no Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega, dentro do Parque Ibirapuera, em São Paulo.

O acervo digital do Museu Afro Brasil conserva mais de 8 mil obras, que englobam diferentes áreas de múltiplos universos culturais africanos, indígenas e afro-brasileiros. Dividido por meio de núcleos temáticos, o acervo procura abranger aspectos da arte, da religião afro-brasileira, do catolicismo popular, do trabalho, da escravidão, das festas populares, registrando, assim, a trajetória histórica, artística e as importantes influências africanas na construção da sociedade brasileira.

Sua coleção é composta por gravuras, pinturas, desenhos, aquarelas, esculturas, documentos históricos, fotografias, mobiliário, obras têxteis, plumárias, cestarias, cerâmicas, entre outras obras elaboradas desde o século XVI até os nossos dias.

Segundo a instituição, o objetivo de tornar o acervo do Museu Afro Brasil disponível on-line não se limita às obras em si, mas, também, progressivamente, busca tornar público aos pesquisadores, professores, alunos, visitantes e interessados em geral os dados das pesquisas mais relevantes a respeito das obras desse conteúdo disponível. O acervo digital de arte africana foi o primeiro a integrar a primeira parte do projeto de digitalização e disponibilização on-line do acervo do museu.

O acervo é constituído por mais de 300 obras. O núcleo de arte africana tradicional do Museu Afro Brasil abarca obras de dezenas de povos que compõem os principais exemplares dessa arte presente em museus. Estão presentes obras dos povos: Iorubá, Fon, Bini, Baule, Iaure, Senufo, Attie, Bamana, Dogon, Landuma, Bijagó, Chokwe, Baluba, Bakongo, Suku, Makonde, entre outros.

Porém, em busca no sítio eletrônico da instituição, não há nenhuma indicação de uma licença de uso ou de que maneira pode-se utilizar do conteúdo disponível do acervo do museu. Sendo assim, quando não há uma indicação específica, entende-se que a utilização não é permitida e que é preciso autorização prévia da instituição.

6. Iniciativa Contextos Locais (Local Contexts)

Uma possível equalização para mesclar os ensinamentos obtidos em protocolos de usos de material de culturas tradicionais, juntamente com a normatização de licenças de direitos autorais, é o projeto Local Contexts, ou Contextos Locais17.

Trata-se de um projeto colaborativo que foi fundado nos Estados Unidos em 2010. O objetivo é aprimorar e legitimar a tomada de decisão baseada localmente e as estruturas de governança; nesse caso, para determinar a propriedade, o acesso e as condições culturalmente apropriadas para o compartilhamento de patrimônio cultural e dados indígenas.

Muitos dos conflitos que existem em relação à lei de propriedade intelectual e os materiais culturais tradicionais, como explanado, têm seus legados na pesquisa e práticas desiguais, que tornaram os povos indígenas como sujeitos de pesquisa e estudo, ao invés do que colaboradores e proprietários dos resultados e produtos da pesquisa. O projeto Local Contexts considera esses legados desenvolvendo uma estratégia para lidar com ambos os materiais que estão em domínio público e aqueles criados e de propriedade de Pessoas indígenas.

Segundo, Christen (2015) o Local Contexts visa fornecer uma opção concreta para comunidades tradicionais gerenciarem seus direitos de propriedade intelectual e comunicarem seus interesses na documentação, digitalização, compartilhamento e exploração de seu patrimônio cultural digital de acordo com seus próprios desejos e aspirações. As opções de licença e selos visam atender às necessidades exclusivas de comunidades indígenas, locais e tradicionais em termos de acesso e controle, com base em regras, protocolos, diretrizes e modelos costumeiros para o uso adequado de materiais do patrimônio cultural.

O projeto oferece estratégias digitais para comunidades, instituições culturais e pesquisadores por meio dos Selos de Conhecimento Tradicional e Biocultural. Eles funcionam como um mecanismo prático para promover a soberania de dados indígenas e inovação indígena.

Inspirados nas licenças Creative Commons no âmbito dos metadados, os Selos de Conhecimento Tradicional reformulam a propriedade intelectual como culturalmente determinante e dependente do consentimento cultural para a utilização dos materiais. Esses selos alertam para quem irá utilizar aquele material sobre os protocolos locais estabelecidos pelas comunidades.

As licenças e selos fazem um trabalho diferente – as licenças são um mecanismo legal, enquanto os selos são educacionais e sociais. As licenças, assim como as licenças Creative Commons, são uma extensão de lei contratual existente e devem ser legalmente defensáveis em várias jurisdições. As licenças funcionam para materiais pertencentes a comunidades ou que sejam protegidos por direito autoral. Eles permitem que as comunidades (definidas de forma variada) estendam o termos de acordo para atender aos seus próprios parâmetros culturais. As licenças não estão buscando para alterar leis de direitos autorais nacionais ou internacionais já existentes; em vez disso, eles são um conjunto de acordos adicionais que os proprietários de direitos autorais indígenas podem usar para transmitir preocupações culturalmente específicas sobre o material que eles já possuem legalmente e ao controle. (Christen, 2015).

Sendo assim, as diversas licenças e selos, que, segundo orientação, devem ser colocados sempre o mais próximo possível do material que é disponibilizado, e que possuem uma informação de como o material pode ser utilizado.

São 6 selos de procedência que identificam o grupo ou subgrupo que é a principal autoridade cultural para o material e/ou reconhece outros interesses nos materiais.

Por exemplo, o Selo Atribuição (TK Attribution (TK A): deve ser usado para informar quem são os verdadeiros criadores, guardiões e proprietários do material em circulação. Isso é especialmente útil se a autoria do material e questão tiver sido atribuída erroneamente ou se os nomes das pessoas envolvidas na criação ou proteção desse material não tiverem sido considerados ou devidamente atribuídos. Este selo permite corrigir erros históricos de nomenclatura e solicita que futuros usuários atribuam corretamente a autoria deste material.

Existem também 9 selos de protocolo, esses descrevem os protocolos tradicionais associados ao acesso de um determinado material e convidam aos usuários a respeitar os protocolos da comunidade.

O Selo TK Women General (TK WG), por exemplo, deve ser usado para informar aos usuários externos que o material circulante tem restrições de gênero e deve ser usado e compartilhado apenas por mulheres da mesma comunidade. O selo foi concebido para informar que certos tipos de conhecimento são restritos por gênero e, portanto, só podem ser acessados e usados por membros específicos de uma comunidade – neste caso, apenas mulheres. Ajudando os usuários fora da comunidade a conhecer os costumes e protocolos culturais para acesso e uso em relação a este material. Há também 5 selos de permissão que estabelece os usos e reuso que podem ser realizados:

Como exemplo de um selo de permissão, o selo de difusão TK Outreach comunica aos usuários fora da comunidade que os materiais culturais em circulação devem ser usados apenas para fins educacionais e de divulgação. As atividades educacionais incluem a divulgação pública de materiais culturais de uma comunidade para aumentar a conscientização e aumentar o conhecimento de usuários em potencial sobre sua família, clã ou comunidade. Estas atividades são normalmente desenvolvidas em escolas, universidades, bibliotecas, arquivos, museus, fóruns online e grupos informais de aprendizagem. Dependendo do contexto em que esse material está circulando, essa licença ajuda portadores e usuários a desenvolverem novas possibilidades de troca justa e recíproca desse material em atividades educativas. Essa troca pode incluir acesso a recursos educacionais que sua comunidade não teria acesso facilmente.

Finalmente, existem 4 licenças, estas que forma inspiradas e se aproximam das Licenças Creative Commons, e que atualmente se encontram em fase de testes.

O projeto já fora replicado em diversas locais e pode ser aproveitado e adaptado ao universo de cada comunidade. Em especial, ao contexto brasileiro que possui uma diversidade de comunidades que buscam representatividade e possuem histórico de participação social, parece especialmente harmonizável.

A iniciativa é um exemplo de alternativas que podem equilibrar e apontar caminhos para o aparente conflito das expressões tradicionais no ambiente digital. Em que diferentes quadros jurídicos, que muitas vezes podem aparentar inicialmente uma oposição, na realidade representam justamente o oposto, e podem servir como um avanço para muitos tipos de ferramentas e dispositivos educacionais em torno das necessidades de propriedade intelectual dos povos tradicionais. Permitindo levar em conta, em todos os casos, o histórico geográfico, social e cultural de cada contexto local que sempre determinarão os parâmetros de interação, uso e circulação de todo e qualquer conhecimento.

7. Considerações finais

Na análise de acervos digitais brasileiros que possuem Expressões Culturais Tradicionais, identificamos uma falta de padronização, avançada pela especificidade de cada acervo e, também, pelo caráter de sua política e gestão. Há ainda uma ausência de informações mais acessíveis e rapidamente localizáveis, pontos que podem ser uma possível barreira ao uso e reuso desses conteúdos.

Os Povos e Comunidades Tradicionais, como destaca Foletto (2021), têm um modo e uma prática de conhecer o mundo guiadas pelo coletivo e pelo comunitário e permanecem, ainda que com dificuldades e muitos embates, preservando seus bens culturais e suas tradições há muito tempo, em que pese o confronto com a visão ocidental exclusivista que enxerga produtos de ancestralidade apenas como um bem passível de circulação em um mercado.

Para muitos dos povos indígenas situados no Brasil, os artefatos que fazem parte de seus mundos não são meros objetos desprovidos de vida e significado e ocupam lugares especiais em suas diferentes culturas. O contexto de produção da arte indígena, desde a coleta das matérias-primas até o momento do uso, está fortemente relacionado com as filosofias que baseiam as formas de vida desses povos e as maneiras como se relacionam entre si, com os outros e com a natureza.

As mudanças culturais desencadeadas pela revolução informacional são demasiado evidentes para não supor, em diversos campos da sociedade, adequações equivalentemente revolucionárias. Assim, as soluções regulatórias da atualidade devem ser mais sofisticadas. As múltiplas estratégias demonstram que um único conceito não pode responder à complexa estrutura das Expressões Culturais Tradicionais em um ambiente digital que respeite as expressões em um nível tanto simbólico como identitário.

O que se impõe é que esses Povos e Comunidades Tradicionais sejam protagonistas de suas próprias histórias, falas, saberes e ancestralidade e que encontrem na contemporaneidade e nas ferramentas disponíveis um mecanismo de seguirem com seu legado, sendo constituinte de suas expressões, seja no ambiente físico ou virtual.

É necessário que enquanto não exista uma regulamentação que faça esse balanço, possa-se buscar um equilíbrio em protocolos e licenças que identifiquem e tragam parâmetros que reflitam as características das comunidades tradicionais e estejam em consonância com o ambiente digital em sua sistematicidade e complexidade, mas que ainda garantam maiores possibilidades de liberdade de acesso à sociedade.

Referências bibliográficas

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Nanashara Ferreira Piazentin Gonçalves contato@nanasharapiazentin.com

Advogada e jornalista, mestranda em propriedade intelectual. Coordenadora de cultura livre do Creative Commons Brasil. Conselheira de políticas culturais de Balneário Camboriú e do FUNCINE – Fundo de cinema de Florianópolis. Concentra sua atuação profissional e estudos em temas ligados à cultura, arte, acesso ao conhecimento, direitos autorais e tecnologia.