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Marcelle Cortiano

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volume 4 / número 2 / dez 2023 ↘ Artigo

O acesso à internet como um direito cultural: perspectivas jurídicas e socioculturais da participação tecnológica no Brasil

Marcelle Cortiano

Resumo

O artigo tem a finalidade de estruturar um panorama analítico da participação tecnológica brasileira em sua dimensão jurídica, a partir da compreensão da inclusão digital enquanto um direito cultural. Tal perspectiva deriva da ideia de acesso à cultura e participação na vida cultural presentes tanto em documentos internacionais quanto no texto constitucional, bem como em diplomas infraconstitucionais como o Marco Civil da Internet. Para tanto, além da análise jurídico-normativa, procede-se à consulta doutrinária para a conceituação dos direitos culturais e do acesso à cultura no ambiente digital, chegando à análise quantitativa da pesquisa TIC Domicílios (Cetic.br), cujos dados revelam o contexto do acesso brasileiro às TICs. O artigo conclui que, embora a inclusão digital possa ser entendida como um direito cultural normativamente previsto, vez que essencial para a participação na vida cultural na sociedade informacional, sua efetiva concretização ainda é obstaculizada pela precariedade de fatores estruturais, tecnológicos, financeiros e até geográficos, demandando ações integradas do poder público para sua realização.
Palavras-chave: Inclusão digital; direitos culturais; acesso cultural; acesso à Internet.

1. Introdução

O período compreendido entre as últimas décadas do século XX e sua transição para o século XXI constitui um intervalo marcado por profundas mudanças estruturais nas dinâmicas socioculturais, inclusive no modo de desenvolvimento econômico e nas formas como os componentes sociais interagem entre si. Essa reestruturação de métodos culminou em uma configuração sociocultural inovadora, reconhecida como a vigente sociedade informacional.

Uma característica notável desse arranjo é a aplicação da tecnologia da informação como ferramenta para a implementação de um processo de remodelagem econômica e produtiva – que, a seu turno, consolidou um novo paradigma, representado pelo modo de desenvolvimento informacional (Castells, 2005, p. 50). Com isso, verificaram-se metamorfoses “na natureza do sistema capitalista”, resultando em “uma mudança de longo prazo da produção industrial para a produção cultural” (Rifkin, 2001, p. 6).

A transformação da cultura material por “mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação” (Castells, 2005, p. 67) reflete-se também na forma como as manifestações culturais são produzidas, recebidas e transmitidas pelos sujeitos sociais. Em consequência, dinamiza-se toda a estrutura da cadeia cultural, sendo impossível dissociá-la da conjuntura digital resultante do aparato tecnológico que emerge em seu entorno.

No âmbito jurídico, as mudanças oportunizaram formas inovadoras de desempenhar direitos, mas suscitaram também indagações duradouras a respeito do alcance e dos efeitos dessas garantias no plano sociocultural. E para adentrar na temática do exercício dos direitos culturais na sociedade informacional, é inevitável abordar a questão do acesso às ferramentas tecnológicas de informação e comunicação – dentre as quais se destaca a Internet – em um contexto em que o uso desses veículos aparenta tornar-se cada vez mais popularizado.

O surgimento de um “sujeito político-tecno-social” decorrente das relações sociais mediadas pelas redes digitais repercute em novos contornos para o exercício de direitos nesses espaços, em muitas ocasiões, inclusive, aproximando os indivíduos dos processos de tomada de decisões. Afinal, além de fomentar a expressão de pensamentos e ideias, as redes de interação viabilizadas pela Internet estabelecem um “intercâmbio de informações entre os cidadãos de uma mesma comunidade, cidade ou país” (Pamplona & Freitas, 2015, p. 101-102).

Apesar disso, a aparente expansão do uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs) não implica necessariamente na universalização das oportunidades de acesso às informações que circulam na rede, e tampouco em um desempenho adequado de direitos no ciberespaço. Condições elementares – como o porte de equipamentos plenamente operacionais e uma estrutura minimamente funcional – variam substancialmente de uma localidade a outra em um país como o Brasil, constituído por grupos notadamente diversos e historicamente marcado por processos socioculturais nem sempre isonômicos e ponderados.

Determinadas tendências comportamentais parecem tornar esse quadro mais crítico. Conforme será detalhado, a dependência exclusiva de recursos móveis para a realização do acesso pode resultar em conexões permeadas por instabilidades e precariedade no fluxo de dados, reforçando a constatação de que um número cada vez maior de pessoas conectadas não implica necessariamente em condições satisfatórias para a concretização de direitos no ambiente digital.

Assim, para observar essa inclinação e demais aspectos socioculturais do acesso à Internet no Brasil, com vistas a discutir esse acesso em sua dimensão jurídica enquanto um direito cultural, optou-se pela metodologia embasada na análise quantitativa dos dados levantados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), especificamente no relatório “TIC Domicílios”. Desde 2005, o Centro produz “indicadores sobre o acesso, o uso e a apropriação das TICs em vários segmentos da sociedade”, oferecendo insumos “para o desenho e o monitoramento de políticas públicas que contribuam para o desenvolvimento da Internet no país”. Além disso, o Cetic.br é também um Centro de Categoria II da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), contribuindo “para a realização dos objetivos estratégicos da instituição” ao colaborar “no monitoramento da construção das sociedades da informação e do conhecimento”5 .

Para compor o panorama do estudo dos direitos culturais no ambiente digital, o percurso metodológico seguido na investigação procede também à consulta doutrinária nacional e internacional, além de análise dos marcos legais que tangenciam a matéria, com foco especial para os documentos da UNESCO que corroboram a relevância do debate proposto.

Conforme se buscará demonstrar, o cruzamento das referências estatísticas, bibliográficas e regulatórias respalda a hipótese de que mesmo que o acesso à Internet configure efetivamente um direito cultural, seu adequado desempenho ainda está demasiadamente sujeito a fatores socioculturais oscilantes. Tais instabilidades dificultam e até impedem o pleno exercício desse direito cultural, em descompasso com as previsões legais e as recomendações internacionais.

2. Os direitos culturais e o acesso à cultura pelas TICs

O desenvolvimento da noção de acesso à Internet enquanto um direito cultural demanda, primeiramente, a retomada teórica da compreensão das garantias dessa natureza: para José Afonso da Silva (2012, p. 314), a definição dos direitos culturais abrange, em sentido amplo, as categorias de (a) criação cultural – científica, artística e tecnológica; (b) acesso às fontes da cultura nacional; (c) difusão da cultura; (d) liberdade de formas de expressão cultural; (e) liberdade de manifestações culturais; e, por fim, (f) formação do patrimônio cultural e proteção dos bens culturais.
Complementarmente, essa definição pode ser lida a partir de “uma noção valorada de cultura” e à luz da dignidade da pessoa humana, fazendo com que tais direitos relacionem-se “às artes, à memória coletiva e ao fluxo dos saberes que asseguram a seus titulares o conhecimento e uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão referentes ao futuro” (Cunha Filho, 2018, p. 28).

Em diálogo com o recorte proposto, têm especial relevância no ambiente digital os direitos de acesso à cultura e de difusão cultural, que demonstram ser categorias centrais daquelas abarcadas pelos direitos culturais. Além disso, são movimentos profundamente vinculados ao fluxo das artes e dos saberes, essenciais para a manutenção da memória coletiva orientada pelo fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana.

Teixeira Coelho (2012, p. 45-46) explica, nessa lógica, que a compreensão de acesso cultural pode ser inferida a partir da “analogia com a linguagem utilizada no processamento de dados”, culminando na expressão que define esse acesso como “a comunicação com uma unidade ou modo de produção, distribuição ou troca de produtos culturais”. Representa, portanto, “condição material prévia que facilita (ou não) a produção e o consumo” desses produtos. No terreno prático, o acesso cultural abrange não apenas o acesso à informação – correspondente ao contato com os procedimentos de divulgação cultural – mas também o acesso aos equipamentos de produção cultural e às reproduções derivadas da geração dos produtos culturais.

No modo de desenvolvimento informacional que se desdobra, os direitos culturais e as formas de garanti-los ganham novos contornos sob a influência das possibilidades de acesso e compartilhamento de conteúdo pelas TICs. O argumento de Rifkin (2001, p. 6) sobre a mudança a longo prazo para a produção cultural diz respeito, justamente, à ressignificação da noção de acesso, um termo permeado por definições políticas e sociais. Seu teor resgata as distinções e divisões que se operam nas camadas intersubjetivas, ou seja, definem quem participa e quem não participa dessas interações na trama social.

Assimilando a cultura como uma “experiência compartilhada entre pessoas”, é possível perceber a estreita relação entre ela e o acesso sob a ótica da inclusão: “ou se é membro de uma comunidade e cultura e, portanto, se aproveita o acesso a suas redes compartilhadas de significado e experiência, ou se é excluído” (Rifkin, 2001, p. 113-114). Uma decorrência lógica dessa racionalidade são os efeitos desproporcionais do progresso tecnológico da informação a que são submetidos os componentes sociais, tanto a nível individual quanto comunitário, “ora incluindo-os nessa nova sociedade da informação, ao possibilitar seu acesso aos bancos de dados, ora excluindo-os, quando, por questões econômicas ou políticas, não tenham acesso à informação” (Wachowicz, 2016, p. 4).

Essas constatações corroboram o argumento de que a extensa difusão dos produtos culturais e o amplo acesso às manifestações deles decorrentes são fatores elementares para materializar a participação subjetiva das comunidades no ambiente digital, oportunizando, em consequência, a própria lógica do desempenho dos direitos culturais.

As metamorfoses estruturais que ganharam corpo na transição do século XX para o século XXI e permanecem em constante transformação pavimentam cada vez mais o caminho para a “era do acesso”, que tem como uma característica marcante a “marginalização da propriedade física e a ascendência da propriedade intelectual” – exemplificada, inclusive, pela substituição de bens materiais por ativos intangíveis (Rifkin, 2001, p. 9).

Essas mudanças foram detectadas desde o final do século XIX, quando se começa a notar o princípio da ascensão da produção cultural e de sua mercantilização. Na primeira metade do século XX, Theodor W. Adorno (2020, p. 67) – que refletiu criticamente sobre a cultura e cunhou o termo “indústria cultural” com Max Horkheimer na década de 1940 – já acautelava que o valor de troca no setor cultural se propunha de modo específico: “os bens culturais estão completamente inseridos no mundo da mercadoria, são produzidos para o mercado e orientam-se pelo mercado”.
De todo modo, a efetiva consumação do “capitalismo cultural” apenas foi possível graças à remodelagem da esfera econômica, que passou a valorizar o compartilhamento de experiências em detrimento dos direitos de propriedade e ganhou mais força na segunda metade do século XX. A transformação das práticas sociais em commodities verificou-se em variadas frentes: nas atividades cotidianas, no trabalho, na educação e nas relações em geral.

Naturalmente, as atividades culturais e de entretenimento foram também impactadas por esta nova modalidade de comercialização, e a “indústria da experiência” passou a orientar os rumos do compartilhamento das vivências culturais (Rifkin, 2001, p. 18). Na esfera das relações intersubjetivas, o fluxo informacional de produção de bens culturais passa então a se sujeitar à atividade coletiva dos usuários de Internet, que consomem e produzem conteúdo nos ambientes informacionais colaborativos característicos da “web participativa” ou “web 2.0”.

A origem deste termo é atribuída ao irlandês Tim O’Reilly (2007) e refere-se às dinâmicas oportunizadas pela rede a partir do momento em que as audiências fruidoras de bens culturais passam a ocupar também o papel de geradoras de conteúdo. John Palfrey e Urs Gasser (2008, p. 114-115) explicam que a web participativa/web 2.0 diz respeito “aos milhões de pessoas que estão se tornando criadoras de conteúdo digital. Os profissionais de marketing chamam o produto desses criadores de ‘conteúdo gerado pelo usuário’ ou ‘conteúdo criado pelo usuário’.” Como resultado, alimenta-se um cenário sociocultural em que se afasta de uma condição de audiência meramente passiva e são formadas comunidades de usuários criadores/produtores cada vez mais ativos, “geralmente amadores”2 .

Segundo André Lemos (2005, p.1), esse processo é caracterizado pela re-mixagem, o “conjunto de práticas sociais e comunicacionais de combinações, colagens, cut-up de informação a partir das tecnologias digitais” que resulta em uma “nova configuração cultural” pela alteração dos processos de comunicação, produção, criação e circulação de bens e serviços no século XXI. Assim, nessa lógica da “ciber-cultura-remix” os usuários passam a efetivamente produzir conteúdo, ao mesmo tempo em que vão consumir o conteúdo que outros usuários estão produzindo. Consequentemente, “a teia de conexões cresce organicamente, como resultado da atividade coletiva de todos os usuários da rede” (O’Reilly, 2007, p. 22)3 .

Apesar das novas possibilidades de criação e difusão de conteúdo ofertadas pelo ambiente digital, é necessário reconhecer que o desmantelamento da cultura compartilhada em experiências comerciais na economia de rede fez com que os direitos de acesso migrassem do âmbito social para o comercial. Isso impactou significativamente as dinâmicas que envolvem o adequado desempenho dos direitos culturais, vez que “a ação centralizadora e mercadológica” de determinados grupos empresariais levou a cultura “mais longe de boa parcela da população” (Adolfo, 2006, p. 290-291).

Nesse mesmo sentido, Rifkin (2001, p. 114) destaca como no cenário do capitalismo cultural o acesso deixa de se fundamentar em critérios intrínsecos às comunidades – como as tradições, os direitos de passagem, as relações familiares, a etnia, a religião, o sexo – para se basear nos recursos financeiros de quem pode pagar por estas experiências. Para Manuel Castells (2003, p. 203), um dos corolários dessa dinâmica é que “o equilíbrio entre o estímulo à produção da informação e a permissão de seu uso público está sendo perdido à medida que a informação é transformada em mercadoria e cada vez mais direcionada para mercados capazes de pagar muito”.

Assim, em um contexto em que o acesso ao conhecimento e à própria memória da coletividade podem apresentar cada vez mais limitações de ordem financeira, “esses gravames servem as empresas de informação, mas não a informação e o conhecimento das pessoas” (Ascensão, 2003, p. 24). Sob essa perspectiva, é necessário pensar o acesso à Internet enquanto um instrumento de ampliação do alcance às expressões culturais que trafegam no ambiente digital, promovendo o contato das comunidades com as próprias manifestações e até possibilitando o resgate das relações das coletividades com suas raízes e tradições.

Quando as expressões culturais se orientam pela finalidade da preservação e difusão da memória coletiva, bem como pela ampliação do alcance do público a esses produtos culturais, consequentemente estrutura-se na consciência social um paradigma horizontalizado de acesso, elemento indispensável para fortalecer a noção de fluxo universal de saberes. No entanto, a conversão destas ações em um adequado desempenho dos direitos culturais só pode ser verdadeiramente alcançada com o êxito de circunstâncias que a precedem, como é o caso da promoção cada vez mais ampla do acesso à Internet, em especial no modo de desenvolvimento informacional.

Nesse cenário, a efetiva consolidação do acesso cultural está profundamente relacionada à possibilidade de fruir das manifestações culturais que circulam na Internet. Como se destacou, na sociedade informacional a realização dos direitos culturais passa necessariamente pela via do acesso tecnológico, vez que hoje não é possível falar em criação, circulação e consumo de produtos culturais sem considerar as particularidades do ambiente digital. Para avaliar essa relação em seu aspecto jurídico, conforme propõe o presente estudo, é oportuno voltar o olhar para documentos de cunho internacional que reforçam os argumentos relatados, conforme se abordará a seguir.

3. A previsão normativa internacional no contexto digital

Observar os instrumentos de proteção das expressões culturais e de participação na vida cultural que estão além do ordenamento jurídico pátrio é essencial para dimensionar a relevância dessas previsões, sobretudo no paradigma informacional. Vez que “muitos dos direitos culturais vigentes em nosso país têm matriz em documentos jurídicos internacionais”, em variadas ocasiões os dispositivos são incorporados aos sistemas normativos internos sob a condição de direitos fundamentais (Cunha Filho, 2018, p. 42-43), o que corrobora a centralidade da questão proposta.

As menções a garantias de cunho cultural figuram em numerosos diplomas, sobretudo após 1948, quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), da Organização das Nações Unidas (ONU), registrou em seu artigo 27 que “todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”. A DUDH instituiu definitivamente a necessidade de implementação de políticas estatais de promoção de igualdade material, objetivando a concretização dos direitos sociais, econômicos e culturais, e assinalando formalmente esses direitos como desdobramento dos direitos humanos (Coelho, 2012, p. 172).

Pela relevância da instituição e pelas limitações formais do estudo, destaca-se nesse item especialmente os documentos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Metodologicamente, a pertinência desta escolha é justificada ao se considerar a atuação da Organização “como organismo do sistema das Nações Unidas encarregado da cultura”, efetivando importantes contribuições normativas no campo cultural (Wachowicz, 2016, p. 8).

A Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural adotada em 1972, por exemplo, consolidou definitivamente o tema da proteção ao patrimônio cultural na agenda internacional, formalizando a “aceitação jurídica de que há bens culturais que interessam ‘universalmente’ e que devem ser protegidos pelo consórcio das nações” (Souza Filho, 2006, p. 129). Em seu artigo 4º, o compromisso estabelece que concerne aos Estados signatários da Convenção a atribuição de conservar e transmitir o patrimônio cultural, mobilizando em grau máximo quaisquer recursos disponíveis na consecução destes objetivos (Brasil, 1977).

A disposição recomenda, portanto, que sejam planejadas, incorporadas e executadas ações governamentais e políticas públicas que efetivamente materializem a conservação e a transmissão culturais previstas (Cunha Filho, 2017, p. 184-185), utilizando-se do aparato tecnológico à disposição do poder público e compatível às suas necessidades. Da leitura analítica do artigo, infere-se que a promoção do acesso às manifestações culturais pela via digital está abarcada nesta lógica, vez que representa uma forma elementar de compartilhamento do patrimônio cultural na sociedade informacional.

Esta compreensão é profundamente significativa quando se considera a busca pela ampliação do fluxo transfronteiriço de expressões culturais impulsionado pela Internet, sublinhando a necessidade de que sua conservação e disseminação estejam também entre as prioridades dos Estados no âmbito da proteção de seus patrimônios culturais. No Brasil, a Convenção foi incorporada ao ordenamento jurídico pelo Decreto Legislativo n. 74, de 30 de junho de 1977 e promulgada pelo Decreto n. 80.978, de 12 de dezembro de 1977.

É oportuno apontar também a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, adotada pela UNESCO em 2003. A formalização da Convenção vem no sentido de consolidar a proteção de bens “cuja materialização é secundária, artificializada ou assaz efêmera, que até mesmo desaparece simultaneamente com a própria feitura do ato” (Cunha Filho, 2020, p. 63) – em outras palavras, destina-se àqueles bens intangíveis representativos das mais diversas comunidades.

O documento busca atender às demandas socioculturais de concretização da salvaguarda de modos de criar, fazer e viver, vez que as “culturas são representadas não apenas por bens com existência material, mas, talvez com maior vigor e importância, por bens que não têm materialidade, por bens puramente imateriais ou intangíveis” (Souza Filho, 2006, p. 49).

Nessa lógica, os bens que se encaixam na compreensão de patrimônio imaterial “devem corresponder às deliberações vivas de cada coletividade em seu tempo de existência e regência na cena sociopolítica” (Cunha Filho, 2020, p. 63), tratando-se “daquilo que identifica, representa e é referência de uma cultura dada” (Souza Filho, 2006, p. 53). O entendimento reforça a noção de participação na vida cultural mencionada anteriormente, basilar para amparar a expansão do acesso à Internet como forma de realização dos direitos culturais no modo de desenvolvimento informacional.

A Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, adotada pela UNESCO em 2001, é também pertinente para a análise proposta. Junto a múltiplos documentos, consolidou os direitos culturais de terceira geração ao reconhecer “valores que vão além de interesses individuais e têm natureza supraestatal e que, por isso, estabelecem a necessidade de atos de solidariedade” entre os Estados signatários (Cunha Filho, 2017, p. 182-183).

É oportuno recordar que as Declarações, enquanto instrumentos de reconhecimento, são contemporaneamente seguidas por Convenções – a seu turno, instrumentos de aplicação –, “às quais são agregados Planos de Ação, com prazos, indicação de recursos e autoridades executivas, tanto para as instituições internacionais como para o âmbito de cada Estado-Parte” (Cunha Filho, 2021, p. 1). Assim, a Declaração de 2001 foi seguida pela Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, adotada pela UNESCO em 2005 e promulgada no Brasil pelo Decreto nº 6.177, de 1º de agosto de 2007.

O instrumento estabelece diretrizes fundamentais para orientar a promoção da diversidade das expressões culturais, sintetizadas em oito princípios básicos: do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; da soberania; da igual dignidade e do respeito por todas as culturas; da solidariedade e cooperação internacionais; da complementaridade dos aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento; do desenvolvimento sustentável; do acesso equitativo; e, por fim, da abertura e do equilíbrio.

Nota-se fortemente vinculado à discussão proposta o princípio do acesso equitativo, ao determinar que tanto o acesso isonômico a uma “diversificada gama de expressões culturais provenientes de todo o mundo” quanto “o acesso das culturas aos meios de expressão e de difusão” representam elementos determinantes “para a valorização da diversidade cultural e o incentivo ao entendimento mútuo” (Brasil, 2007, art. 2).

Como antecipado, o presente estudo não tem a pretensão de abordar a totalidade de instrumentos normativos supraestatais que tangenciam o tema ou mesmo de esgotar a análise de seus dispositivos. Não obstante, o quadro regulatório internacional brevemente delineado permite atestar a relação intrínseca entre os campos da cultura e do direito, áreas centrais para se discutir alternativas de promoção do desenvolvimento social a partir do suporte cultural. Na contemporaneidade, esses setores são inevitavelmente confrontados com as novidades advindas do aprimoramento tecnológico, dentre elas as possibilidades ampliadas de criação, transmissão e acesso às expressões culturais da coletividade.

O direito de preservação do patrimônio cultural e de acesso às manifestações culturais previstos nos instrumentos da UNESCO atestam formalmente a necessidade de que o poder público adote medidas para a ampla participação dos indivíduos na vida cultural – um direito fundamental, conforme observado. Evidentemente, muitas das previsões elencadas são anteriores às circunstâncias socioculturais que assinalam o paradigma tecnológico da sociedade informacional. No contexto contemporâneo, a consumação dessas garantias passa mandatoriamente pela ampla promoção do acesso aos veículos informacionais digitais, entre eles a Internet, como propõe a questão central deste estudo.

Para refletir criticamente sobre essa condição no contexto brasileiro se faz conveniente estruturar um pano de fundo estatístico, vez que auxilia a compreender de forma sistemática o quadro do desempenho do acesso à Internet pelos brasileiros – ou mesmo os fatores que obstaculizam sua consecução. A análise é substancial para alicerçar o trecho conclusivo do estudo, que pretende destacar os aspectos que marcam o acesso à Internet enquanto um direito cultural, indispensável para a efetiva participação dos indivíduos na vida cultural.

4. O cenário brasileiro: o acesso à Internet e as atividades culturais digitais

O uso da Internet no Brasil pode ser constatado desde a chegada do sinal dessa rede no país, reportada no ano de 1991, na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (Carvalho, 2006; Oliveira, 2011). A utilização, na época, acontecia exclusivamente no âmbito acadêmico, tendo sido deslocada para o terreno comercial apenas em 1994. Logo depois, em 1995, é implementado o Comitê Gestor da Internet no Brasil, a partir da iniciativa conjunta do Ministério das Comunicações e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação4.

Os primeiros indicadores sobre o uso da Internet nos domicílios do Brasil são levantados e divulgados em 2005, resultantes da anteriormente referida criação do Cetic.br. Na ocasião, constatou-se que “aproximadamente 21% dos domicílios brasileiros” tinham acesso à Internet e, dentre os indivíduos que possuíam telefones celulares, apenas 5,4% os utilizavam para acessar a rede. Conclusivamente, o relatório projetava: “o potencial de crescimento do uso do celular para o acesso à internet é grande, principalmente quando aumentar a velocidade de acesso e diminuir os custos de conexão sem fio” (CGI.BR, 2006, p. 83-87).

Posteriormente, o levantamento continuou sendo feito anualmente com a pesquisa TIC Domicílios, investigação que tem a finalidade de mapear o acesso às TICs no âmbito domiciliar urbano e rural no Brasil e suas formas de uso por pessoas com mais de 10 anos de idade. Os questionários que compõem o relatório são realizados por entrevistas presenciais “em todo o País, em domicílios selecionados aleatoriamente com base no Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)”, sendo compostos por “perguntas que permitem conhecer o acesso às tecnologias existentes e os hábitos de uso dos cidadãos”5 .

Em vista do contexto excepcional de distanciamento social para cumprimento dos protocolos sanitários em 2020 e 2021 por conta da pandemia de coronavírus, não há, até a conclusão do presente estudo, divulgação de informações relativas à TIC Domicílios neste intervalo. Cumpre assinalar, portanto, que os dados consultados dizem respeito à versão mais recente da pesquisa até o momento, ou seja, o levantamento relativo ao ano de 2019 – cujos resultados foram divulgados para a imprensa em maio de 2020 e em relatório mais detalhado em novembro do mesmo ano. Nessa edição, “foram realizadas entrevistas em 23.490 domicílios em todo o território nacional. A coleta dos dados foi realizada por entrevistas face a face entre outubro de 2019 e março de 2020” (NIC.BR, 2020, p. 26).

De acordo com o levantamento, aproximadamente 134 milhões de indivíduos brasileiros têm algum tipo de acesso à rede, o que corresponde a uma parcela de 74% da população com 10 anos ou mais. Assim, três em cada quatro brasileiros nessa faixa etária usam a Internet, resultando em cerca de 47 milhões de não usuários. Desses indivíduos sem acesso à rede, 45 milhões – ou seja, quase a integralidade – situam-se nas classes C e DE. A observação desses dados preliminares permite atestar, portanto, a estreita relação entre a desigualdade social e a exclusão digital (NIC.BR, 2020, p. 23).

Em detalhe, o relatório expõe os motivos mais recorrentes para a não utilização da Internet por esses 47 milhões de brasileiros: falta de habilidade com computador (72%) – citada inclusive como o principal motivo pela “população das áreas rurais (24%), da região Norte (27%) e entre os indivíduos analfabetos ou com Educação Infantil (30%)” – e a falta de interesse (67%). Além disso, o alto preço para acessar a Internet foi relatado como um impeditivo por 51% das pessoas das classes DE e por 57% daqueles com renda familiar de até um salário-mínimo. Segundo o Cetic.br, essas estatísticas têm permanecido constantes ao longo dos anos em que foram realizados levantamentos (NIC.BR, 2020, p. 68).

No tocante aos domicílios que têm acesso à Internet, é possível notar um expressivo aumento desde o primeiro levantamento, em 2005. Em 2019, a pesquisa constatou que 71% dos domicílios brasileiros possuem acesso à rede, destacando-se também um inédito e substancial aumento de usuários da Internet em zonas rurais. De acordo com o relatório, “pela primeira vez na série histórica da pesquisa, mais da metade da população vivendo em áreas rurais declarou ser usuária de Internet, chegando a 53%”. Na primeira vez que esse indicador foi divulgado, em 2008, o percentual orbitava em torno de 15% (NIC.BR, 2020, p. 23-25).

A adesão dos usuários de Internet a determinados equipamentos também enseja reflexões interessantes. O uso de dispositivos móveis, por exemplo, parece consolidar cada vez mais a hipótese de que praticamente a totalidade das interações nos ambientes informacionais colaborativos acontece por esses aparelhos. Segundo a TIC Domicílios 2019, 99% dos usuários de Internet acessam a rede pelo celular, sendo este o veículo mais popular de acesso. Supera, portanto, o computador (42%) – que desde 2015 já não é o equipamento mais utilizado para acessar a rede –, a televisão (37%) e o aparelho de videogame (9%).

É relevante ainda pontuar que quase 60% do total de acessos à Internet acontece exclusivamente por dispositivos móveis. Esta, inclusive, é a realidade mais comum para a classe DE, vez que 85% dos usuários desse grupo têm acesso à rede tão somente pelo celular. Em contraste, apenas 11% dos usuários da classe A realizam o acesso unicamente por esses aparelhos.

A estatística destacada é bastante reveladora quando se consideram as limitações advindas do uso da Internet realizado puramente por recursos móveis, que invariavelmente acentuam a exclusão digital. De acordo com o diagnóstico do Cetic.br, o acesso à rede exclusivamente pelo celular “está associado a um menor aproveitamento de oportunidades on-line, incluindo atividades culturais, pesquisas escolares, cursos a distância, trabalho remoto e utilização de governo eletrônico” (NIC.BR, 2020, p. 23).

Deste modo, mesmo que o número absoluto de brasileiras e brasileiros conectados à rede mundial de computadores revele-se superior a cada levantamento anual, devem ser assinaladas as circunstâncias em que esse acesso ocorre. Como já se antecipou, a tendência de aumento no número de indivíduos acessando a Internet acompanha a consolidação do paradigma tecnológico, mas não necessariamente indica o êxito da inclusão digital.

A popularização dos dispositivos móveis como recurso de acesso demonstra estabelecer uma conjuntura irreversível, dentre outras razões por representar um veículo menos custoso que o computador. Apesar disso, não se pode inferir prontamente que o acesso móvel se trata de uma conexão consistente e confiável, vez que ocorre em muitas ocasiões unicamente pelo plano de dados dos aparelhos celulares. Consequentemente, permanecem – ou até mesmo se intensificam – fatores que alimentam a exclusão digital e o abismo informacional que já permeavam o tecido sociocultural brasileiro. Conforme sublinha o relatório TIC Domicílios, “o tipo de dispositivo usado e a qualidade do acesso à rede parecem adicionar outra camada às desigualdades digitais e potenciais de uso da Internet no Brasil” (NIC.BR, 2020, p. 24).

Ainda que não seja o foco da investigação em tela, é inevitável reconhecer como a crise sanitária agravada pela pandemia da COVID-19 acentuou algumas dessas desigualdades, inclusive no que tange à conectividade dos indivíduos. De acordo com o Cetic.br, o desequilíbrio sociocultural presente nas condições de acesso à Internet pode ter sérias consequências na realização de ações oportunizadas na rede, em especial no contexto de crise e isolamento social. Em síntese, “isso ilustra a relação entre diferentes tipos de exclusão digital que, por sua vez, amplificam as desigualdades sociais existentes” (NIC.BR, 2020, p. 75).

Para além de apurar um panorama geral da presença brasileira na Internet, a estruturação do argumento do acesso à rede enquanto um direito cultural exige também a análise de outro aspecto fundamental desta dinâmica: o comportamento dos usuários brasileiros na Internet, sobretudo quanto à realização de atividades culturais digitais. Para tanto, volta-se novamente aos dados do Cetic.br, já que além de módulos fixos, a TIC Domicílios conta também com módulos rotativos, de periodicidades variadas, como é o caso do módulo “Atividades culturais na Internet”, que integrou a edição de 2019 da pesquisa.

A importância destes indicadores reside no fato de que representam justamente a faceta cultural do acesso à rede – aspecto que se busca destacar neste estudo –, auxiliando a compor o discurso de que a realização dos direitos culturais na sociedade informacional contemporânea passa necessariamente pela garantia do adequado acesso à Internet.

Ao se considerar de modo geral a finalidade da conexão individual, ainda sem adentrar no âmbito das atividades culturais, nota-se que as ações desempenhadas de forma mais acentuada pelos usuários de Internet no Brasil são aquelas relativas à comunicação. A TIC Domicílios (NIC.BR, 2020, p. 72) revelou que mais de 70% de todo o uso da rede é voltado para interagir em aplicativos de mensagens (92%), acompanhar redes sociais (76%), realizar chamadas de voz e vídeo (73%), enviar e-mails (58%) e participar de fóruns de discussão (11%). Os percentuais denotam, portanto, como o uso das TICs na esfera subjetiva – em particular o acesso à Internet – é pautado preponderantemente por interações comunicativas, o que evidencia a estreita relação entre o desenvolvimento da tecnologia e sua aplicação social.

Em relação às atividades culturais desempenhadas na Internet, a divulgação da pesquisa esclarece que os índices são expostos a partir de três dimensões (NIC.BR, 2020, p. 79-90): “a fruição cultural na Internet, com destaque para conteúdos audiovisuais; a criação e disseminação de conteúdos on-line; e a obtenção de informações pela Internet para a realização de atividades culturais presenciais”. A introdução deste módulo rotativo na TIC Domicílios vem no sentido de atentar para a relevância dos indicadores de participação cultural mediada pelas TICs, em observância, inclusive, às diretrizes da UNESCO.

Dentre as atividades multimídia consideradas, assistir a vídeos, novelas, filmes e séries na Internet é praticada por três em cada quatro indivíduos consultados, perfazendo 74% do total de brasileiras e brasileiros usufruem deste tipo de conteúdo da rede. Muito próximo é o percentual da segunda atividade mais realizada, já que expressivos 72% relatam acessar e ouvir músicas pela Internet.

A leitura de jornais, revistas e notícias é executada por 56% dos respondentes, e jogar online situa-se em quarto lugar, com uma aderência de 37% do total de usuários da rede. A visita a exposições ou museus virtuais pela Internet é a atividade cultural menos popular dentre todas as acima elencadas, sendo praticada por apenas 11% do total de brasileiras e brasileiros conectados à rede. Figura, inclusive, atrás do consumo de podcasts (13%), prática analisada pela primeira vez no levantamento realizado em 2019.

Nas ações culturais de modo geral, o perfil sociocultural dos praticantes evidencia que, “quanto maior a classe e o grau de instrução dos indivíduos”, maior a incidência de público nessas atividades. Ademais, em comparação com as práticas culturais mais populares – como assistir a vídeos e ouvir músicas –, é mais acentuada ainda “a diferença conforme o grau de instrução, classe e renda dos indivíduos” naquelas atividades culturais menos frequentes – nomeadamente “atividades associadas à leitura” e também “ver exposições ou museus pela Internet”. Sintetiza o relatório: “ainda que tais diferenças sejam observadas em todas as atividades culturais on-line, elas foram mais marcantes entre aquelas menos realizadas pelos usuários de Internet brasileiros” (NIC.BR, 2020, p. 81).

A leitura crítica dos dados relatados indica que o desempenho das atividades culturais na Internet não se apresenta de maneira consistente e universalizada dentre a diversidade de grupos sociais que compõem a população brasileira. Mesmo que o número de indivíduos acessando a Internet revele-se gradativamente maior a cada ano, a finalidade das conexões e as próprias condições de conectividade são bastante díspares, a despeito das possibilidades que o aprimoramento dos recursos tecnológicos demonstra oportunizar.

Além disso, o indicativo de acesso à Internet não se traduz na garantia da universalização informacional ou no fortalecimento do desempenho de direitos, vez que está sujeito a obstáculos estruturais, tecnológicos, financeiros e geográficos. Todas estas categorias representam fatores que indubitavelmente influenciam a conjuntura sociocultural, condicionando as tendências comportamentais dos indivíduos – e sendo por elas condicionadas, em um ciclo que se retroalimenta – e resultando em alguns dos indicadores brevemente abordados. Por estar sensivelmente vinculado a essas questões, a consideração do acesso à Internet enquanto um direito cultural mostra-se um debate necessário, conforme pretende-se desenvolver a seguir.

5.O adequado acesso à rede como um direito cultural

Como se antecipou, o alcance da definição doutrinária de acesso cultural abrange não apenas o acesso à informação divulgada pelos equipamentos culturais, mas também considera o acesso ao próprio aparato de produção cultural e ainda às reproduções que resultam da geração dos produtos culturais. Retrata, portanto, uma condição material elementar que deve oportunizar tanto a criação quanto a circulação e o posterior consumo dos bens culturais (Coelho, 2012, p. 45-46).

No modo de desenvolvimento informacional relatado por Castells (2005) e Rifkin (2001), o acesso aos bens culturais ganha novos contornos. Nesse sentido, uma das formas possíveis de refletir sobre as repercussões do paradigma tecnológico e informacional é a partir da discussão sobre a proteção das garantias individuais e coletivas relacionadas às TICs, em especial quando se considera a web participativa.

Conforme exposto, a Internet oportuniza experiências interativas nas quais não há limites bem definidos para os atores envolvidos, remodelando as perspectivas para o desempenho de direitos culturais ao ampliar o acesso aos equipamentos culturais, à informação e às formas de comunicação na supramencionada lógica da “ciber-cultura-remix” (Lemos, 2005, p. 1). Apesar disso, é possível identificar uma notável ambivalência: à medida em que o acesso à rede representa uma fonte de novas possibilidades para o sujeito de direito, por dilatar garantias de acesso e interações comunicativas, traz consigo também riscos para o exercício de outras prerrogativas e até a potencialidade de conflitos entre direitos fundamentais, além de intensificar quadros de desequilíbrio e exclusão.

Por isso, faz-se necessária uma leitura cautelosa das circunstâncias que compõem o ambiente digital, orientada tanto pela perspectiva crítica oferecida pela doutrina quanto pelos indicadores bastante instrutivos tabulados pelo Cetic.br. A base argumentativa oferecida pelo cruzamento dessas informações permite reconhecer demandas pela ampliação do desempenho de direitos individuais e coletivos e pela premente mitigação de desigualdades advindas das particularidades do acesso (ou ausência de acesso) à Internet.

À luz dos instrumentos regulatórios de matriz internacional, a conjuntura brasileira parece estar aquém do que se estima para uma participação livre na vida cultural da comunidade, em especial quando se parte da premissa que uma parcela expressiva dessa vida cultural acontece hoje no ciberespaço – demandando, consequentemente, o domínio dos equipamentos tecnológicos e o adequado acesso à rede para seu alcance.

Os dados supramencionados corroboram essas constatações. Embora em termos absolutos haja um número cada vez maior de brasileiras e brasileiros com acesso à rede, não se pode desconsiderar que permanecem no país os desafios do abismo informacional e do desequilíbrio nas condições de conectividade. Isso é traduzido, por exemplo, em números muito menos expressivos de usuários da Internet na classe DE e nas zonas rurais – grupos que já estão às margens de muitos processos sociais, portanto.

Além disso, são sensíveis os fatores relatados para justificar a ausência de acesso – falta de habilidade tecnológica e alto custo dos equipamentos, entre outros – notadamente mais recorrentes nas áreas rurais, entre indivíduos analfabetos ou apenas com Educação Infantil e com renda familiar de até um salário-mínimo. Como resultado, são mantidas no ambiente digital as desigualdades informacional, educacional e cultural – sob determinadas circunstâncias, até com mais intensidade que antes –, ainda que à primeira vista a virtualização das relações sociais possa aparentar a democratização do acesso à rede, por atingir um número maior de pessoas em termos absolutos.

Em contrapartida, é imperioso reconhecer o papel determinante que a tecnologia desempenha na otimização de muitas das dinâmicas da cadeia cultural. A aplicação de ferramentas tecnológicas com vistas ao aprimoramento das práticas culturais manifesta-se em numerosos exemplos. Dentre eles, é possível destacar o incremento da preservação e do desenvolvimento das culturas tradicionais ao possibilitar novas formas de documentação; a capacitação das culturas, vez que o aparato tecnológico pode ser usado para identificação, interação, entretenimento e troca de ideias; e, ainda, a promoção de novas oportunidades de comercialização de recursos culturais, incluindo performances, habilidades manuais, artes visuais e outras expressões culturais. Além disso, a tecnologia pode inclusive viabilizar o monitoramento de exploração ilícita de recursos culturais, colaborando para a materialização do direito das coletividades a seu respectivo patrimônio cultural (Steiner, 1999, p. 55).

Assim, quando se considera o desempenho dos direitos culturais, especialmente o que diz respeito à universalização do acesso à fruição e à produção cultural, é notório que as tecnologias da sociedade informacional ampliaram de maneira significativa “as possibilidades de acesso às obras em suas mais variadas formas, e com elas à cultura” (Adolfo, 2006, p. 291). Em outras palavras, o acesso à Internet e a todo o fluxo informacional que nela circula representa uma das formas de materialização dos direitos culturais, resgatando inclusive a definição de acesso cultural lecionada por Teixeira Coelho (2012).

O desequilíbrio revelado pelas pesquisas do Cetic.br na consumação desse acesso acende o alerta para refletir sobre métodos de realização e aprimoramento do desenvolvimento sociocultural, na medida das necessidades específicas dos variados públicos e com especial atenção para aqueles já preteridos na dinâmica social. Nesse cenário, as políticas públicas têm um papel substancial ao buscar mecanismos para mitigar as desigualdades e promover a inclusão sociocultural pela inclusão digital, de forma a asseverar a eficácia dos direitos previstos internacionalmente.

Trata-se também de materializar o previsto na Constituição Federal, que dentre outros dispositivos que tangenciam o tema determina em seu artigo 215 que “[o] Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Ainda, determina que compete comumente a todos os entes federados “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação” (art. 23, V).

No plano infraconstitucional, o Marco Civil da Internet (MCI), introduzido no ordenamento brasileiro pela Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, é também uma das fontes que oferece diretrizes para orientar a atuação estatal no necessário equacionamento da relação entre o acesso ao aparato tecnológico e a realização dos direitos culturais. Como instrumento regulatório, o diploma representou um documento de caráter inovador e relativamente democrático desde as primeiras etapas de sua elaboração, que contou, inclusive, com a participação popular direta por uma ferramenta colaborativa online. No item em que disciplina o uso da Internet no Brasil, o MCI sustenta a necessária promoção “do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos” em seu artigo 4º, inciso II (Brasil, 2014).

A relevância deste diploma normativo é notada especialmente na relação entre a salvaguarda dos direitos culturais e as diretrizes que devem guiar a rede cibernética brasileira. Ao determinar que a condução do uso da Internet no país seja pautada, dentre outros, pelo princípio da acessibilidade e interação com a cultura – que permitirão a efetiva “participação na vida cultural” – o MCI se alinha à proposta constitucional e também às diretivas internacionais da UNESCO anteriormente destacadas.

Diante de todo o exposto cumpre salientar, por fim, que as atividades culturais resultantes do adequado acesso aos recursos tecnológicos não devem ser fomentadas no sentido de sobrepor ou substituir as demais dinâmicas de cultura. Trata-se de uma lógica de complementaridade, em que as ferramentas digitais ampliam as possibilidades de fruição cultural ao materializar oportunidades que não seriam exitosas ou sucederiam de maneira precária no ambiente analógico. Ademais, vale registrar que as práticas culturais online “têm grande potencial de alcance, sobretudo no cenário de isolamento social” (NIC.BR, 2020, p. 80), constatação que reforça sua relevância para o fortalecimento das garantias individuais e coletivas no âmbito cultural, inclusive em períodos de crise.

6. Consideracões finais

A partir de referências doutrinárias, regulatórias e estatísticas, a pesquisa relatada buscou evidenciar aspectos jurídicos e socioculturais da participação tecnológica brasileira no contexto da sociedade informacional, de modo a debater o acesso à Internet enquanto a realização de um direito cultural.

Para tanto, procedeu-se primeiramente à contextualização introdutória do paradigma tecnológico e do modo de desenvolvimento informacional, fatores elementares para a compreensão do protagonismo das TICs nas relações sociais e no exercício de direitos individuais e coletivos. A leitura analítica desse cenário combinada à fundamentação teórica da doutrina dos direitos culturais torna possível o reconhecimento de novos modos de promoção do acesso cultural no ambiente digital, tanto a partir das formas inovadoras de produção de bens culturais quanto pelas possibilidades ampliadas de aproximar-se desse conteúdo.

Evidentemente, os direitos de acesso à cultura, de preservação do patrimônio cultural e de participação na vida cultural da sociedade, entre outros, antecedem esses movimentos. Mesmo antes da consolidação da Internet como veículo de acesso à informação e de compartilhamento da produção cultural, os documentos internacionais – com destaque para a Declaração Universal dos Direitos Humanos e para as Convenções da UNESCO – já evidenciavam a relevância desses direitos e o dever dos Estados signatários em garantir os meios apropriados para sua consecução.
No contexto da sociedade informacional, porém, a realização dos direitos culturais ganha novos contornos e não está imune a adversidades. Por um lado, é possível reconhecer a potencial ampliação das garantias individuais e coletivas, ao se considerar a vasta gama de possibilidades interativas ofertadas pelo ambiente digital; por outro, sobressai o desequilíbrio inerente ao tecido sociocultural brasileiro, ao serem intensificadas as desigualdades já existentes em variados aspectos da participação tecnológica no país.

Os dados coletados pelo Cetic.br ilustram essas constatações rigorosamente. Como reiterado pelo relatório TIC Domicílios, as diferentes formas de exclusão digital – que não se resume apenas à ausência de acesso à Internet – reforçam as disparidades educacionais e culturais já presentes na sociedade e contribuem para o agravamento do abismo informacional.

Dentre os pontos apresentados, destaca-se a precariedade nas condições de conectividade, que abrange desde o tipo de dispositivo utilizado até a qualidade do sinal de rede e está diretamente vinculada ao grau de aproveitamento de oportunidades no ambiente digital. Portanto, as atividades online – incluindo as culturais – são menos fruídas por aqueles que acessam a Internet apenas por dispositivos móveis, ou seja, 85% dos usuários da classe DE. Além disso, deve-se recordar que pelo menos ¼ da população brasileira não tem nenhum tipo de acesso à rede, estando as atividades culturais digitais definitivamente fora da realidade desses indivíduos, embora também sejam destinatários das previsões normativas.

O acesso à cultura é dimensionado não apenas pela possibilidade de consumo dos bens de conteúdo cultural, mas também pelo alcance dos equipamentos de produção desses bens, que devem estar acessíveis aos indivíduos e grupos sociais para que livremente criem e transmitam suas manifestações culturais. A penetrabilidade social dessas ferramentas é determinante para garantir a adequada participação da sociedade na vida cultural, em observância às recomendações de matriz internacional e ao próprio ordenamento jurídico pátrio que as segue.

Assim, entende-se que estar conectado à rede significa desempenhar um direito cultural em sua essência, à medida em que promove o contato dos indivíduos com suas próprias manifestações e viabiliza o resgate dos vínculos das coletividades com suas raízes e tradições, entre outras possibilidades de criação e fruição cultural. A plena realização deste direito, porém, está condicionada ao balanceamento de condições de acesso, sem as quais não é possível considerar que exista efetiva participação cultural de toda a sociedade.

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Marcelle Cortiano marcellecortiano@gmail.com

Mestra em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Bacharel em Direito (UFPR) e Comunicação Social – Publicidade e Propaganda (UFPR). Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial (GEDAI/UFPR) e membro da Clínica de Direito e Arte da UFPR. Membro da Comissão de Assuntos Culturais da OAB/PR. Autora do livro “Acervos artísticos no ambiente digital: a proteção autoral, o acesso à cultura e a função social das instituições artísticas na contemporaneidade”.