<span class="sans">Limites à liberdade de expressão na internet em julgamentos no Brasil e na Alemanha: </span>democracia e disputa entre fascismo e antifascismo

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Ana Carolina Brandão da Silva,
Carlo José Napolitano
Enrico Lentini Gibotti
Lucas Catib de Laurentiis
Matheus Ramalho Orlando
Milena Fernanda de Brito
Tatiana Stroppa

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volume 4 / número 2 / dez 2023 ↘ Artigo

Limites à liberdade de expressão na internet em julgamentos no Brasil e na Alemanha: democracia e disputa entre fascismo e antifascismo

Ana Carolina Brandão da Silva & Carlo José Napolitan & Enrico Lentini Gibott & Lucas Catib de Laurentii & Matheus Ramalho Orlando & Milena Fernanda de Brito & Tatiana Stroppa

Resumo

Este texto analisa decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro e pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (TCFA) em casos que envolvem a fixação de limites à liberdade de expressão diante de discursos ou manifestações, divulgados e compartilhados na internet, no âmbito da disputa entre fascismo e antifascismo, incluindo um caso de possível comprometimento da atividade do Senado Federal brasileiro. O objetivo deste trabalho é identificar um potencial padrão decisório sobre como tais cortes enfrentam situações em que há conflito entre a liberdade de expressão e outros valores constitucionais e democráticos. Para isso, foram descritos e analisados cinco casos, dois do Brasil e três da Alemanha, definidos e triados a partir de uma busca nos portais das cortes. Utilizou-se a técnica de análise empírica de jurisprudência, em perspectiva comparada, para cumprir o intuito do trabalho. O trabalho conclui que nos casos analisados houve uma prevalência da liberdade de expressão em detrimento de outros direitos. Em virtude do número de ações analisadas, não é possível identificar um padrão decisório das cortes brasileira e alemã. No entanto, é certo que novas demandas envolvendo o posicionamento sobre discursos antifascistas, por um lado, e de defesa de ideias fascistas e intolerantes, por outro, desembocarão nos tribunais, pois a intolerância política e as disputas em torno do tema estão em ascensão, o que traz o alerta de que será necessário continuar monitorando e investigando o assunto.

1.Introdução

Este texto1 tem o objetivo de relatar e analisar de que modo os tribunais constitucionais brasileiro e alemão se posicionaram em casos sobre fascismo e antifascismo quando estas temáticas estiveram relacionadas à liberdade de expressão na internet.

Para isso, são analisados cinco casos, dois do Brasil e três da Alemanha. No âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), a corte brasileira, analisam-se a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 722 e a Ação Cível Originária (Petição 9068). Já sobre o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (TCFA), são avaliados os seguintes processos: 1 BvQ 22/01, 1 BvQ 42/19 e 1 BvR 1072/012.

Os cinco processos aqui descritos foram selecionados a partir de buscas sobre casos envolvendo fascismo e antifascismo nos arquivos dos dois tribunais, uma vez que essas questões estão intrinsicamente relacionadas a discussões sobre os limites da proteção constitucional da liberdade de expressão. No centro desse debate está um dilema: se por um lado há o interesse em defender o direito de que todas as pessoas e grupos possam se expressar, por outro existe a preocupação de que essa liberdade seja empregada de modo a manifestar preconceitos, discursos de ódio e ataques ao regime democrático.

A intenção do presente artigo é analisar o cerne dos cinco processos que compõem o corpus, o que é feito por meio dos seguintes questionamentos: qual foi o pedido feito na ação? Quem propôs a ação? Quais foram os elementos fáticos e legais? E qual a decisão do tribunal? A partir das respostas, pretende-se concluir se as cortes privilegiaram a liberdade de expressão ou algum outro direito, e de que modo se deram as argumentações que amparam as decisões proferidas.

Para alcançar esse objetivo específico, utilizou-se a técnica de análise documental e empírica de jurisprudência, em perspectiva comparada. No caso do Supremo Tribunal Federal, fez-se a leitura das decisões proferidas pela corte, analisando-se a ementa, o relatório, o voto do ministro relator e os votos divergentes, caso existentes. Em relação aos julgados do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, uma técnica similar foi aplicada, com as devidas adaptações necessárias, considerando que o formato dos julgamentos é diverso.

Nesses casos, são analisados: 1) o dispositivo da decisão (Leitsatz); 2) a situação que ocasionou a demanda; 3) os fundamentos da decisão (Gründe), excluídos os aspectos processuais tratados na decisão (admissibilidade, legitimidade ativa, entre outros). Este texto está estruturado da seguinte maneira: inicialmente, é proposta uma contextualização a respeito da definição de fascismo e de antifascismo, conceitos relevantes para a análise. Na sequência, cada um dos cinco processos é detalhado e analisado separadamente: primeiro, os julgamentos ocorridos no Brasil; depois, os alemães. Por fim, são apontadas considerações indicando que, nos casos analisados, houve prevalência da liberdade de expressão em detrimento de outros direitos. Todavia, em virtude número de ações analisadas, não é possível identificar um padrão decisório do STF e do TCFA. No entanto, é certo que novas demandas envolvendo o posicionamento de antifascistas e de extremistas surgirão em ambos os tribunais, pois partidos e personalidades de extrema-direita continuam em atividade nos dois países, o que traz o alerta de que será necessário continuar monitorando e investigando o assunto.

Destaca-se a atualidade e a importância da discussão aqui proposta, dada a ascensão, nos últimos anos, de posicionamentos extremistas, autoritários e excludentes em todo mundo – com políticos partidários desse tipo de pensamento chegando até mesmo a ocupar cargos importantes no cenário internacional, o que justifica o tema do artigo (Correia, 2023; Isto É, 2023). Ademais, ressalta-se o caráter interdisciplinar deste trabalho, o qual propõe um estudo que tem a internet como pano de fundo na intersecção entre os campos do direito e da comunicação.

Fascismo e antifascismo: uma contextualização

O termo fascismo, originalmente, se referia ao movimento surgido na Itália nos anos 1920 que tinha Benito Mussolini como líder. A palavra “fascio”, da qual fascismo se originou, significa feixe: trata-se da retomada de um símbolo de autoridade da Roma Antiga, um feixe de varas. Tal simbologia é representativa de algumas das características do fascismo, que era uma ideologia racista, autoritária, discriminatória, antidemocrática e antiliberal, além de fazer uso da repressão e da violência (Finchelstein, 2019).

Além disso, o fascismo tinha uma base mítica, valorizava o poder do líder e as ideias de povo e nação. Minava a democracia a partir das próprias estruturas democráticas para construir um regime totalitário – sempre com o uso da violência como um instrumento político. Uma das principais marcas do fascismo era a divisão da sociedade.

O fascismo tinha raízes que remetiam aos contextos italiano e europeu e era uma espécie de reação a ideais iluministas surgidos e desenvolvidos nos séculos anteriores, mas era amplo e mutável o suficiente para que se espalhasse e se adaptasse a outras localidades. Assim, movimentos análogos ao fascismo italiano apareceram em inúmeros países, muitas vezes sendo rebatizados e recebendo contornos próprios das novas realidades locais, como o nazismo, na Alemanha, e o integralismo, no Brasil.

Esta mutação do fascismo, seja de maneira mais ou menos drástica, a depender do contexto, tornou-se possível não apenas como uma forma de sobrevivência da ideologia no campo social e político, mas também por conta de uma particularidade temporal em seu surgimento. A constituição relativamente tardia do fascismo na história exigiu que o movimento se apropriasse de elementos que ainda não tivessem sido adotados diretamente por outras ideologias, preenchendo lacunas que captariam a atenção popular (Berezin, 2019).

Desse modo, o fascismo se difundiu e ganhou variações e vertentes específicas em cada lugar a que chegou, mas sempre se constituiu, naquele contexto entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a partir dos preceitos centrais do fascismo italiano: ultranacionalismo, autoritarismo, antissocialismo e intolerância, além do fato de ser centrado no poder absoluto do líder, que falava e agia em nome do povo e da nação. Foi uma ideologia que alcançou proporções mundiais (Finchelstein, 2019). Alemanha e Itália, países em que o fascismo efetivamente chegou ao poder, foram
derrotadas na Segunda Guerra Mundial, a qual terminou em 1945. Contudo, ideias fascistas continuaram em voga – não só naqueles países – e, durante as décadas seguintes, passaram a circular em diferentes cenários políticos e sociais ao redor do mundo. Assim, ainda que o governo fascista italiano tenha sido destituído, o termo fascismo continuou sendo utilizado para se referir a ideias semelhantes à do fascismo italiano pioneiro.

Há divergências, na comunidade acadêmica, sobre a adequação do termo fascismo (Stanley, 2020). Alguns autores, como Traverso (2019), defendem que fascismo se restringiria àquele momento específico da Itália da primeira metade do século 20: para eles, movimentos análogos ao fascismo italiano devem ser chamados de outras maneiras, como neofascismo, protofascismo ou pós fascismo. Outros, como Stanley (2020) e Eco (2020), contudo, ponderam que o conceito se expandiu e pode ser aplicado a contextos, locais e momentos históricos diferentes do original.

A dificuldade em identificar a terminologia mais adequada para movimentos, eventos históricos, sociais, e ideologias que se assemelham ao fascismo recai em outra particularidade: o fato de que fascismo, assim como o nazismo, integrantes de uma mesma árvore genealógica, foram ideologias derrotadas e reconhecidas como inimigas pelos países que não as adotavam. Portanto, a aplicação do termo fascismo está atrelada ao seu passado, posicionando-o como pária na segunda metade do século 20 (Eatwell, 2017).

Em função deste rótulo que o fascismo veio a herdar, um afastamento desta terminologia aflora como um possível percurso visando a sua manutenção. O ímpeto fascista, enquanto ideologia política que efetivamente busca sobreviver no espaço como uma escolha possível em contendas eleitorais, mantém seus elementos constitutivos, mas altera sua aparência externa como uma forma de dissociar-se do estereótipo pejorativo que carrega. O populismo é o resultado desta metamorfose e constitui um capítulo ainda não terminado na história (Fichelstein, 2019). Essa própria relação não é totalmente reconhecida, seja pelos adeptos do fascismo ou do populismo, e a utilização de uma terminologia ou outra constitui, ainda que de maneira contestável, uma opção do indivíduo ou grupo que se alinha ideologicamente neste sentido.

Independentemente de preferências, um fato concreto é que o termo fascismo é empregado, na atualidade, de maneira mais ampla. Isto é, sociedade, meios de comunicação e até mesmo governos utilizam a palavra fascismo para se referir a pessoas, grupos e ideologias de extrema-direita que partilham características como nacionalismo exacerbado, autoritarismo, totalitarismo, militarismo, desprezo pela cultura democrática e aversão ao pluralismo político, comportamental, sexual e artístico (Stanley, 2020; Eco, 2020).

Este texto não tem a pretensão de discutir a correção do termo do uso fascismo, mas aceita que a palavra é a mais disseminada para definir uma determinada ideologia, tanto que o termo chega a ser citado em decisões de cortes constitucionais. Assim, quase tão antigo quanto a palavra fascismo é o vocábulo antifascismo. De acordo com Bray (2019), a oposição ao fascismo apareceu e se organizou antes mesmo que políticos fascistas chegassem ao poder na Europa. Naquele momento entre as duas guerras mundiais, integravam os movimentos antifascistas grupos à esquerda no espectro ideológico, como comunistas, socialistas e anarquistas.

Com o passar dos anos, à medida em que fascismo se consolidou como um verbete adotado e compreendido, antifascismo também prosseguiu como uma palavra difundida para se referir aos movimentos de oposição ao fascismo. Essas terminologias se tornaram bastante recorrentes no século 21, quando políticos com características fascistas ganharam visibilidade, apoio popular e até mesmo eleições (Stanley, 2020).

Na contemporaneidade, o antifascismo não se configura como um movimento central organizado, tampouco como um partido político, mas se refere a ações, grupos ou indivíduos que se mobilizam com o objetivo de evitar a propagação de ideias consideradas fascistas (Jourdan; Rosa, 2020). Trata-se de uma ideologia difusa e presente em diversos contextos que se notabiliza, principalmente, por se opor ao fascismo. No Brasil, por exemplo, o termo antifascismo ganhou destaque, notadamente, durante o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022): pessoas, com destaque para usuários de redes sociais na internet, passaram a se definir como antifascistas para marcar oposição ao então chefe do Executivo. Foi nesse contexto de disputas de narrativas que discussões sobre a liberdade de expressão de manifestações fascistas e antifascistas se tornaram objeto de análise nos tribunais constitucionais do Brasil e da Alemanha, tal qual este artigo relata e analisa.

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 722: Dossiê Antifascista

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 722 tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF) entre 2020 e 2022. Na ação, a Rede Sustentabilidade questionou a constitucionalidade de uma investigação sigilosa iniciada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ) contra 579 servidores públicos e professores, que seriam associados a “movimentos antifascistas”. De acordo com o autor da arguição, tratava-se de ato de perseguição do governo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) contra servidores públicos e professores considerados integrantes destes movimentos. No desfecho do caso, a corte, por maioria, considerou inconstitucional o chamado “Dossiê Antifascista”.

O partido ingressou com a arguição em julho de 2020, depois que veículos de comunicação noticiaram que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) elaborou um dossiê sobre pessoas críticas ao então presidente Bolsonaro. O material produzido pelo governo reunia nomes, fotografias e endereços de redes sociais dos cidadãos monitorados e foi distribuído a órgãos públicos diversos. A Rede Sustentabilidade afirmava que, com isso, o Ministério da Justiça realizou uma ação sigilosa contra opositores do governo, o que seria “um aparelhamento estatal em prol de perseguições políticas e ideológicas” (Brasil, 2020, p. 3).

A linha argumentativa da Rede Sustentabilidade dizia que o dossiê violava preceitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição (Brasil, 1988), como liberdade de expressão, direito à intimidade, à vida privada e à honra, liberdade de reunião e liberdade de associação. O partido também afirmava que a investigação confundia interesses nacionais com interesses do ex-presidente da República e que o objetivo da investigação era arrefecer o discurso contrário, sem que houvesse risco considerável à segurança pública ou à integridade nacional.

Em agosto de 2020, a ministra do STF Carmen Lúcia, designada como relatora da ADPF 722, votou pelo deferimento de medida cautelar para suspender qualquer ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública que tivesse o objetivo produzir ou compartilhar informações sobre a vida pessoal, as escolhas pessoais e políticas, as práticas cívicas de cidadãos e de servidores públicos alinhados ao movimento antifascista.

A relatora considerou ilegítimo que órgãos estatais investigassem, sem o devido processo legal, cidadãos que exerciam o direito de se manifestar. Lembrou ainda a necessidade de o Estado contar com serviços de inteligência, mas desde que as ações fossem mantidas dentro dos limites constitucionais e legais. Para ela, o dossiê não era apenas um risco à democracia e aos direitos fundamentais, mas também um desvio de finalidade do aparato estatal (Brasil, 2020).

Ponderou que na Constituição brasileira são asseguradas as manifestações livres de expressão, de reunião e de associação, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da honra, conferindo-se a todos liberdade para veicular ideias e opiniões e para se reunirem e também para se associarem. Por outro lado, a relatora ressaltou que a liberdade de expressão, como todo direito fundamental, não apresenta caráter absoluto e tampouco constitui escudo para imunizar autor de delitos como ameaça, incitação a crimes ou infrações contra a honra. “Este Supremo Tribunal Federal tem proclamado que ‘a Constituição autoriza a imposição de limites aos direitos fundamentais quando necessários à conformação com outros direitos fundamentais igualmente protegidos’”, pontuou Carmen Lúcia (Brasil, 2020, p. 35).

Dias depois, ainda em agosto de 2020, o Plenário do STF, por maioria, referendou a medida cautelar. Acompanharam a relatora os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, além do então presidente do Supremo, Dias Toffoli. Por entender que a ADPF foi a via inadequada para discutir o fato, o ministro Marco Aurélio foi o único a divergir – o ministro Celso de Mello, à época decano da corte, esteve ausente por licença médica. Com isso, foi deferido o pedido formulado na arguição, em caráter liminar, para suspender todo e qualquer ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública de produção ou compartilhamento de informações sobre o referido Dossiê Antifascista.

O mérito da ação foi discutido em maio de 2022, quando o Plenário do STF, novamente por maioria, manteve o entendimento inicial e declarou o dossiê inconstitucional. Os ministros Nunes Marques e André Mendonça, que haviam sido indicados ao Supremo por Bolsonaro, foram os únicos a não acompanhar a relatora Carmen Lúcia. Enquanto André Mendonça se declarou suspeito para julgar a ação porque era ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro na época da elaboração do material, Marques apontou não ter havido comprovação de que atos do governo tivessem violado garantias constitucionais, tratando-se apenas relatórios cujo objetivo era assegurar a segurança pública e prevenir tumultos, agressões físicas e depredação do patrimônio público e privado.

Em seu voto, Carmen Lúcia destacou novamente que o artigo 5º da Constituição assegura as manifestações livres de expressão, de reunião e de associação, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da honra, e que todos os cidadãos dispõem de liberdade para veicular ideias e opiniões e para se reunirem e também para se associarem. A ministra citou casos do próprio STF em que a liberdade de expressão foi objeto de análise e apresentou cartas internacionais que abordam o assunto. A ministra afirmou que acredita que o direito de expressar o pensamento é um dos pilares de sustentação da própria democracia.

Ação Cível Originária (PET 9068)3: limites à liberdade de expressão e o Ministério Público Federal no caso Deltan Dallagnol x Renan Calheiros

A Petição (PET) 9068, uma ação cível originária4, terminou com punição de censura a Deltan Dallagnol. No dia 8 de setembro de 2020, por nove votos a um, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu punir com pena de censura5 Deltan Martinazzo Dallagnol, à época procurador da República, pela publicação de uma mensagem na rede social Twitter (hoje chamado de X) se posicionando contra a eleição do senador Renan Calheiros (MDB-AL) para a presidência do Senado em 20196. Este caso não envolveu diretamente conteúdos discursivos fascistas. Todavia, foi analisado neste trabalho porque Dallagnol, segundo consta no julgamento, incentivou, por meio de sua conta no antigo Twitter, uma campanha contra o sistema de votação no Senado Federal para a escolha de seu presidente. Por isso, compreende-se que a discussão está enquadrada no cenário nacional que envolve a atuação do STF para definição do que está abrangido pelo direito de expressão e também se insere na discussão a respeito de movimentos e modelos de atuação política fascista, tendo em vista que tais movimentos políticos têm, em geral, como característica comum a defesa de um sistema de governo carismático e antirrepresentativo. No início de 2020, o então procurador compartilhou a seguinte mensagem em seu perfil: “Se Renan for presidente do Senado, dificilmente veremos reforma contra corrupção aprovada. Tem contra si várias investigações por corrupção e lavagem de dinheiro. Muitos senadores podem votar nele escondido, mas não terão coragem de votar na luz do dia”. Tal mensagem gerou reação do parlamentar citado, que ajuizou reclamação disciplinar sob a alegação de que Dallagnol teve o intuito de interferir na disputa pela presidência do Senado, violando assim, deveres ético-profissionais de seu cargo. Para Calheiros, as manifestações do procurador configurariam abuso do direito de liberdade de expressão por parte de um membro do Ministério Público Federal.

O julgamento e a posterior decisão do Conselho ocorreram após o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), derrubar efeitos de uma liminar a pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) que suspendia o processo administrativo contra Dallagnol no CNMP.

Para o relator do caso no Conselho, Otávio Rodrigues, o então procurador “ultrapassou os limites da simples crítica, com manifestação pessoal desconfortável à vítima” e “atacou de modo deliberado não só um senador da República, mas ao Poder Legislativo” (D’Agostino, 2020). Enfatizou ainda que reduzir o caso a um debate sobre liberdade de expressão é ignorar o imenso risco à democracia. De acordo com Rodrigues, um membro do Ministério Público não deve realizar manifestações públicas, já que tal ação coloca em risco a sua isenção perante a sociedade.

Após a decisão do CNMP, o então coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba recorreu ao Supremo com o intuito de trancar o Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) registrado no CNMP com o número 1.00982/2019-48 e, consequentemente, anular sanção disciplinar aplicada pelo CNMP alegando que a punição foi indevida, tendo em vista que, em sua visão, apenas exerceu sua liberdade de expressão e que suas declarações foram “apenas relatos, um fato objetivo que agrega uma análise de cenário sobre o futuro das reformas anticorrupção” (Carta Capital, 2023). Além disso, ressaltou que o caso já havia sido apreciado pela Corregedoria do Ministério Público Federal, e que a decisão do Conselho violou a ampla defesa pelo processo ter sido incluído em pauta sem o encerramento da instrução.

Em 30 de março de 2021, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal formou maioria para manter a pena de censura aplicada ao procurador. O relator do caso, ministro Kassio Nunes Marques, negou o recurso de Dallagnol e foi acompanhado por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Em relação aos pontos apresentados pela defesa do procurador, Nunes Marques apontou que a eventual decisão da Corregedoria não impactaria a competência do CNMP, já que é possível rever decisões do órgão.

Apontou também que, diferentemente do que alegava Dallagnol, não houve violação à ampla defesa. Para o ministro Nunes Marques, em órgãos colegiados o relator pode pedir a inclusão do processo em pauta sem ter terminado a instrução, desde que, quando julgado, a fase tenha sido concluída:

Também não percebo qualquer malferimento ao devido processo legal na circunstância de o relator haver pedido a inclusão do feito em pauta sem ainda ter sido concluída a instrução do PAD. Ora, em órgãos colegiados, como se sabe, a inclusão em pauta é uma atribuição da Presidência do órgão, cabendo ao relator estimar a data em que estará preparado para apresentar o seu trabalho — isto é, o relatório e o voto — e requerer à Presidência a inclusão em pauta. No caso do CNMP, como também do CNJ, sabe-se que há uma pauta bastante congestionada, de maneira que o relator pode, eventualmente, para ajustar o seu ritmo de produção, pedir a inclusão do feito em pauta enquanto paralelamente trabalha na conclusão da instrução, desde que, na data do julgamento, o trabalho esteja, de fato, concluído (Brasil, 2021, p. 4).

Em relação à liberdade de expressão, Nunes Marques fundamentou seu voto levando em consideração questões como a impossibilidade de se prever a existência das redes sociais na época em que as leis de regência da Magistratura e do Ministério Público foram editadas. Tal situação, como reconhecido pelo ministro, implicaria em uma anomia. No entanto, para ele, não é possível deixar de resolver situações que afetam o funcionamento e imagem das instituições.

Marques apontou que, como forma de fazer frente a essa questão, o Conselho Nacional de Justiça editou em 2019 uma resolução para disciplinar a questão do uso das redes sociais pelos juízes. Reconheceu também que, apesar de o Conselho Nacional do Ministério Público não ter editado normativa a respeito do tema, o órgão já havia punido membros do MP por publicações inadequadas em redes sociais utilizando estatutos das respectivas carreiras. O relator pontuou ainda que a falta de disciplina legal clara e específica sobre a temática das manifestações em redes sociais certamente cria insegurança jurídica. Porém, ressaltou a necessidade de algum tipo de controle em relação aos excessos de autoridades públicas. Na visão do ministro, publicações com conteúdos que tangenciam a política partidária ou que objetivam estabelecer algum tipo de crítica direta e específica a certos agentes políticos são problemáticas, pois abrem margem para a interpretação por parte da população de que membros do Ministério Público têm “um lado” na política, além de colocar em dúvida a sua imparcialidade. Outro ponto ressaltado por Nunes Marques diz que, caso a publicação que suscitou ação tivesse sido feita por um cidadão que não ocupasse um cargo eletivo ou que não fosse uma autoridade pública, estaria completamente compatível com a liberdade de expressão. Nessa situação específica, o cidadão estaria emitindo sua opinião política, a despeito da procedência ou não da afirmação. No entanto, quando “essa manifestação parte de uma autoridade que tem certas garantias e vedações constitucionais justamente para manter-se fora da arena política, então há um problema” (Brasil, 2021, p. 7). No que diz respeito à liberdade de expressão, o magistrado também ressaltou em seu relatório que se trata de um direito fundamental que precisa ser compatibilizado com outros direitos e deveres previstos na Constituição Federal. Em relação aos membros do Ministério Público, citou a cláusula constitucional que remete ao regime jurídico da Magistratura para fundamentar seu voto. De acordo com ele, no modelo brasileiro de MP, os membros do órgão têm os mesmos direitos, garantias e vedações da Magistratura.

Em divergência ao relator, o ministro Edson Fachin julgou procedente o pedido de Dallagnol. Para o ministro, as garantias constitucionalmente asseguradas aos membros do MP “não autorizam a mitigação da amplitude do direito à liberdade do pensamento e da opinião, sendo necessário que se configure ofensa qualificada a outros direitos constitucionalmente garantidos para tanto” (Brasil, 2021, p. 6).
Segundo Fachin, o exercício da liberdade de expressão por parte de um procurador, por si só, mesmo que em tom crítico, não compromete a dignidade do Ministério Público. Outro ponto, de acordo com o voto divergente, é o fato de que as publicações não interferiram de fato no processo decisório do Senado. Fez ainda a ressalva de que o STF já havia decidido que críticas a autoridades políticas estão em consonância com um regime democrático robusto e que configurariam exercício do direito de opinião. Em síntese, o ministro ressaltou que o caso extrapola a manifestação de Dallagnol, podendo estabelecer um precedente de embaraço ao direito de manifestar crítica.

Por fim, a ministra Cármen Lúcia, assim como Fachin, considerou procedente o pedido, destacando a inexistência de norma constitucional, legal ou regulamentar que restrinja a liberdade de expressão nas redes sociais. Além disso, de acordo com a ministra, manifestações críticas sobre fatos políticos pelos membros do MP também não são proibidas. Ao final de seu voto, apesar de reconhecer que agentes públicos não devem se tornar comentaristas ou ativistas, podendo ao agir dessa maneira, gerar danos à imagem das instituições, na democracia, a liberdade de expressão deve ser zelada até mesmo quando exercida de maneira demasiada. Por maioria de votos, a corte julgou improcedentes os pedidos do então procurador, mantendo, assim, a punição imposta, de censura. Decisão do Partido Nacional Democrático da Alemanha: reunião da direita radical Os elementos fáticos da 1 BvQ 22/01 dizem respeito a uma solicitação do Partido Nacional Democrático da Alemanha (NPD)7, partido de direita radical, ao Estado da Renânia do Norte-Vestfália para a realização de uma manifestação no dia 1º de maio de 2001, na cidade de Essen. A intenção do NPD era promover “uma manifestação com um comício sob o tema ‘Contra o dumping social e o desemprego em massa’” (Alemanha, 2001, p. 1), que aconteceria no centro da cidade de Essen, para cerca de 500 pessoas, no dia 1º de maio, em 2001.
Em 3 de abril de 2001, pouco menos de um mês antes da data marcada para a reunião, autoridades de Essen ordenaram a proibição do evento. A justificativa da proibição foi que a realização da reunião do NPD no dia 1º de maio, data em que se celebra o Dia do Trabalhador em todo o mundo, colocaria a ordem pública em risco. Isso porque o dia 1º de maio tem um significado político e social simbólico, com o compromisso histórico ligado ao movimento operário de orientação socialista. “Com o seu reconhecimento como feriado, a legislatura reconhece a contribuição do movimento trabalhista para o estabelecimento de uma democracia livre” (Alemanha, 2001, p. 2). Por sua vez, o NPD, possui raízes ligadas ao extremismo de direita e até mesmo ao neonazismo:

Uma manifestação do NPD, que utiliza o caráter simbólico do Primeiro de Maio, inevitavelmente evoca associações com a perversão e instrumentalização do feriado do movimento operário pelo regime nacional-socialista. Ao mesmo tempo, ela lembra a derrota e repressão do movimento trabalhista no Terceiro Reich. Isso se aplica em particular à cidade de Essen, que foi um dos principais alvos da repressão nacional-socialista contra os sindicatos. (Alemanha, 2001, p. 2) A justificativa para a proibição do evento aponta semelhanças entre as falas e o pensamento político do NPD e o nacional-socialismo do Terceiro Reich, reforçando que a realização da reunião poderia ofender as pessoas que estariam comemorando a data do movimento trabalhista. Como consequência, o Partido Nacional Democrático apresentou impugnações em tribunais administrativo, local e superior.

Ao analisar o caso, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha concluiu que a fundamentação pela proibição da reunião é insustentável do ponto de vista jurídico. De acordo com o TCFA, o direito fundamental à liberdade de reunião é também um direito fundamental que garante às minorias o direito de se expressar e que deve ser garantido a todos mediante a
análise das situações. Ainda que a rejeição do nacional-socialismo tenha sido amplamente aplicada na Lei Básica da Alemanha, as garantias gerais do Estado de direito incluem a liberdade de reunião e seus limites. De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, as proibições de reuniões só podem ser aplicadas para proteger interesses jurídicos elementares, sendo que a mera menção à ameaça à ordem pública geralmente não é suficiente. (Alemanha, 2001). O TCFA acrescentou apontamentos referentes ao caso que podem ser inseridos neste relato como maneira de síntese do pensamento que prevaleceu nesta decisão estudada. Em um deles, o tribunal considera que, mesmo que a ideologia extremista defendida pelo NPD seja contrária à Lei fundamental, o combate a essa ideologia deve ocorrer com base em parâmetros legais e com base nas garantias e direitos previstos no texto constitucional. Entre eles, o devido processo legal e o direito à liberdade de reunião pacífica. A isso, o TCFA acrescenta o argumento de acordo com o qual:

Não compete aos tribunais apreciar o conteúdo das opiniões expressas, salvo se a aplicação do direito geral exigir uma apreciação de acordo com os seus requisitos actuais. A Lei Básica e o resto do ordenamento jurídico proíbem a expressão de opiniões apenas em condições estritas. Se estes não forem fornecidos, aplica-se o princípio da liberdade de expressão. (Alemanha, 2001, p. 5). No caso, prevaleceu o entendimento de que a liberdade de expressão era o direito prioritário, mas também se assentou que a ordem constitucional deve admitir e conviver com expressões extremistas, que muitas vezes negam as próprias bases do estado de direito.

Decisão da “Terceira via” (Dritte Weg): exclusão de texto de partido de direita do Facebook O caso analisado no processo 1 BvQ 42/19 tem como pano de fundo a publicação, em janeiro de 2019, antes das eleições europeias, de um artigo pelo Der Dritte Weg, um pequeno partido de direita. O texto, contendo discurso xenofóbico, foi publicado no site da sigla em compartilhado na página de Facebook do partido. O artigo trazia o seguinte trecho:

“No bairro Neuplanitz de Zwickau, há muitas pessoas que poderíamos chamar de deixadas para trás em termos sociais e financeiros, enquanto cada vez mais requerentes de asilo estrangeiros, que às vezes expressam sua gratidão pela violência e ofensas criminais, foram acomodados nos apartamentos dos arranha-céus pré-fabricados, muitos alemães neste bairro não têm perspectivas (…)” (ALEMANHA, 2019, p. 2)

No contexto dessas eleições ocorreram uma série de bloqueios de contas em redes sociais e também a retirada de conteúdos publicados nessas mídias, entre elas o Twitter e o Facebook. No caso do Twitter, foram bloqueadas uma série de contas de apoiadores do partido de extrema-direita AfD (Alternative für Deutschland) que criticavam o sistema eleitoral europeu e incentivavam os eleitores a assinarem as cédulas de votação, resultando na anulação dos votos.

Os critérios para a realização dos bloqueios não foram esclarecidos e, assim como ocorreu com as contas do AfD, partidos políticos e associações que se opuseram às manifestações de extrema direita foram igualmente bloqueadas. Em entrevista sobre o caso, a representante europeia do Twitter admitiu que a nova política de moderação da plataforma levou ao bloqueio incorreto de contas, mas que isso se deveu à impossibilidade de se distinguir entre discursos falsos e satíricos.8 Considerando a importância do contexto das eleições europeias, a dúvida de avaliação fez com que a plataforma, neste caso, bloqueasse tanto as postagens falsas quanto as satíricas, em um claro movimento de overblocking preventivo.

O Facebook notificou o partido político sobre o fato de o artigo ser considerado discurso de ódio e, por isso, violar os Padrões da Comunidade do Facebook. Como consequência, o Facebook restringiu a visibilidade do artigo e suspendeu, por 30 dias, a capacidade do Der Dritte Weg de postar na plataforma. O perfil de utilizador foi desativado e o seu conteúdo ficou indisponível.

Com a alegação de desrespeito ao direito à liberdade de expressão, o partido político interpôs uma reclamação constitucional perante o TCFA, após tentativas frustradas de reverter em tribunais inferiores. O Tribunal Constitucional Federal concedeu liminar baseada em algumas considerações, dentre elas: a liminar visa contribuir para assegurar e preservar os efeitos e o significado de uma decisão no processo principal ainda por esperar, ou seja, o pedido de liminar foi concedido devido à ponderação das possíveis desvantagens que poderiam surgir se uma liminar não fosse concedida, principalmente, tendo em vista a pressa do partido político em razão do período das eleições europeias.

Porém, o argumento decisivo que levou o TCFA considerou que impedir o uso da rede social configura uma restrição indevida da liberdade de manifestação do pensamento está em uma analogia com dois outros julgados do Tribunal: Fraport (BVerfGE 128, 226) e Stadionverbot (BVerfGE 148, 267). Em ambos os casos, o TCF alemão considerou que em situações em que o acesso de pessoas ou opiniões a locais de livre circulação de pessoas é irrestrito (public forum), não é possível realizar o bloqueio do acesso ou a exclusão de pontos de vista sem que, ao mesmo tempo, a vedação de censura seja também violada. Como de acordo com o próprio Facebook essa plataforma era utilizada por mais de 30 milhões de pessoas na Alemanha, negar ou bloquear o acesso do Dritte Weg à plataforma configura um ato de censura, que também compromete a igualdade de chances no processo eleitoral.

Junge Freiheit: o jornal apontado como de extrema-direita A reclamação analisada no 1 BvR1072/01 diz respeito à edição, por parte de autoridades do Estado Renânia do Norte-Vestfália, de relatórios, nos anos de 1994 e 1995, que declararam e classificaram o semanário Junge Freiheit9 como um veículo de extrema-direita, com tendências hostis à base democrática da Alemanha, o que equivaleria, de acordo com a reclamação, a uma usurpação do direito à liberdade de imprensa e expressão.

O Junge Freiheit alegava que o Estado não tinha o direito de classificar o semanário na categoria de extremismo de direita. Com sede em Berlim, o jornal distribuía seu material na região da Renânia do Norte-Vestfália. Para justificar a classificação do Junge Freiheit, as autoridades mencionaram artigos publicados pelo semanário que seriam classificadas como conteúdos de xenofobia, antipartidarismo, proximidade com ideais nazistas, desrespeito à dignidade humana, ataques à democracia de modo geral. Por isso, as autoridades da Renânia do Norte-Vestfália afirmaram que o Junge Freiheit “é permeado por artigos nos quais os autores promovem pontos de vista políticos ou fazem reivindicações que não são consistentes com os princípios fundamentais da ordem democrática livre” (Alemanha, 2005, p. 3).

Sem lograr êxito em tribunais inferiores, o semanário ingressou com a reclamação no TCFA, que, por sua vez afirmou que as decisões impugnadas dos tribunais inferiores violam o direito fundamental do Junge Freiheit à liberdade de imprensa. O TCF entendeu que, no caso, a base para a revisão judicial é a liberdade de imprensa e que as medidas das autoridades da Renânia do Norte-Vestfália afetam a própria publicação impressa e influenciam as condições básicas de sua atividade, impactando no relacionamento com leitores, anunciantes, jornalistas ou autores de cartas de leitores, ocasionando afastamentos e boicotes ao semanário.
Em suma, no entendimento do TCFA, a mera crítica aos valores constitucionais não é causa suficiente para afirmar uma tendência hostil à constituição. Como consequência, o tribunal decidiu, em 4 de maio de 2005, que o direito fundamental à liberdade de imprensa do Junge Freiheit foi violado nas decisões dos tribunais inferiores e pelas autoridades da Renânia do Norte-Vestfália (Alemanha, 2005).

Considerações finais
Nos cinco casos aqui relatados e analisados, em somente uma ocasião a liberdade de expressão não foi o direito que prevaleceu na decisão das cortes constitucionais: trata-se do caso relacionado a Deltan Dallagnol, então procurador da República, que teve punição de censura mantida pelo Supremo Tribunal Federal. Percebe-se, contudo, que a decisão entre os ministros brasileiros não foi unânime. Os outros quatro processos tiveram desfechos em que a liberdade de expressão foi o direito que prevaleceu, garantindo a possibilidade de que tanto antifascistas quanto personagens identificados com a extrema-direita pudessem se manifestar no espaço público, via internet. Esse quadro denota que o ambiente virtual é um dos cenários em que posicionamentos democráticos e antidemocráticos (ou até mesmo fascistas) se põem em disputa.

Quando o Supremo Tribunal Federal analisou a produção e disseminação de um “Dossiê Antifascista”, que reunia, de maneira sigilosa pelo governo do ex-presidente Bolsonaro, informações a respeito de supostos integrantes dos movimentos antifascistas e professores universitários, foi vencedor o entendimento de que as pessoas averiguadas, apontadas como antifascistas, podiam se manifestar contra a gestão do então presidente, e as investigações tiveram de cessar. Isso porque nas manifestações não havia ataque contra as instituições do Estado ou à democracia, mas sim a mera manifestação e organização contra a política do então ocupante da cadeira de presidente da República.

Fazendo uma comparação entre os dois casos brasileiros selecionados, parece ser possível extrair a conclusão de que o STF estabelece uma diferença entre o exercício do direito de manifestação por pessoas naturais que não ocupem cargos políticos, situação em que o tribunal não exige imparcialidade das manifestações, além de uma avaliação sobre se o titular exerceu seu direito com o objetivo direto de atacar o governo e as instituições estatais. No caso da manifestação de ideias de agentes públicos que tenham o objetivo direto de ataque às instituições democráticas, o STF afasta o direito à liberdade de expressão e reconhece a possibilidade de controle estatal do conteúdo, como no caso de Deltan Dallagnol.

O contrário ocorre nos casos alemães. Lá vale o entendimento de que a liberdade de expressão deve ser garantida mesmo quando atores identificados com o extremismo de direita sejam atores públicos: o caso do NPD é exemplar nesse sentido. Percebe-se, dessa maneira, que para a jurisprudência alemã, tanto extremistas quanto antifascistas têm direito à utilização de plataformas digitais e espaços midiáticos para se posicionar, tendo em vista sobretudo o amplo acesso de usuários a esses fóruns de debate.

Observe-se que as ações aqui relatadas e analisadas são pouco numerosas em termos estatísticos, o que não permite indicar qual caminho esses tribunais trilharão quando o direito à liberdade de expressão for confrontado com outros direitos fundamentais. Entretanto, é quase certo que, eventualmente, novas demandas envolvendo a alegação de exercício da liberdade de expressão para endossar posicionamentos extremistas e de ataque às instituições democráticas serão levadas a julgamento. Faz-se importante, portanto, um alerta. Na esteira do que se pôde averiguar, há a utilização do exercício da liberdade de expressão, de forma incoerente e descomprometida, por grupos e indivíduos que concorrem com a manutenção do regime democrático e para a diminuição das potencialidades do debate público. E, da mesma forma, a ausência de parâmetros claros e argumentação coerente pelo Judiciário pode contribuir, por conseguinte, para aumento do ambiente de violência e descrédito crescente em face da própria democracia.

O cenário de incerteza a respeito de que tipos de conteúdos e discursos são permitidos na internet é impulsionado por diversos outros fatores, como a migração do Twitter para as mãos do bilionário Elon Musk, que rebatizou de X a rede social. Se antes a plataforma já era alvo de críticas por ser muito permissiva quanto à circulação de preconceito e discurso de
ódio, a gestão de Musk à frente da empresa dá indícios de que ainda menos restrições serão
impostas.

Além disso, o histórico dos dois países que compuseram o corpus do presente trabalho enseja preocupação. Enquanto o Brasil vem de uma ditadura militar (1964-1985) relativamente recente e de um governo identificado com valores autoritários e extremistas (Jair Bolsonaro, 2019-2022), o passado nazista e o atual crescimento de partidos e células extremistas são motivo de preocupação na Alemanha. Tanto o Supremo Tribunal Federal, no Brasil, quanto o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (TCFA) deverão ser provocados a, em breve, se posicionar sobre a questão central que permeia este artigo: qual será o ponto de equilíbrio entre liberdade de expressão e manifestação de conteúdo violento, preconceituoso e de desrespeito aos pilares democráticos e constitucionais?

A internet tem potencializado as discussões sobre esse dilema e contribuído para potencializar e facilitar a propagação de determinadas ideias, discursos e pensamentos, com novidades, transformações e evoluções (em tecnologia, plataformas, meios) tão rápidas e constantes que as legislações e o Judiciário têm tido dificuldade de acompanhar a contento. Mesmo governos poderosos, em nível global, parecem interessados em problematizar a questão, haja vista as propostas em torno de regulação de plataformas digitais. Portanto, será fundamental que meio acadêmico e sociedade civil continuem a estudar e a aprofundar o assunto.

2.Fascismo e antifascismo: uma contextualização

O termo fascismo, originalmente, se referia ao movimento surgido na Itália nos anos 1920 que tinha Benito Mussolini como líder. A palavra “fascio”, da qual fascismo se originou, significa feixe: trata-se da retomada de um símbolo de autoridade da Roma Antiga, um feixede varas. Tal simbologia é representativa de algumas das características do fascismo, que era uma ideologia racista, autoritária, discriminatória, antidemocrática e antiliberal, além de fazer uso da repressão e da violência (Finchelstein, 2019).

Além disso, o fascismo tinha uma base mítica, valorizava o poder do líder e as ideias de povo e nação. Minava a democracia a partir das próprias estruturas democráticas para construir um regime totalitário – sempre com o uso da violência como um instrumento político. Uma das principais marcas do fascismo era a divisão da sociedade.

O fascismo tinha raízes que remetiam aos contextos italiano e europeu e era uma espécie de reação a ideais iluministas surgidos e desenvolvidos nos séculos anteriores, mas era amplo e mutável o suficiente para que se espalhasse e se adaptasse a outras localidades. Assim, movimentos análogos ao fascismo italiano apareceram em inúmeros países, muitas vezes sendo rebatizados e recebendo contornos próprios das novas realidades locais, como o nazismo, na Alemanha, e o integralismo, no Brasil.

Esta mutação do fascismo, seja de maneira mais ou menos drástica, a depender do contexto, tornou-se possível não apenas como uma forma de sobrevivência da ideologia no campo social e político, mas também por conta de uma particularidade temporal em seu surgimento. A constituição relativamente tardia do fascismo na história exigiu que o movimento se apropriasse de elementos que ainda não tivessem sido adotados diretamente por outras ideologias, preenchendo lacunas que captariam a atenção popular (Berezin, 2019).

Desse modo, o fascismo se difundiu e ganhou variações e vertentes específicas em cada lugar a que chegou, mas sempre se constituiu, naquele contexto entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a partir dos preceitos centrais do fascismo italiano: ultranacionalismo, autoritarismo, antissocialismo e intolerância, além do fato de ser centrado no poder absoluto do líder, que falava e agia em nome do povo e da nação. Foi uma ideologia que alcançou proporções mundiais (Finchelstein, 2019).

Alemanha e Itália, países em que o fascismo efetivamente chegou ao poder, foram derrotadas na Segunda Guerra Mundial, a qual terminou em 1945. Contudo, ideias fascistas continuaram em voga – não só naqueles países – e, durante as décadas seguintes, passaram a circular em diferentes cenários políticos e sociais ao redor do mundo. Assim, ainda que o governo fascista italiano tenha sido destituído, o termo fascismo continuou sendo utilizado para se referir a ideias semelhantes à do fascismo italiano pioneiro.

Há divergências, na comunidade acadêmica, sobre a adequação do termo fascismo (Stanley, 2020). Alguns autores, como Traverso (2019), defendem que fascismo se restringiria
àquele momento específico da Itália da primeira metade do século XX: para eles, movimentos análogos ao fascismo italiano devem ser chamados de outras maneiras, como neofascismo, protofascismo ou pós-fascismo. Outros, como Stanley (2020) e Eco (2020), contudo, ponderam que o conceito se expandiu e pode ser aplicado a contextos, locais e momentos históricos diferentes do original.

A dificuldade em identificar a terminologia mais adequada para movimentos, eventos históricos, sociais, e ideologias que se assemelham ao fascismo recai em outra particularidade: o fato de que fascismo, assim como o nazismo, integrantes de uma mesma árvore genealógica, foram ideologias derrotadas e reconhecidas como inimigas pelos países que não as adotavam. Portanto, a aplicação do termo fascismo está atrelada ao seu passado, posicionando-o como pária na segunda metade do século XX (Eatwell, 2017).

Em função deste rótulo que o fascismo veio a herdar, um afastamento desta terminologia aflora como um possível percurso visando a sua manutenção. O ímpeto fascista, enquanto ideologia política que efetivamente busca sobreviver no espaço como uma escolha possível em contendas eleitorais, mantém seus elementos constitutivos, mas altera sua aparência externa como uma forma de dissociar-se do estereótipo pejorativo que carrega. O populismo é o resultado desta metamorfose e constitui um capítulo ainda não terminado na história (Fichelstein, 2019). Essa própria relação não é totalmente reconhecida, seja pelos adeptos do fascismo ou do populismo, e a utilização de uma terminologia ou outra constitui, ainda que de maneira contestável, uma opção do indivíduo ou grupo que se alinha ideologicamente neste sentido.

Independentemente de preferências, um fato concreto é que o termo fascismo é empregado, na atualidade, de maneira mais ampla. Isto é, sociedade, meios de comunicação e até mesmo governos utilizam a palavra fascismo para se referir a pessoas, grupos e ideologias de extrema-direita que partilham características como nacionalismo exacerbado, autoritarismo, totalitarismo, militarismo, desprezo pela cultura democrática e aversão ao pluralismo político, comportamental, sexual e artístico (Stanley, 2020; Eco, 2020).

Este texto não tem a pretensão de discutir a correção do termo do uso fascismo, mas aceita que a palavra é a mais disseminada para definir uma determinada ideologia, tanto que o termo chega a ser citado em decisões de cortes constitucionais. Assim, quase tão antigo quanto a palavra fascismo é o vocábulo antifascismo. De acordo com Bray (2019), a oposição ao fascismo apareceu e se organizou antes mesmo que políticos fascistas chegassem ao poder na Europa. Naquele momento entre as duas guerras mundiais, integravam os movimentosantifascistas grupos à esquerda no espectro ideológico, como comunistas, socialistas e anarquistas.

Com o passar dos anos, à medida em que fascismo se consolidou como um verbete adotado e compreendido, antifascismo também prosseguiu como uma palavra difundida para se referir aos movimentos de oposição ao fascismo. Essas terminologias se tornaram bastante recorrentes no século XXI, quando políticos com características fascistas ganharam visibilidade, apoio popular e até mesmo eleições (Stanley, 2020).

Na contemporaneidade, o antifascismo não se configura como um movimento central organizado, tampouco como um partido político, mas se refere a ações, grupos ou indivíduos que se mobilizam com o objetivo de evitar a propagação de ideias consideradas fascistas (Jourdan; Rosa, 2020). Trata-se de uma ideologia difusa e presente em diversos contextos que se notabiliza, principalmente, por se opor ao fascismo.

No Brasil, por exemplo, o termo antifascismo ganhou destaque, notadamente, durante o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022): pessoas, com destaque para usuários de redes sociais na internet, passaram a se definir como antifascistas para marcar oposição ao então chefe do Executivo. Foi nesse contexto de disputas de narrativas que discussões sobre a liberdade de expressão de manifestações fascistas e antifascistas se tornaram objeto de análise nos tribunais constitucionais do Brasil e da Alemanha, tal qual este artigo relata e analisa.

3. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 722: Dossiê Antifascista

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 722 tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF) entre 2020 e 2022. Na ação, a Rede Sustentabilidade questionou a constitucionalidade de uma investigação sigilosa iniciada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ) contra 579 servidores públicos e professores, que seriam associados a “movimentos antifascistas”. De acordo com o autor da arguição, tratava-se de ato de perseguição do governo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) contra servidores públicos e professores considerados integrantes destes movimentos. No desfecho do caso, a corte, por maioria, considerou inconstitucional o chamado “Dossiê Antifascista”.
O partido ingressou com a arguição em julho de 2020, depois que veículos de comunicação noticiaram que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) elaborou um dossiê sobre pessoas críticas ao então presidente Bolsonaro. O material produzido pelo governoreunia nomes, fotografias e endereços de redes sociais dos cidadãos monitorados e foi distribuído a órgãos públicos diversos. A Rede Sustentabilidade afirmava que, com isso, o Ministério da Justiça realizou uma ação sigilosa contra opositores do governo, o que seria “um aparelhamento estatal em prol de perseguições políticas e ideológicas” (Brasil, 2020, p. 3).
A linha argumentativa da Rede Sustentabilidade dizia que o dossiê violava preceitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição (Brasil, 1988), como liberdade de expressão, direito à intimidade, à vida privada e à honra, liberdade de reunião e liberdade de associação. O partido também afirmava que a investigação confundia interesses nacionais com interesses do ex-presidente da República e que o objetivo da investigação era arrefecer o discurso contrário, sem que houvesse risco considerável à segurança pública ou à integridade nacional.
Em agosto de 2020, a ministra do STF Carmen Lúcia, designada como relatora da ADPF 722, votou pelo deferimento de medida cautelar para suspender qualquer ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública que tivesse o objetivo produzir ou compartilhar informações sobre a vida pessoal, as escolhas pessoais e políticas, as práticas cívicas de cidadãos e de servidores públicos alinhados ao movimento antifascista.
A relatora considerou ilegítimo que órgãos estatais investigassem, sem o devido processo legal, cidadãos que exerciam o direito de se manifestar. Lembrou ainda a necessidade de o Estado contar com serviços de inteligência, mas desde que as ações fossem mantidas dentro dos limites constitucionais e legais. Para ela, o dossiê não era apenas um risco à democracia e aos direitos fundamentais, mas também um desvio de finalidade do aparato estatal (Brasil, 2020).
Ponderou que na Constituição brasileira são asseguradas as manifestações livres de expressão, de reunião e de associação, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da honra, conferindo-se a todos liberdade para veicular ideias e opiniões e para se reunirem e também para se associarem.
Por outro lado, a relatora ressaltou que a liberdade de expressão, como todo direito fundamental, não apresenta caráter absoluto e tampouco constitui escudo para imunizar autor de delitos como ameaça, incitação a crimes ou infrações contra a honra. “Este Supremo Tribunal Federal tem proclamado que ‘a Constituição autoriza a imposição de limites aos direitos fundamentais quando necessários à conformação com outros direitos fundamentais igualmente protegidos’”, pontuou Carmen Lúcia (Brasil, 2020, p. 35).Dias depois, ainda em agosto de 2020, o Plenário do STF, por maioria, referendou a medida cautelar. Acompanharam a relatora os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, além do então presidente do Supremo, Dias Toffoli. Por entender que a ADPF foi a via inadequada para discutir o fato, o ministro Marco Aurélio foi o único a divergir – o ministro Celso de Mello, à época decano da corte, esteve ausente por licença médica. Com isso, foi deferido o pedido formulado na arguição, em caráter liminar, para suspender todo e qualquer ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública de produção ou compartilhamento de informações sobre o referido Dossiê Antifascista.
O mérito da ação foi discutido em maio de 2022, quando o Plenário do STF, novamente por maioria, manteve o entendimento inicial e declarou o dossiê inconstitucional. Os ministros Nunes Marques e André Mendonça, que haviam sido indicados ao Supremo por Bolsonaro, foram os únicos a não acompanhar a relatora Carmen Lúcia.
Enquanto André Mendonça se declarou suspeito para julgar a ação porque era ministro da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro na época da elaboração do material, Marques apontou não ter havido comprovação de que atos do governo tivessem violado garantias constitucionais, tratando-se apenas relatórios cujo objetivo era assegurar a segurança pública e prevenir tumultos, agressões físicas e depredação do patrimônio público e privado.
Em seu voto, Carmen Lúcia destacou novamente que o artigo 5º da Constituição assegura as manifestações livres de expressão, de reunião e de associação, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da honra, e que todos os cidadãos dispõem de liberdade para veicular ideias e opiniões e para se reunirem e também para se associarem. A ministra citou casos do próprio STF em que a liberdade de expressão foi objeto de análise e apresentou cartas internacionais que abordam o assunto. A ministra afirmou que acredita que o direito de expressar o pensamento é um dos pilares de sustentação da própria democracia.

4. Ação Cível Originária (PET 9068)3: limites à liberdade de expressão e o Ministério Público Federal no caso Deltan Dallagnol x Renan Calheiros

A Petição (PET) 9068, uma ação cível originária4, terminou com punição de censura a Deltan Dallagnol. No dia 8 de setembro de 2020, por nove votos a um, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu punir com pena de censura5 Deltan Martinazzo Dallagnol, à época procurador da República, pela publicação de uma mensagem na rede social Twitter (hoje chamado de X) se posicionando contra a eleição do senador Renan Calheiros (MDB-AL) para a presidência do Senado em 20196.

Este caso não envolveu diretamente conteúdos discursivos fascistas. Todavia, foi analisado neste trabalho porque Dallagnol, segundo consta no julgamento, incentivou, por meio de sua conta no antigo Twitter, uma campanha contra o sistema de votação no Senado Federal para a escolha de seu presidente.

Por isso, compreende-se que a discussão está enquadrada no cenário nacional que envolve a atuação do STF para definição do que está abrangido pelo direito de expressão e também se insere na discussão a respeito de movimentos e modelos de atuação política fascista, tendo em vista que tais movimentos políticos têm, em geral, como característica comum a defesa de um sistema de governo carismático e antirrepresentativo.

No início de 2020, o então procurador compartilhou a seguinte mensagem em seu perfil: “Se Renan for presidente do Senado, dificilmente veremos reforma contra corrupção aprovada. Tem contra si várias investigações por corrupção e lavagem de dinheiro. Muitos senadores podem votar nele escondido, mas não terão coragem de votar na luz do dia”.
Tal mensagem gerou reação do parlamentar citado, que ajuizou reclamação disciplinar sob a alegação de que Dallagnol teve o intuito de interferir na disputa pela presidência do Senado, violando assim, deveres ético-profissionais de seu cargo. Para Calheiros, as

4 Ação cível originária é a ação cível que se inicia nos tribunais, e não nos juízos monocráticos, como as demais ações cíveis. A competência para processar e julgar a ação cível originária tem natureza funcional e funda-se na qualidade da parte ou na matéria de litígio. Por exemplo, a Constituição Federal atribui ao Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar o litígio entre Estados estrangeiros ou organismos internacionais e a União, Estados, Distrito Federal e Territórios, inclusive entre os órgãos da administração indireta. Fonte: Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/476-glossario/8241-acao-civel-originaria.

5 A penalidade de censura está prevista dentre as sanções disciplinares no art. 239, inciso II da Lei Complementar nº 75/1993.

6 De acordo com o conselheiro Otavio Luiz Rodrigues Junior, relator do caso, além de Deltan Dallagnol interferir na eleição para a presidência do Senado, afirmando que, se Calheiros vencesse, dificilmente o Brasil teria uma reforma contra a corrupção, o procurador alavancou uma campanha contra o sistema de votação fechado, dizendo que o pleito deveria ser aberto para que todos soubessem quem votou em Calheiros. “Um membro do MP se sentiu no direito de interferir no processo eleitoral do Senado. Ele incentivou uma campanha contra o sistema de votação da câmara alta do parlamento, em seus atos internos, sob o argumento de que agir contrariamente equivaleria a fomentar a corrupção no país. O membro violou o dever funcional de guardar decoro pessoal, previsto no artigo 236, inciso X, da Lei Complementar 75″, disse Rodrigues. (Angelo, 2020)manifestações do procurador configurariam abuso do direito de liberdade de expressão por parte de um membro do Ministério Público Federal.

O julgamento e a posterior decisão do Conselho ocorreram após o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), derrubar efeitos de uma liminar a pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) que suspendia o processo administrativo contra Dallagnol no CNMP.

Para o relator do caso no Conselho, Otávio Rodrigues, o então procurador “ultrapassou os limites da simples crítica, com manifestação pessoal desconfortável à vítima” e “atacou de modo deliberado não só um senador da República, mas ao Poder Legislativo” (D’Agostino, 2020). Enfatizou ainda que reduzir o caso a um debate sobre liberdade de expressão é ignorar o imenso risco à democracia. De acordo com Rodrigues, um membro do Ministério Público não deve realizar manifestações públicas, já que tal ação coloca em risco a sua isenção perante a sociedade.

Após a decisão do CNMP, o então coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba recorreu ao Supremo com o intuito de trancar o Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) registrado no CNMP com o número 1.00982/2019-48 e, consequentemente, anular sanção disciplinar aplicada pelo CNMP alegando que a punição foi indevida, tendo em vista que, em sua visão, apenas exerceu sua liberdade de expressão e que suas declarações foram “apenas relatos, um fato objetivo que agrega uma análise de cenário sobre o futuro das reformas anticorrupção” (Carta Capital, 2023). Além disso, ressaltou que o caso já havia sido apreciado pela Corregedoria do Ministério Público Federal, e que a decisão do Conselho violou a ampla defesa pelo processo ter sido incluído em pauta sem o encerramento da instrução.

Em 30 de março de 2021, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal formou maioria para manter a pena de censura aplicada ao procurador. O relator do caso, ministro Kassio Nunes Marques, negou o recurso de Dallagnol e foi acompanhado por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Em relação aos pontos apresentados pela defesa do procurador, Nunes Marques apontou que a eventual decisão da Corregedoria não impactaria a competência do CNMP, já que é possível rever decisões do órgão.

Apontou também que, diferentemente do que alegava Dallagnol, não houve violação à ampla defesa. Para o ministro Nunes Marques, em órgãos colegiados o relator pode pedir a inclusão do processo em pauta sem ter terminado a instrução, desde que, quando julgado, a fase tenha sido concluída:

Também não percebo qualquer malferimento ao devido processo legal na circunstância de o relator haver pedido a inclusão do feito em pauta sem ainda ter sido concluída a instrução do PAD. Ora, em órgãos colegiados, como se sabe, a inclusão em pauta é uma atribuição da Presidência do órgão, cabendo ao relator estimar a data em que estará preparado para apresentar o seu trabalho — isto é, o relatório e o voto — e requerer à Presidência a inclusão em pauta. No caso do CNMP, como também do CNJ, sabe-se que há uma pauta bastante congestionada, de maneira que o relator pode, eventualmente, para ajustar o seu ritmo de produção, pedir a inclusão do feito em pauta enquanto paralelamente trabalha na conclusão da instrução, desde que, na data do julgamento, o trabalho esteja, de fato, concluído (Brasil, 2021, p. 4).

Em relação à liberdade de expressão, Nunes Marques fundamentou seu voto levando em consideração questões como a impossibilidade de se prever a existência das redes sociais na época em que as leis de regência da Magistratura e do Ministério Público foram editadas. Tal situação, como reconhecido pelo ministro, implicaria em uma anomia. No entanto, para ele, não é possível deixar de resolver situações que afetam o funcionamento e imagem das instituições.

Marques apontou que, como forma de fazer frente a essa questão, o Conselho Nacional de Justiça editou em 2019 uma resolução para disciplinar a questão do uso das redes sociais pelos juízes. Reconheceu também que, apesar de o Conselho Nacional do Ministério Público não ter editado normativa a respeito do tema, o órgão já havia punido membros do MP por publicações inadequadas em redes sociais utilizando estatutos das respectivas carreiras.

O relator pontuou ainda que a falta de disciplina legal clara e específica sobre a temática das manifestações em redes sociais certamente cria insegurança jurídica. Porém, ressaltou a necessidade de algum tipo de controle em relação aos excessos de autoridades públicas. Na visão do ministro, publicações com conteúdos que tangenciam a política partidária ou que objetivam estabelecer algum tipo de crítica direta e específica a certos agentes políticos são problemáticas, pois abrem margem para a interpretação por parte da população de que membros do Ministério Público têm “um lado” na política, além de colocar em dúvida a sua imparcialidade.

Outro ponto ressaltado por Nunes Marques diz que, caso a publicação que suscitou ação tivesse sido feita por um cidadão que não ocupasse um cargo eletivo ou que não fosse uma autoridade pública, estaria completamente compatível com a liberdade de expressão. Nessa situação específica, o cidadão estaria emitindo sua opinião política, a despeito da procedência ou não da afirmação. No entanto, quando “essa manifestação parte de umaautoridade que tem certas garantias e vedações constitucionais justamente para manter-se fora da arena política, então há um problema” (Brasil, 2021, p. 7).

No que diz respeito à liberdade de expressão, o magistrado também ressaltou em seu relatório que se trata de um direito fundamental que precisa ser compatibilizado com outros direitos e deveres previstos na Constituição Federal. Em relação aos membros do Ministério Público, citou a cláusula constitucional que remete ao regime jurídico da Magistratura para fundamentar seu voto. De acordo com ele, no modelo brasileiro de MP, os membros do órgão têm os mesmos direitos, garantias e vedações da Magistratura.

Em divergência ao relator, o ministro Edson Fachin julgou procedente o pedido de Dallagnol. Para o ministro, as garantias constitucionalmente asseguradas aos membros do MP “não autorizam a mitigação da amplitude do direito à liberdade do pensamento e da opinião, sendo necessário que se configure ofensa qualificada a outros direitos constitucionalmente garantidos para tanto” (Brasil, 2021, p. 6).

Segundo Fachin, o exercício da liberdade de expressão por parte de um procurador, por si só, mesmo que em tom crítico, não compromete a dignidade do Ministério Público. Outro ponto, de acordo com o voto divergente, é o fato de que as publicações não interferiram de fato no processo decisório do Senado. Fez ainda a ressalva de que o STF já havia decidido que críticas a autoridades políticas estão em consonância com um regime democrático robusto e que configurariam exercício do direito de opinião. Em síntese, o ministro ressaltou que o caso extrapola a manifestação de Dallagnol, podendo estabelecer um precedente de embaraço ao direito de manifestar crítica.

Por fim, a ministra Cármen Lúcia, assim como Fachin, considerou procedente o pedido, destacando a inexistência de norma constitucional, legal ou regulamentar que restrinja a liberdade de expressão nas redes sociais. Além disso, de acordo com a ministra, manifestações críticas sobre fatos políticos pelos membros do MP também não são proibidas. Ao final de seu voto, apesar de reconhecer que agentes públicos não devem se tornar comentaristas ou ativistas, podendo ao agir dessa maneira, gerar danos à imagem das instituições, na democracia, a liberdade de expressão deve ser zelada até mesmo quando exercida de maneira demasiada.

Por maioria de votos, a corte julgou improcedentes os pedidos do então procurador, mantendo, assim, a punição imposta, de censura.

5. Decisão do Partido Nacional Democrático da Alemanha: reunião da direita radical

Os elementos fáticos da 1 BvQ 22/01 dizem respeito a uma solicitação do Partido Nacional Democrático da Alemanha (NPD)7, partido de direita radical, ao Estado da Renânia do Norte-Vestfália para a realização de uma manifestação no dia 1º de maio de 2001, na cidade de Essen. A intenção do NPD era promover “uma manifestação com um comício sob o tema ‘Contra o dumping social e o desemprego em massa’” (Alemanha, 2001, p. 1), que aconteceria no centro da cidade de Essen, para cerca de 500 pessoas, no dia 1º de maio, em 2001.

Em 3 de abril de 2001, pouco menos de um mês antes da data marcada para a reunião, autoridades de Essen ordenaram a proibição do evento. A justificativa da proibição foi que a realização da reunião do NPD no dia 1º de maio, data em que se celebra o Dia do Trabalhador em todo o mundo, colocaria a ordem pública em risco.

Isso porque o dia 1º de maio tem um significado político e social simbólico, com o compromisso histórico ligado ao movimento operário de orientação socialista. “Com o seu reconhecimento como feriado, a legislatura reconhece a contribuição do movimento trabalhista para o estabelecimento de uma democracia livre” (Alemanha, 2001, p. 2). Por sua vez, o NPD, possui raízes ligadas ao extremismo de direita e até mesmo ao neonazismo:

Uma manifestação do NPD, que utiliza o caráter simbólico do Primeiro de Maio, inevitavelmente evoca associações com a perversão e instrumentalização do feriado do movimento operário pelo regime nacional-socialista. Ao mesmo tempo, ela lembra a derrota e repressão do movimento trabalhista no Terceiro Reich. Isso se aplica em particular à cidade de Essen, que foi um dos principais alvos da repressão nacional-socialista contra os sindicatos. (Alemanha, 2001, p. 2)

A justificativa para a proibição do evento aponta semelhanças entre as falas e o pensamento político do NPD e o nacional-socialismo do Terceiro Reich, reforçando que a realização da reunião poderia ofender as pessoas que estariam comemorando a data do movimento trabalhista. Como consequência, o Partido Nacional Democrático apresentou impugnações em tribunais administrativo, local e superior.

Ainda que a rejeição do nacional-socialismo tenha sido amplamente aplicada na Lei Básica da Alemanha, as garantias gerais do Estado de direito incluem a liberdade de reunião e seus limites. De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, as proibições de reuniões só podem ser aplicadas para proteger interesses jurídicos elementares, sendo que a mera menção à ameaça à ordem pública geralmente não é suficiente. (Alemanha, 2001).

O TCFA acrescentou apontamentos referentes ao caso que podem ser inseridos neste relato como maneira de síntese do pensamento que prevaleceu nesta decisão estudada. Em um deles, o tribunal considera que, mesmo que a ideologia extremista defendida pelo NPD seja contrária à Lei fundamental, o combate a essa ideologia deve ocorrer com base em parâmetros legais e com base nas garantias e direitos previstos no texto constitucional. Entre eles, o devido processo legal e o direito à liberdade de reunião pacífica. A isso, o TCFA acrescenta o argumento de acordo com o qual:

Não compete aos tribunais apreciar o conteúdo das opiniões expressas, salvo se a aplicação do direito geral exigir uma apreciação de acordo com os seus requisitos factuais. A Lei Básica e o resto do ordenamento jurídico proíbem a expressão de opiniões apenas em condições estritas. Se estes não forem fornecidos, aplica-se o princípio da liberdade de expressão. (Alemanha, 2001, p. 5).

No caso, prevaleceu o entendimento de que a liberdade de expressão era o direito prioritário, mas também se assentou que a ordem constitucional deve admitir e conviver com expressões extremistas, que muitas vezes negam as próprias bases do estado de direito.

6. Decisão da “Terceira via” (Dritte Weg): exclusão de texto de partido de direita do Facebook

O caso analisado no processo 1 BvQ 42/19 tem como pano de fundo a publicação, em janeiro de 2019, antes das eleições europeias, de um artigo pelo Der Dritte Weg, um pequeno partido de direita. O texto, contendo discurso xenofóbico, foi publicado no site da sigla em compartilhado na página de Facebook do partido. O artigo trazia o seguinte trecho:

“No bairro Neuplanitz de Zwickau, há muitas pessoas que poderíamos chamar de deixadas para trás em termos sociais e financeiros, enquanto cada vez maisrequerentes de asilo estrangeiros, que às vezes expressam sua gratidão pela violência e ofensas criminais, foram acomodados nos apartamentos dos arranha-céus pré-fabricados, muitos alemães neste bairro não têm perspectivas (…)” (ALEMANHA, 2019, p. 2)

No contexto dessas eleições ocorreram uma série de bloqueios de contas em redes sociais e também a retirada de conteúdos publicados nessas mídias, entre elas o Twitter e o Facebook. No caso do Twitter, foram bloqueadas uma série de contas de apoiadores do partido de extrema-direita AfD (Alternative für Deutschland) que criticavam o sistema eleitoral europeu e incentivavam os eleitores a assinarem as cédulas de votação, resultando na anulação dos votos.

Os critérios para a realização dos bloqueios não foram esclarecidos e, assim como ocorreu com as contas do AfD, partidos políticos e associações que se opuseram às manifestações de extrema-direita foram igualmente bloqueadas. Em entrevista sobre o caso, a representante europeia do Twitter admitiu que a nova política de moderação da plataforma levou ao bloqueio incorreto de contas, mas que isso se deveu à impossibilidade de se distinguir entre discursos falsos e satíricos8. Considerando a importância do contexto das eleições europeias, a dúvida de avaliação fez com que a plataforma, neste caso, bloqueasse tanto as postagens falsas quanto as satíricas, em um claro movimento de overblocking preventivo.

O Facebook notificou o partido político sobre o fato de o artigo ser considerado discurso de ódio e, por isso, violar os Padrões da Comunidade do Facebook. Como consequência, o Facebook restringiu a visibilidade do artigo e suspendeu, por 30 dias, a capacidade do Der Dritte Weg de postar na plataforma. O perfil de utilizador foi desativado e o seu conteúdo ficou indisponível.
Com a alegação de desrespeito ao direito à liberdade de expressão, o partido político interpôs uma reclamação constitucional perante o TCFA, após tentativas frustradas de reverter em tribunais inferiores. O Tribunal Constitucional Federal concedeu liminar baseada em algumas considerações, dentre elas: a liminar visa contribuir para assegurar e preservar os efeitos e o significado de uma decisão no processo principal ainda por esperar, ou seja, o pedido de liminar foi concedido devido à ponderação das possíveis desvantagens que poderiam surgir se uma liminar não fosse concedida, principalmente, tendo em vista a pressa do partido político em razão do período das eleições europeias.

O histórico dos casos de bloqueio e suas consequências para a eleição de 2019 foram apresentados por Kühl, 2019.Porém, o argumento decisivo que levou o TCFA considerou que impedir o uso da rede social configura uma restrição indevida da liberdade de manifestação do pensamento está em uma analogia com dois outros julgados do Tribunal: Fraport (BVerfGE 128, 226) e Stadionverbot (BVerfGE 148, 267).

Em ambos os casos, o TCF alemão considerou que em situações em que o acesso de pessoas ou opiniões a locais de livre circulação de pessoas é irrestrito (public forum), não é possível realizar o bloqueio do acesso ou a exclusão de pontos de vista sem que, ao mesmo tempo, a vedação de censura seja também violada. Como de acordo com o próprio Facebook essa plataforma era utilizada por mais de 30 milhões de pessoas na Alemanha, negar ou bloquear o acesso do Dritte Weg à plataforma configura um ato de censura, que também compromete a igualdade de chances no processo eleitoral.

7. Junge Freiheit: o jornal apontado como de extrema-direita

A reclamação analisada no 1 BvR1072/01 diz respeito à edição, por parte de autoridades do Estado Renânia do Norte-Vestfália, de relatórios, nos anos de 1994 e 1995, que declararam e classificaram o semanário Junge Freiheit9 como um veículo de extrema-direita, com tendências hostis à base democrática da Alemanha, o que equivaleria, de acordo com a reclamação, a uma usurpação do direito à liberdade de imprensa e expressão.

O Junge Freiheit alegava que o Estado não tinha o direito de classificar o semanário na categoria de extremismo de direita. Com sede em Berlim, o jornal distribuía seu material na região da Renânia do Norte-Vestfália. Para justificar a classificação do Junge Freiheit, as autoridades mencionaram artigos publicados pelo semanário que seriam classificadas como conteúdos de xenofobia, antipartidarismo, proximidade com ideais nazistas, desrespeito à dignidade humana, ataques à democracia de modo geral. Por isso, as autoridades da Renânia do Norte-Vestfália afirmaram que o Junge Freiheit “é permeado por artigos nos quais os autores promovem pontos de vista políticos ou fazem reivindicações que não são consistentes com os princípios fundamentais da ordem democrática livre” (Alemanha, 2005, p. 3).

O semanário Junge Freiheit (em tradução livre, Liberdade Jovem) e considerado um representante da Nova Direita na Alemanha contemporânea, caracterizada pelo extremismo e pela hegemonia cultural de direita. É considerado o líder da direita nos meios de comunicação na Alemanha. O semanário foi lançado em 1986 pelo atual editor-chefe, Dieter Stein, como um jornal estudantil. É o maior meio impresso de direita na Alemanha e o quinto maior jornal semanal da Alemanha em geral, com uma tiragem de mais de 30 mil exemplares vendidos a cada trimestre (Czymara; Bauer, 2023).Sem lograr êxito em tribunais inferiores, o semanário ingressou com a reclamação no TCFA, que, por sua vez afirmou que as decisões impugnadas dos tribunais inferiores violam o direito fundamental do Junge Freiheit à liberdade de imprensa. O TCF entendeu que, no caso, a base para a revisão judicial é a liberdade de imprensa e que as medidas das autoridades da Renânia do Norte-Vestfália afetam a própria publicação impressa e influenciam as condições básicas de sua atividade, impactando no relacionamento com leitores, anunciantes, jornalistas ou autores de cartas de leitores, ocasionando afastamentos e boicotes ao semanário.

Em suma, no entendimento do TCFA, a mera crítica aos valores constitucionais não é causa suficiente para afirmar uma tendência hostil à constituição. Como consequência, o tribunal decidiu, em 4 de maio de 2005, que o direito fundamental à liberdade de imprensa do Junge Freiheit foi violado nas decisões dos tribunais inferiores e pelas autoridades da Renânia do Norte-Vestfália (Alemanha, 2005).

Considerações finais

Nos cinco casos aqui relatados e analisados, em somente uma ocasião a liberdade de expressão não foi o direito que prevaleceu na decisão das cortes constitucionais: trata-se do caso relacionado a Deltan Dallagnol, então procurador da República, que teve punição de censura mantida pelo Supremo Tribunal Federal. Percebe-se, contudo, que a decisão entre os ministros brasileiros não foi unânime.

Os outros quatro processos tiveram desfechos em que a liberdade de expressão foi o direito que prevaleceu, garantindo a possibilidade de que tanto antifascistas quanto personagens identificados com a extrema-direita pudessem se manifestar no espaço público, via internet. Esse quadro denota que o ambiente virtual é um dos cenários em que posicionamentos democráticos e antidemocráticos (ou até mesmo fascistas) se põem em disputa.

Quando o Supremo Tribunal Federal analisou a produção e disseminação de um “Dossiê Antifascista”, que reunia, de maneira sigilosa pelo governo do ex-presidente Bolsonaro, informações a respeito de supostos integrantes dos movimentos antifascistas e professores universitários, foi vencedor o entendimento de que as pessoas averiguadas, apontadas como antifascistas, podiam se manifestar contra a gestão do então presidente, e as investigações tiveram de cessar. Isso porque nas manifestações não havia ataque contra asinstituições do Estado ou à democracia, mas sim a mera manifestação e organização contra a política do então ocupante da cadeira de presidente da República.

Fazendo uma comparação entre os dois casos brasileiros selecionados, parece ser possível extrair a conclusão de que o STF estabelece uma diferença entre o exercício do direito de manifestação por pessoas naturais que não ocupem cargos políticos, situação em que o tribunal não exige imparcialidade das manifestações, além de uma avaliação sobre se o titular exerceu seu direito com o objetivo direto de atacar o governo e as instituições estatais. No caso da manifestação de ideias de agentes públicos que tenham o objetivo direto de ataque às instituições democráticas, o STF afasta o direito à liberdade de expressão e reconhece a possibilidade de controle estatal do conteúdo, como no caso de Deltan Dallagnol.

O contrário ocorre nos casos alemães. Lá vale o entendimento de que a liberdade de expressão deve ser garantida mesmo quando atores identificados com o extremismo de direita sejam atores públicos: o caso do NPD é exemplar nesse sentido. Percebe-se, dessa maneira, que para a jurisprudência alemã, tanto extremistas quanto antifascistas têm direito à utilização de plataformas digitais e espaços midiáticos para se posicionar, tendo em vista sobretudo o amplo acesso de usuários a esses fóruns de debate.

Observe-se que as ações aqui relatadas e analisadas são pouco numerosas em termos estatísticos, o que não permite indicar qual caminho esses tribunais trilharão quando o direito à liberdade de expressão for confrontado com outros direitos fundamentais. Entretanto, é quase certo que, eventualmente, novas demandas envolvendo a alegação de exercício da liberdade de expressão para endossar posicionamentos extremistas e de ataque às instituições democráticas serão levadas a julgamento.

Faz-se importante, portanto, um alerta. Na esteira do que se pôde averiguar, há a utilização do exercício da liberdade de expressão, de forma incoerente e descomprometida, por grupos e indivíduos que concorrem com a manutenção do regime democrático e para a diminuição das potencialidades do debate público. E, da mesma forma, a ausência de parâmetros claros e argumentação coerente pelo Judiciário pode contribuir, por conseguinte, para aumento do ambiente de violência e descrédito crescente em face da própria democracia.

O cenário de incerteza a respeito de que tipos de conteúdos e discursos são permitidos na internet é impulsionado por diversos outros fatores, como a migração do Twitter para as mãos do bilionário Elon Musk, que rebatizou de X a rede social. Se antes a plataforma já era alvo de críticas por ser muito permissiva quanto à circulação de preconceito e discurso deódio, a gestão de Musk à frente da empresa dá indícios de que ainda menos restrições serão impostas.

Além disso, o histórico dos dois países que compuseram o corpus do presente trabalho enseja preocupação. Enquanto o Brasil vem de uma ditadura militar (1964-1985) relativamente recente e de um governo identificado com valores autoritários e extremistas (Jair Bolsonaro, 2019-2022), o passado nazista e o atual crescimento de partidos e células extremistas são motivo de preocupação na Alemanha.

Tanto o Supremo Tribunal Federal, no Brasil, quanto o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (TCFA) deverão ser provocados a, em breve, se posicionar sobre a questão central que permeia este artigo: qual será o ponto de equilíbrio entre liberdade de expressão e manifestação de conteúdo violento, preconceituoso e de desrespeito aos pilares democráticos e constitucionais?
A internet tem potencializado as discussões sobre esse dilema e contribuído para potencializar e facilitar a propagação de determinadas ideias, discursos e pensamentos, com novidades, transformações e evoluções (em tecnologia, plataformas, meios) tão rápidas e constantes que as legislações e o Judiciário têm tido dificuldade de acompanhar a contento. Mesmo governos poderosos, em nível global, parecem interessados em problematizar a questão, haja vista as propostas em torno de regulação de plataformas digitais. Portanto, será fundamental que meio acadêmico e sociedade civil continuem a estudar e a aprofundar o assunto.

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Ana Carolina Brandão da Silva E-mail: acb.silva@unesp.b

Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Graduou-se em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela mesma instituição.

Carlo José Napolitan carlo.napolitano@unesp.br

Professor Associado da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru/SP.

Enrico Lentini Gibott enricolen@hotmail.com

Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito (PPGD) da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e bacharel em direito pela mesma instituição. Bolsista CAPES.

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Professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Faculdade de Direito, coordenador e membro do corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito (PPGD). Doutor, Brasil.

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Matheus Ramalho Orlando: doutorando e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru, além de jornalista formado pela mesma instituição.

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Estudante de Graduação do 9º semestre do Curso de Jornalismo da Faculdade de Arquitetura Artes Comunicação e Design da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Bauru. Bolsista CNPq de iniciação científica.

Tatiana Stroppa tatianastroppa@hotmail.com

Tatiana Stroppa: Professora do Centro Universitário de Bauru (ITE-SP) e da Faculdade Iteana de Botucatu, advogada. Doutora, Brasil.