Resumo
O objetivo deste trabalho é averiguar em que medida os Termos de Uso, enquanto espécie contratual específica, se adequam a parâmetros mínimos de efetivação de Direitos Fundamentais. A pesquisa desenvolveu-se a partir da teoria da eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais (Drittwirkung). Buscou-se, em primeiro lugar, verificar se Intermediários de Internet – empresas que desenvolvem plataformas online e aplicativos e proveem o acesso à Internet – são capazes de impor limitações a direitos fundamentais dos usuários. Em seguida, a pesquisa analisou a materialização da relação jurídica entre plataformas e usuários através dos Termos de Uso, analisando sua validade no ordenamento jurídico brasileiro e os problemas relacionados à obtenção do consentimento do usuário. Por fim, os Termos de Uso foram analisados enquanto espécie contratual específica, ressaltando-se cláusulas comuns a este tipo de contrato e como tais disposições se opõem aos direitos de privacidade, liberdade de expressão e devido processo legal. A pesquisa concluiu que os Termos de Uso e as políticas de privacidade das empresas não se mostram compatíveis, em diversos aspectos, com garantias mínimas dos Direitos Fundamentais dos usuários.
1. Introdução
A Internet mudou o mundo. É difícil imaginar um campo social ou do pensamento científico que não tenha sido impactado com as inovações trazidas pela World Wide Web. No plano econômico, o desenvolvimento de tecnologias da informação culminou no surgimento de novos players globais, os gigantes da Internet, que hoje ocupam os primeiros lugares nos rankings de empresas mais valiosas do mundo (Brand Finance Global 500, 2019)1. Estes conglomerados têm ganhado posições dominantes em mercados e impactado outros negócios, seja a Amazon no comércio eletrônico, o Google nas buscas ou no audiovisual ou o Facebook na divulgação de conteúdos e nas rendas de publicidade. À medida em que essas empresas passam a concentrar mais poder econômico e social (Valente & Pita, 2018)2 e se tornam capazes de regular comportamentos (Lessig, 2006), é preciso investigar como se dá a relação jurídica entre estas empresas e seus usuários e verificar se existem abusos que comprometem liberdades básicas dos indivíduos, restringindo direitos como a privacidade, a liberdade de expressão, o devido processo e o direito à reparação de danos.
O objetivo deste trabalho é identificar potenciais violações a direitos e garantias fundamentais de usuários de plataformas online e em que medida estas violações são legitimadas nos Termos de Uso destas plataformas. Os Termos de Uso são contratos assinados eletronicamento pelo usuários que desejam criar um perfil em plataformas online e estabelecem os contornos jurídicos da relação entre a empresa e o indivíduo. A investigação compõe-se da seguinte forma:
A seção 1 busca demonstrar que os Intermediários de Internet são agentes capazes de impor limitações a direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, privacidade e devido processo. Em seguida, discute-se a aplicação destes direitos na relação privada entre os usuários e os Intermediários de Internet, a partir da teoria da eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais.
A seção 2 trata dos Termos de Uso como mecanismo de materialização de uma relação jurídica entre plataformas online e usuários. Busca verificar a validade destes contratos em nosso ordenamento jurídico, classificá-los dentro da Teoria dos Contratos e analisar os problemas relacionados à manifestação do consentimento do usuário em face de disposições da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor, do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados.
A seção 3 apresenta a estrutura geralmente apresentada pelos Termos de Uso, apontando cláusulas comuns e indicando conflitos que podem surgir entre estas cláusulas e os direitos à privacidade, liberdade de expressão, devido processo e direito à reparação de danos. A partir de um padrão de cláusulas comuns identificado por estudos anteriores, são apresentadas disposições exemplificativas extraídas de Termos de Uso de plataformas online de grande notoriedade. Foram usados como exemplos cláusulas dos Termos de Uso das seguintes companhias/serviços: Apple, Facebook, Google, LinkedIn, Microsoft, PayPal, Spotify, Twitter, Vimeo, Whatsapp e Youtube, todas com pelo menos 100 milhões de usuários, com sites posicionados entre os 200 mais acessados de acordo com o ranking Alexa e mencionados em uma ou mais versões do Internet Economy Outlook, publicação bienal da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre a economia da Internet3.
2.Eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre plataformas online e usuários
Os Direitos Fundamentais, compreendidos como aqueles Direitos Humanos reconhecidos e positivados por uma ordem jurídica nacional, estão historicamente atrelados à relação indivíduo-Estado. São direitos básicos, conquistados através de lutas contra abusos e omissões do Estado (Bonavides, 2018). Contudo, a partir dos anos 1950 construiu-se uma teoria jurídica na qual os efeitos de alguns destes Direitos Fundamentais deveria se expandir para além da relação entre o indivíduo e o Poder Público, irradiando-se nas relações sociais como um todo.
O reconhecimento de que novas entidades poderiam pôr em risco as liberdades individuais impulsionou a ideia de que os Direitos Fundamentais devam ser entendidos não só como garantias do indivíduo em face do Estado, mas sim como valores básicos que devem orientar as relações jurídicas e sociais, e que merecem ser promovidos em todos os aspectos da vida civil, inclusive nas relações contratuais entre particulares. Conforme aponta Gilmar Mendes (2009), este entendimento ficou conhecido como “efeito externo”, “eficácia horizontal dos direitos fundamentais” ou, simplesmente, “eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas”:
Tudo isso contribuiu para que se assentasse a doutrina de que também as pessoas privadas podem estar submetidas aos direitos fundamentais. A incidência das normas de direitos fundamentais no âmbito das relações privadas passou a ser conhecida, sobretudo a partir dos anos cinquenta, como o efeito externo, ou a eficácia horizontal, dos direitos fundamentais (a Drittwirkung do Direito alemão). Desse efeito vêm-se extraindo desdobramentos práticos não negligenciáveis, que traçam novas perspectivas para o enfrentamento de questões quotidianas. (Mendes, 2009, p. 310)
Com efeito, a eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações privadas vem sendo reconhecida e até mesmo positivada, como no caso da Constituição da República Portuguesa (2005), que preceitua em seu art. 18 que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. No Brasil, a aplicabilidade dos Direitos Fundamentais nas relações privadas vai buscar sua justificativa na aplicabilidade imediata dos Direitos Fundamentais prevista no art. 5º, §3º, da Constituição Federal de 1988, no princípio da máxima efetividade das normas constitucionais e no fenômeno da constitucionalização do Direito Privado.
A intensidade da eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações privadas deve ser verificada em cada caso, levando-se em consideração se a relação jurídica privada sob análise é uma relação desigual de poder, isto é, se uma das partes da relação jurídica é detentora de poder social enquanto a outra parte não goza dos mesmos poderes econômicos, sociais e políticos, conforme lição de Ingo Sarlet:
constata-se a existência de relativo consenso a respeito da possibilidade de se transportarem diretamente os princípios relativos à eficácia vinculante dos direitos fundamentais para a esfera privada, já que se cuida induvidosamente de relações desiguais de poder, similares às que se estabelecem entre os particulares e os Poderes públicos. Relativamente à intensidade, sustenta a doutrina majoritária que a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais – em se tratando de detentores de poder social – será também equivalente à que se verifica no caso dos órgãos estatais. (Sarlet, 2012, p. 325)
Daniel Sarmento também entende que deve haver aplicação direta dos Direitos Fundamentais nas relações jurídicas assimétricas:
A desigualdade material justifica a ampliação da proteção dos direitos fundamentais na esfera privada, porque se parte da premissa de que a assimetria do poder prejudica o exercício da autonomia privada das partes mais débeis. O hipossuficiente, no mais das vezes vai acabar curvando-se diante do arbítrio do mais poderoso, ainda que, do ponto de vista puramente formal, seu comportamento possa parecer decorrente do exercício da sua autonomia privada. (Sarmento, 2004, p.262)
Para Konrad Hesse (1998), a vinculação direta dos particulares aos Direitos Fundamentais se verifica nos casos em que se cuida de exercício de poder econômico e social e a liberdade fundamental individual se encontra particularmente ameaçada.
Percebe-se que a doutrina jurídica é consistente ao reconhecer a aplicabilidade imediata dos Direitos Fundamentais naquelas relações privadas em que haja uma certa subordinação entre o indivíduo e o ente privado dotado de maior poder social. Resta saber se a relação entre os Intermediários de Internet e seus usuários pode ou não ser classificada como paritária, ou se entre eles existe uma desigualdade capaz de justificar a aplicação dos Direitos Fundamentais naquelas relações.
Evidentemente, os Intermediários de Internet são estruturas dotadas de grande poder sobre os indivíduos e se apresentam como verdadeiras infraestruturas de serviços considerados essenciais. Os gigantes da Internet4, por sua dimensão e oferta de serviços em grande escala, tornaram-se indispensáveis ao cotidiano do homem contemporâneo. O Google é uma ferramenta indispensável para busca de dados; a Amazon tornou-se a empresa mais valiosa do mundo e exerce um papel fundamental no setor de vendas a varejo; e o Facebook tornou-se imprescindível para o fluxo de informações e comunicação entre pessoas. À medida em que estas plataformas são mais utilizadas, elas se tornam mais fundamentais para o acesso à informação, podendo-se afirmar que parte da vida econômica, social e cultural dos indivíduos flui por meio dos serviços oferecidos por estas empresas.
Rahman (2018) identificou diferentes formas de poder exercidos pelos Intermediários de Internet, especialmente pelas plataformas online. Em primeiro lugar, as plataformas online detêm a seu favor a quantidade de usuários que dependem do seu serviço e o acessam diariamente. Isto gera uma procura por parte de outras entidades que desejam ver seu conteúdo veiculado por meio daquelas plataformas online que possuem muitos usuários. Hoje, por exemplo, os grupos de jornalismo precisam veicular suas notícias por meio do Facebook para garantir mais acessos, da mesma forma que editoras e autores, se quiserem alcançar um maior número de potenciais clientes, colocarão seus livros à venda na Amazon. Além disto, é comum que plataformas online estipulem preços para aqueles interessados em ver seus conteúdos destacados ou impulsionados.
Isto leva a uma outra forma de poder: o controle da transmissão de informações. Através de seus algoritmos, as plataformas online podem privilegiar determinados conteúdos em detrimentos de outros, controlando, portanto, o fluxo de informações recebidas pelo usuário. Através de pequenos ajustes nos seus códigos e motores de busca, é possível, por exemplo, que o Google apresente determinada informação no topo da sua lista de resultados para alguns usuários e resultados diferentes para outros utilizadores.
Em terceiro lugar, as plataformas online, em especial as redes sociais, possuem mecanismos de classificação e etiquetação dos seus usuários. Através das informações coletadas, como páginas visualizadas e conteúdos com o qual o usuário interagiu e classificou, as redes sociais “encaixam” seus usuários em determinados perfis e grupos sociais, com o fim de direcionar publicidade e apresentar conteúdo relevante para aquele grupo ou indivíduo. A geração destes rankings de usuários e produtos afeta diretamente as escolhas feitas pelos usuários no que se refere a compras online e consumo de conteúdo na Internet. Esta segmentação dos usuários, segundo Lorenzetti (2004)5, tem despertado críticas. A etiquetação performada pelas plataformas onlinee a adoção de algoritmos acaba reproduzindo vieses de gênero, classe social e etnia, reforçando estereótipos arraigados na sociedade (Frazão, 2019).
Como se percebe, as plataformas online detêm um alto grau de controle sobre o fluxo de informações na Internet, o que lhes garante um poder social que dificilmente será alcançado por um único indivíduo. Analisando a capacidade que os Intermediários de Internet têm de afetar a vida cotidiana de seus usuários, é evidente que na relação entre eles deve prevalecer o entendimento de que se aplicam os Direitos Fundamentais. É afirmar, portanto, que, nas relações entre usuários e Intermediários de Internet, os Direitos Fundamentais devem ser respeitados como meio de alcançar um equilíbrio na relação jurídica firmada entre as partes.
É preciso dizer, no entanto, que o reconhecimento da eficácia dos Direitos Fundamentais nas relações privadas não busca anular o princípio da autonomia privada. Busca-se, por outro lado, preservar o princípio da autonomia sem que isso signifique o poder de sujeitar e ser sujeitado à arbitrariedade de entidades privadas. É evidente que na colisão entre direitos fundamentais de titulares diversos deve ser buscada uma solução norteada pela ponderação dos valores em pauta, almejando obter um equilíbrio e concordância prática, caracterizada pelo não sacrifício completo de um dos Direitos Fundamentais, bem como pela preservação, na medida do possível, da essência de cada um.
Em seguida, será feita uma análise de como os Termos de Uso das plataformas online materializam uma relação jurídica contratual, na qual a autonomia privada e a aplicabilidade de outros Direitos Fundamentais estão em conflito.
3.Dimensão contratual dos termos de uso: autonomia e consentimento
As relações cibernéticas nunca foram livres de uma regulação offline. Em verdade, a Web foi, em vários aspectos, produzida e monitorada pelo poder estatal, que vem tentando regulamentar sua utilização através de uma robusta legislação. Tampouco a Internet está livre dos poderes e interesses corporativos. Atualmente, as maiores comunidades e os serviços mais utilizados são de propriedade de empresas de tecnologia, comumente chamadas de “gigantes da Internet”, com capacidade de controle sobre as estruturas e algoritmos que formam a rede. Além da regulação legal e por código ou algoritmo (Lessig, 2006), os usuários de Internet se submetem, por fim, a uma regulação contratual. A grande maioria dos provedores de serviços online, ao oferecerem seus serviços, exigem que o usuário final se vincule a um contrato que regula a relação jurídica entre as partes. Estes contratos são comumente denominados pelas expressões “termos de uso” (“terms of use”), “acordo do usuário” (“user agreement”), “condições de uso” (“conditions of use”), “avisos legais” (“legal notices”), “termos” (“terms”) ou “termos e condições de uso” (“terms and conditions of use”).
Qualquer pessoa que tente acessar serviços oferecidos por plataformas online será defrontada com a necessidade de concordar com a seguinte afirmação: “Li e aceito os Termos de Uso”. Os Termos de Uso ou Termos de Serviço são contratos que governam a relação jurídica entre o usuário final e o provedor de serviços online. Estes contratos são geralmente acompanhados de outros documentos anexos, como políticas de privacidade, política de cookies, padrões de comunidade, entre outros (Venturini et al., 2016).
Os Termos de Uso são documentos padronizados, definidos unilateralmente pelo provedor de serviços e apresentados indiscriminadamente a todos os usuários. Considerando que os usuários não têm a possibilidade de negociar, mas apenas de aceitar ou não as cláusulas, esses contratos se encaixam na categoria de contratos de adesão, definidos pelo Código de Defesa do Consumidor no seu art. 54, caput;
Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
A adoção deste tipo de contrato busca viabilizar a oferta de um produto a nível global, eliminando custos com negociação e eventuais responsabilidades. A falta de um instrumento jurídico padronizado submeteria as plataformas online a um elevado grau de risco econômico e jurídico, mormente quando estes serviços podem ser utilizados por uma quantidade indeterminada de usuários nas mais diversas jurisdições. Trata-se, portanto, de mecanismo jurídico que visa viabilizar a oferta dos serviços a nível global, criando previsibilidade e segurança jurídica, resguardando o provedor de serviços online de uma série de limitações jurídicas existentes, como a responsabilidade pelo fato ou vício do produto ou do serviço, a diversidade de jurisdições competentes e de leis aplicáveis para o julgamento de eventuais litígios. Na prática, percebe-se que os Termos de Uso oferecem muitas vantagens aos provedores de serviços online, que os utilizam para impor cláusulas limitativas dos direitos dos usuários.
Ditos contratos devem ser classificados como relações de consumo. No direito brasileiro, a relação jurídica de consumo é estabelecida pela composição de fornecedor e consumidor em lados opostos, e tendo como objeto o produto ou serviço, conforme se depreende da análise dos arts. 2º e 3º do CDC6. A categoria de produto ou serviço é desenvolvida no art. 3º, parágrafos 1º e 2º, do CDC com ampla abrangência, considerando todo bem ou atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração. Há que se dizer, porém, que a obtenção de lucro por parte da empresa de tecnologia nem sempre está associada ao pagamento de forma direta e monetária pelo usuário. No caso das redes sociais por exemplo, os usuários não realizam pagamentos para a utilização de suas contas. Isso não significa, contudo, que as plataformas não possuam fins lucrativos. Empresas provedoras de aplicações e de conteúdo recebem remuneração de outras formas, comercializando dados e direcionando campanhas publicitárias realizadas para seus usuários, sem que estes possam escolher tê-las ou não.
Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a remuneração de que trata o artigo 3º, § 2º, do CDC não precisa necessariamente ser econômica, bastando que algum benefício seja adquirido por aquele que figura enquanto fornecedor, como é o caso das remunerações indiretas auferidas pelas redes sociais7. Conclui-se, portanto, que se tratam de relações de consumo, segundo a lei e jurisprudência nacionais.
Quanto à forma de obtenção do consentimento dos usuários, os Termos de Uso podem ser classificados em “click-wrap agreements” ou “browse-wrap agreements“. Nos “click-wrap agreements” ou “contratos de clique”, os termos do contrato ou os meios para acessá-lo são exibidos previamente para o utilizador, que tem a opção de aceitá-los mediante um clique num botão virtual que indique sua concordância. Já nos “browse-wrap agreements”, as cláusulas contratuais são disponibilizadas por meio de um hiperlink no rodapé da página do site, com pouca visibilidade, e incluem cláusulas que vinculam o usuário sem sua aceitação expressa, que é presumida pelo mero acesso ao site ou utilização do serviço.
A modalidade “browse-wrap agreement” não tem sido considerada válida pela maioria dos tribunais e doutrina do sistema Common Law, tampouco pelos tribunais da União Europeia (Lima, 2009). Também não seria sustentável defender sua aplicação e validade de acordo com o direito brasileiro, uma vez que, nesta espécie, não se concede oportunidade prévia ao usuário de analisar a cláusulas dos Termos de Uso a que se pretende sua vinculação, e “sem o mútuo consenso, sem a alteridade, não há contrato” (Tartuce, 2014, p. 137). Admitir a validade dessa modalidade contratual feriria o direito do consumidor à informação clara e precisa (art. 6º, inc. III do CDC8), a boa-fé objetiva e a própria autonomia privada. A propósito:
O “browse-wrap” demanda pouca ou nenhuma interação com o usuário, que, usualmente, nem chega a tomar conhecimento de sua existência, haja vista o formato utilizado para a exposição do hiperlink, isto é, indicado com letras minúsculas, no canto inferior da página da internet (geralmente não visível quando se acessa o site) e com uma cor demasiadamente clara, a ponto de tornar-se imperceptível, tendo em vista a cor utilizada no plano de fundo da tela. Assim, o consumidor que, ingenuamente, acesse uma página na internet, poderá estar se vinculando a termos e condições que sequer tomou conhecimento de sua existência. Por isso, esta prática comercial telemática chama a atenção dos juristas, na busca incessante da justiça e equilíbrio contratual, ainda mais em se tratando de uma relação de consumo. Portanto, os consumidores merecem um sistema de proteção diferenciado, ainda mais diante deste novo contexto tecnológico. (Lima, 2009, p. 540)
Por outro lado, é possível afirmar que a doutrina se inclina para a validade dos “click-wrap agreements”, justamente porque nesta modalidade o usuário manifesta sua vontade expressamente, exteriorizando-a através de uma conduta social típica, ou seja, um clique em um determinado ícone representativo de sua anuência (Lima, 2009):
A expressão “click-wrap” deriva do fato de que estes contratos online frequentemente requerem um clique com o mouse em um ícone na tela ou num botão que sinaliza a aceitação da parte às condições contratuais. Os contratos click-wrap são usados, dentre outras coisas, para (1) estabelecer os termos para o download e uso de programas na Internet; (2) definir os Termos de Uso de um site, isto é, as condições para que os usuários acessem um site ou a parte de um site, como um chat ou um serviço de mensagem; e (3) estabelecer os termos para venda bens e serviços online. (Buono & Friedman, 1999)9
Logo, o consentimento eletrônico nos contratos do tipo “click-wrap”é manifestado de forma expressa no momento em que o adquirente clica no ícone referente à expressão de anuência, tais como “eu aceito”, “eu concordo”, “sim”, etc. A partir deste instante, em linha com o princípio do Direito Civil de que o contrato se torna lei entre as partes (pacta sunt servanda), o usuário-adquirente está obrigado às cláusulas contratuais, com as quais concordou expressamente. Esta concordância expressa, contudo, não significa a impossibilidade de se anular o contrato ou algumas de suas cláusulas. O acordo poderá ser anulado nos casos de vício no consentimento, ou seja, naquelas hipóteses nas quais a concordância com os Termos de Uso tenha se dado por erro, dolo ou coação, ou estado de necessidade.10 Também será possível declarar nulas cláusulas consideradas abusivas, conforme o art. 51 do CDC, como, dentre outras, cláusulas de isenção de responsabilidade, arbitragem compulsória e aquelas que possibilitem a alteração unilateral do contrato pelo fornecedor sem garantir esta opção para o usuário.
O artigo 5º, XII, da Lei Geral de Proteção de Dados define o consentimento como a “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade específica”. No formato “click-wrap agreement”, pode-se dizer que o consentimento é livre e inequívoco. Contudo, não é possível afirmar, com certeza, que o consentimento é informado. O clique do usuário no botão representativo de sua anuência, embora possa ser compreendido como um engajamento na confirmação do seu consentimento, não implica a existência de um assentimento plenamente informado. Isto porque não se espera usuário comum que leia todos os Termos de Uso dos serviços e produtos online utilizados e, menos ainda, que os termos sejam plenamente compreendidos por usuários que não são detentores de conhecimento jurídico. Os principais obstáculos a um consentimento informado e esclarecido sobre os Termos de Uso são os seguintes: o texto longo, a linguagem ininteligível e a dificuldade de encontrar e acessar os Termos de Uso.
Vários estudos apontam que a leitura é demorada. Um estudo da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, de 2008, mostrou que um usuário precisaria reservar oito horas diárias e 76 dias para ler somente as políticas de privacidade de uma média de 1.462 páginas visitadas em um ano (McDonald & Cranor, 2008). Em 2007, um estudo monitorou mais de 48.000 indivíduos que visitaram a página de um serviço e os resultados mostraram que os Termos de Uso foram acessados por menos de 0,2% dos visitantes e, entre os que visitaram, o tempo médio gasto visualizando o contrato foi de 30 segundos (Bakos, Marotta-Wurgler, & Trossen, 2014). Num ambiente virtual marcado pela troca rápida de informações, a leitura dos Termos de Uso se torna dispendiosa e enfadonha, consumindo o tempo produtivo dos usuários.
Além disto, a linguagem utilizada pelos provedores de serviços online não é suficientemente clara para os usuários. Os Termos de Uso são escritos em linguagem jurídica densa, com utilização de termos técnicos de difícil compreensão por parte do usuário final. Os termos utilizados são vagos, de modo a abranger o maior número possível de situações fáticas e isentar os provedores de serviços online de eventuais responsabilidades. Um estudo realizado por Prichard e Hayden (2008), analisou o quão inteligíveis eram 100 Termos de Uso do tipo “click-wrap” e concluiu que entre 61 e 97% dos contratos eram difíceis ou muito difíceis de serem entendidos e que apenas entre 1% e 11% dos contratos poderiam ser facilmente entendidos pelo usuário médio.
O acesso aos Termos de Uso é, ainda, deliberadamente dificultado, seja pela alocação na página de Internet, seja pela formatação de seu texto. Muito embora os contratos de clique permitam que o usuário acesse os Temos de Uso antes de aceitá-los, o meio para visualizar estes Termos nem sempre é claro. O hyperlink de acesso às cláusulas é geralmente indicado com letras minúsculas, no canto inferior da página da Internet (geralmente não visível quando se acessa o site) e com uma cor demasiadamente clara ou escura, a ponto de tornar-se imperceptível, tendo em vista a cor utilizada no plano de fundo da tela. Outras técnicas utilizadas incluem a maior ênfase dada aos botões de “EU ACEITO”, enquanto que os botões relacionados à rejeição, cancelamento ou discordância são colocados de maneira discreta. Finalmente, as fontes e a diagramação utilizada nos textos dos contratos não favorecem a leitura confortável e fluida, nem há qualquer segmentação no texto que facilite a busca por uma informação específica.
O fato de os Termos de Uso serem longos, complexos e de difícil acesso garante às empresas a possibilidade de incluir cláusulas desfavoráveis e até mesmo absurdas. Em uma brincadeira no dia 1º de abril de 2010, a loja de jogos online Gamestation.co.uk incluiu uma disposição nos seus Termos de Uso estabelecendo a transferência da alma do usuário para a empresa. No total, 7.500 usuários não clicaram na opção de “cancelar transferência de alma” disponibilizada pelo site11. Por outro lado, algumas empresas já deram prêmios para os primeiros usuários que lessem os Termos de Uso. Em 2019, a empresa de seguros SquareMouth lançou uma campanha secreta chamada It Pays to Read para disseminar a importância da leitura dos Termos de Uso. A companhia pagou um prêmio de 10 mil dólares para a primeira cliente que leu todos os Termos de Uso.12
Para minimizar os problemas relacionados com a leitura dos Termos de Uso e outros contratos de adesão, o Código de Defesa do Consumidor, no seu art 54, §3º, estabeleceu o princípio da legibilidade das cláusulas contratuais, impondo que estes instrumentos devam ser redigidos em letra do tipo Times New Roman e tamanho da fonte 12. Além disto, as cláusulas que impliquem em restrição de direitos, como as que limitam a responsabilidade do fornecedor e elegem determinado foro, devem estar destacadas nos termos do §4º do mesmo dispositivo legal. Quanto às ambiguidades e contradições, as informações devem ser prestadas de forma clara, em atenção ao artigo art. 7º, inciso VI e XI, do Marco Civil da Internet13 e do art. 6º, III, do CDC, sendo vedada, portanto, a redação confusa que, muitas vezes, tem o fim de ludibriar o usuário, que desiste de entender a cláusula e acaba aceitando o contrato. De qualquer forma, o ônus da clareza cabe ao provedor de serviços online, sob pena de sofrer os prejuízos da interpretação mais favorável ao consumidor14 ou mais favorável ao aderente em caso de dúvida15.
4.Cláusulas comuns aos termos de uso
A redação das cláusulas dos Termos de Uso, na forma como comumente se apresentam, tem sido cada vez mais objeto de discussão, uma vez que tais cláusulas têm implicações diretas na efetivação dos Direitos Fundamentais dos usuários de Internet. Os Termos de Uso definem, entre outras coisas, como o conteúdo gerado por usuários será tratado, suspenso ou bloqueado; se os dados do usuário poderão ser comercializados, monitorados e/ou entregues às autoridades; e como disputas judiciais serão resolvidas. Exercem, portanto, enorme influência na implementação dos direitos dos usuários de Internet no que se refere à liberdade de expressão, à privacidade e intimidade e ao devido processo legal, respectivamente.
Estudos anteriores apontam que os Termos de Uso dos principais provedores de serviços online, apesar de variarem significativamente no seu conteúdo e extensão, apresentam muitas similaridades e seguem um determinado padrão. Bradshaw, Millard, e Walden (2010), por exemplo, identificaram uma série de 20 tipos de cláusulas que são comuns a este tipo de contrato. Loos e Luzak (2016) identificaram cinco categorias de cláusulas potencialmente inválidas em Termos de Uso. A partir destes padrões, já é possível, inclusive, categorizar e classificar cláusulas injustas através de mecanismos de inteligência artificial (Lippi et al., 2019). Disposições contratuais com alto grau de incidência incluem aquelas relativas a (1) jurisdição competente e legislação aplicável ao contrato; (2) uso dos produtos e serviços, suas proibições e controle de conteúdo; (3) alterações contratuais; e (4) privacidade, monitoramento, tratamento, compartilhamento e divulgação de dados pessoais e; (6) limitação de responsabilidade.
4.1.Jurisdição competente e legislação aplicável ao contrato
As partes envolvidas em um negócio jurídico podem acordar entre si a eleição de foro para solucionar eventuais controvérsias que surgirem em razão do contrato. A grande maioria dos Termos de Uso costuma incluir cláusulas que definem sob qual legislação o contrato será regido.
Venturini (2016), ao analisar uma série de 50 Termos de Uso de diferentes plataformas, concluiu que 86% dos serviços impõem alguma jurisdição específica em suas políticas. A escolha típica é a da legislação do local onde se encontra a sede da empresa. No caso de plataformas com operação global, diferentes versões dos Termos de Uso costumam indicar legislações específicas, de acordo com o local de acesso do usuário.
Por exemplo, os Termos de Serviço da rede LinkedIn estabelecem que na “hipótese de um litígio judicial, o LinkedIn e você concordam que serão competentes os tribunais da Califórnia, em conformidade com a legislação da Califórnia ou os tribunais de Dublin, Irlanda, em conformidade com a legislação irlandesa.”16
A adoção deste tipo de cláusula é particularmente preocupante porque, em teoria, limita substancialmente a já reduzida capacidade do usuário de entender os riscos do contrato. Não é razoável exigir que o usuário comum tenha conhecimento acerca das peculiaridades legislativas de cada local em que operam as sedes das plataformas acessadas.
Assim, a jurisprudência nacional refuta a aplicação de normas internacionais nas relações que envolvam o consumidor nacional. Klausner (2012), analisando a concepção do STJ quanto à legislação aplicável nas relações internacionais de consumo, assevera que o tribunal considera o CDC uma norma de ordem pública internacional, de aplicação imperativa e com eficácia extraterritorial a todo conflito de consumo internacional. Preferível, no entanto, é o entendimento de que a legislação internacional poderá ser aplicada ao contrato desde que seja mais benéfica ao consumidor.
Da mesma forma que na cláusula de eleição da legislação aplicável, as plataformas incluem cláusulas que indicam o foro competente para dirimir eventuais conflitos com o usuário. Estas cláusulas geralmente acompanham a cláusula de legislação aplicável e definem o foro competente como o foro do local da sede da empresa.
O serviço de streaming de música Spotify, por exemplo, reconhece a legislação brasileira como aplicável, mas restringe o foro competente para resolução de litígios aos tribunais situados no estado de São Paulo. A rede social Tumblr, por sua vez, exige que o usuário que deseja utilizar seus serviços concorde que “quaisquer queixas ou litígios que possa ter contra o Tumblr terão de ser resolvidos exclusivamente por um tribunal estadual ou federal no Condado de Nova Iorque, Nova Iorque”17.
Em se tratando de contratos de consumo, a jurisprudência pátria já se consolidou no sentido da abusividade latente das cláusulas que, seja pela eleição de um foro especial para o contrato de consumo, seja por impor uma arbitragem privada ou de órgãos ligados aos fornecedores, acabam por dificultar (ou mesmo inviabilizar) o acesso à justiça, afrontando direitos fundamentais do consumidor. A eleição de foro diverso do domicílio do consumidor, ainda que não inviabilize ou impossibilite, dificulta sua defesa e ofende o art. 6º, VIII, do CDC, que diz ser direito básico do consumidor a facilitação de sua defesa em juízo (Grinover et al., 2019). Logo, tal cláusula ofende o “sistema” de defesa do consumidor, sendo, portanto, nula. Juntamente com as cláusulas que determinam uma legislação estrangeira para reger o contrato, estas provisões violam a garantia de uma proteção judicial efetiva, prevista no art. 5º, XXXV, da CF18 .Esta é a posição do Superior Tribunal de Justiça, que considera inválidas as cláusulas de eleição de foro em contrato que consumo quando a) no momento da celebração, a parte aderente não dispuser de intelecção suficiente para compreender o sentido e as consequências da estipulação contratual; b) a prevalência de tal estipulação resultar em inviabilidade ou especial dificuldade de acesso ao Judiciário; c) se tratar de contrato de obrigatória adesão, assim entendido o que tenha por objeto produto ou serviço fornecido com exclusividade por determinada empresa.19
O Marco Civil da Internet ratificou todo o sistema protetivo estabelecido pelo CDC ao dispor, em seu art. 8º, sobre a nulidade das cláusulas que, “em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil”.
Outro ponto relevante é a adoção de cláusula de arbitragem. Não raramente, as plataformas online incluem cláusulas arbitrais em seus Termos de Uso. Com relação à adoção deste tipo de cláusula em contratos de adesão, existe posicionamento consolidado na jurisprudência brasileira. O Superior Tribunal de Justiça possui precedentes reconhecendo a eficácia da cláusula de arbitragem neste tipo de contrato apenas quando o “aderente venha a tomar a iniciativa de instituir a arbitragem, ou concorde, expressamente, com a sua instituição”20. A Corte também entendeu que a cláusula arbitral não prevalece quando o consumidor procura a via judicial para a solução de litígios21.
4.2.Controle de conteúdo, uso dos produtos e serviços e suas proibições
As plataformas online, via de regra, incluem uma ou mais cláusulas definindo práticas aceitáveis no uso de seus produtos e serviços, bem como quais condutas são vedadas quando de sua utilização. Ações para combater as condutas indesejadas incluem monitoramento, filtragem, bloqueio e a remoção de conteúdos postados e hospedados, a exclusivo critério da própria plataforma. Os Termos de Uso do Instagram, por exemplo, autorizam a empresa a “remover qualquer conteúdo ou informação compartilhada no Serviço” se a empresa acreditar que tal conteúdo viola os Termos de Uso, as políticas ou quando o Instagram estiver autorizado ou obrigado por lei a assim proceder22. As atividades e condutas comumente consideradas impróprias incluem, entre outras, o envio de spam, o cometimento de fraudes, invasões em contas de outros usuários, a postagem ou hospedagem de conteúdo que seja ilegal, obsceno, difamatório ou que promova discriminação, o cometimento de crimes ou discurso de ódio.
A Organização das Nações Unidas, por meio do Parecer do Relator Especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão (2018), aponta que medidas de censura não devem ser delegadas a agentes privados. Por outro lado, em consonância com a jurisprudência das cortes constitucionais ao redor do mundo, incluindo o STF, o parecer reconhece conteúdos que podem ser legitimamente proibidos: (i) pornografia infantil; (ii) discurso de ódio; (iii) difamação e (iv) apologia à violência (incluindo genocídio, discriminação e hostilidade contra grupos minoritários). A maior parte das plataformas se reserva o direito de remover e proibir certos conteúdos, além de dispor de mecanismos que permitem aos usuários denunciarem conteúdos considerados violadores de direitos, da legislação local (p. ex., pornografia infantil, racismo) ou que violem os Termos de Uso da plataforma. A polêmica em relação a estas cláusulas reside na definição dos limites daquilo que se pode considerar como “aceitável”, “obsceno” e “discriminatório”, dentre outras definições vagas e imprecisas.
A proibição do Twitter de um “comportamento que incite medo sobre um grupo protegido”23, por exemplo, não serve de base para uma moderação de conteúdo adequada. A falta de clareza das políticas no que se refere a ódio e comportamento abusivo tem dado lugar a denúncias de incoerência na aplicação destas políticas, de maneira a prejudicar minorias, ao mesmo tempo que fortalece a situação de grupos dominantes ou poderosos:
Os usuários e a sociedade civil denunciam atos de violência e abuso contra a mulher, incluindo ameaças físicas, comentários misóginos, publicação de fotografias íntimas falsas ou sem consentimento e a publicação de informações pessoais confidenciais; ameaças de agressão contra grupos politicamente marginalizados, raças e classes minoritárias e grupos étnicos que sofrem perseguição violenta; bem como abusos dirigidos contra refugiados, imigrantes e requerentes de asilo político. Ao mesmo tempo, as plataformas teriam reprimido o ativismo em favor das pessoas LGBTI; protestos contra governos repressivos; denúncias de limpeza étnica e críticas aos fenômenos e estruturas de poder de natureza racista.24 (Organização das Nações Unidas, 2018, p.12)
Em razão desta peculiaridade, as plataformas online têm reconhecido a importância de se considerar o contexto na análise da remoção de conteúdos. Apesar disto, o cuidado com o contexto não impediu a remoção de conteúdos com conteúdo histórico, cultural e educacional; relatos sobre conflitos; evidências de crimes de guerra; discurso contrário a grupos extremistas; e esforços para combater discursos homofóbicos, xenofóbicos e racistas25.
Esforços têm sido feitos na adoção de moderação por algoritmos e ferramentas automáticas, como a tecnologia PhotoDNA, que ajuda a detectar pornografia infantil. Ferramentas como esta podem ajudar as empresas a identificar rapidamente imagens com conteúdo ilegal em meio a infinidade de conteúdos enviados por usuários. Por outro lado, a aplicação irrestrita de algoritmos para remoção automática de conteúdo pode trazer riscos à liberdade de expressão, já que as tecnologias ainda têm certos limites para decifrar nuances e contextos da comunicação humana. Se a automação for utilizada para facilitar a moderação de conteúdo, as empresas devem empregar uma quantidade adequada de revisão realizada por humanos. Além disto, os critérios e processo de decisão dos algoritmos devem ser transparentes e incluir mecanismos de melhoria de forma a minimizar o eventual risco à liberdade de expressão.
Ainda com relação à remoção de conteúdo, outra queixa comum é de que os usuários que têm seu conteúdo removido ou denunciado podem não receber uma notificação sobre a retirada do conteúdo do ar ou de outras ações tomadas pelas plataformas. Organismos internacionais já recomendaram que as plataformas online devem notificar o usuário que teve seu conteúdo removido ou sua conta deletada e viabilizar mecanismos de esclarecimento e contraditório para se alinharem com a implementação dos Direitos Humanos. Apesar disto, apenas uma pequena porcentagem das plataformas online adota estes mecanismos de revisão e de contraditório (Venturini et al., 2016).
Os Intermediários de Internet, se considerados como meras empresas privadas, estão legalmente autorizados a estabelecer normas próprias do que pode ser considerado conteúdo aceitável no uso de seus serviços. No entanto, é preciso que se reconheça que as grandes empresas de Internet são responsáveis pela própria infraestrutura de acesso à rede. As redes sociais, especialmente, executam um papel de esferas quase-públicas ou esferas públicas virtuais (Lévy, 2011). Estas empresas têm, portanto, a responsabilidade de minimizar, em suas políticas, os impactos negativos nos Direitos Fundamentais de seus usuários, sob pena de violar o direto à liberdade de expressão, previsto nos arts. 5º, inciso IV26, e 22027 da Constituição Federal, devendo as restrições ao conteúdo serem estabelecidas de maneira clara e de acordo com preceitos basilares de Direitos Humanos.
4.3Alterações contratuais
Como um típico contrato de adesão, as cláusulas dos Termos de Uso são definidas unilateralmente pela plataforma fornecedora dos serviços. Isto não significa, porém, que as cláusulas definidas inicialmente possam ser alteradas a critério exclusivo do fornecedor, prática vedada pelo Código de Defesa do Consumidor28. O usuário só se vincula às cláusulas que lhe eram acessíveis até o instante da conclusão do contrato, ou seja, quando aceitou inicialmente os Termos de Uso, não sendo lícito às plataformas, após esse momento, pretender inserir, por ato unilateral, qualquer outra estipulação. As cláusulas às quais o consumidor não teve prévio acesso não terão eficácia se não foi respeitada a garantia da cognoscibilidade (Cavalieri Filho, 2019).
Para que a alteração posterior dos Termos de Uso seja eficaz, tornam-se necessários o conhecimento e o consentimento expresso do usuário no que se refere às alterações realizadas pelo fornecedor. Neste sentido, a alteração dos Termos de Uso deve ser precedida de notificação do usuário e da exigência de seu consentimento expresso para utilização da plataforma. Não obstante, é comum que se incluam nos Termos de Uso cláusulas garantindo às plataformas o poder de alterar cláusulas contratuais sem a anuência, participação ou notificação dos usuários. O YouTube, maior plataforma de vídeos do mundo, salienta em seus Termos de Serviço que a empresa “se reserva o direito de alterar estes Termos de Serviço a qualquer tempo e sem aviso”29.
Uma plataforma que apresenta uma melhor política de alteração dos contratos é a Wikipedia. O serviço disponibiliza as propostas de alterações para que os usuários façam comentários durante um período determinado. Da mesma forma, a empresa se compromete a notificar os usuários no caso de alterações nos Termos de Uso, mas considera o uso continuado dos serviços como anuência do usuário às alterações30.
Embora sendo claro que a negociação individual com cada usuário para alteração dos Termos de Uso seja impraticável, algumas boas práticas devem ser adotadas pelas plataformas para uma adequação a padrões mínimos neste quesito. Neste sentido, as Recomendações sobre Termos de Uso e Direitos Humanos apresentadas no 10º Fórum de Governança da Internet das Nações Unidas (2015) estabelecem que os Termos de Uso das plataformas devem respeitar o núcleo mínimo do direito de ser ouvido, devendo ser garantido ao usuário o direito de ser notificado a respeito da retirada de conteúdo, de alterações nos Termos de Uso e outros procedimentos31
4.4 Privacidade, monitoramento, tratamento, compartilhamento e divulgação de dados pessoais
O internauta, ao navegar, deixa um rastro de informações economicamente rentável. Em virtude da rotina de funcionamento da Internet, com o rastreamento de IPs, cookies e históricos de navegação, o usuário gera um perfil de uso aproveitável que possui valor de mercado. Este rastro de informações gerado pelo usuário relaciona-se com o chamado big data. Com uma enorme parcela da população utilizando diariamente as redes sociais, e consequentemente deixando rastros, e a disponibilidade cada vez maior de tecnologias para reter, agrupar e processar esses dados, aqueles que possuem acesso a esse manancial de dados prontamente passaram a utilizar tais ferramentas para apoiar os mais diversos processos de tomada de decisão.
Aliando tecnologias de extração de informações sobre usuários de Internet, desanonimização e combinação de dados, é possível que empresas tracem perfis psicológicos e prevejam, com alto grau de acerto, quais as preferências políticas e até mesmo em quais candidatos um usuário poderá ou irá votar, atingindo aspectos da intimidade do eleitor e do direito ao voto secreto, garantia fundamental que dá suporte ao sistema político democrático. É preciso, portanto, que o tráfego eletrônico de dados seja protegido para que não haja uma devassa na intimidade do indivíduo, fato que é constitucionalmente proibido, uma vez que todos têm direito à proteção de sua intimidade.
A privacidade tem status de Direito Fundamental, prevista no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal32. Especificamente no tocante à utilização da Internet, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) estabelece que o uso da Internet no Brasil tem como princípios a proteção da privacidade e a proteção dos dados pessoais33 (art. 3º, inciso II e III). Em relação aos dados pessoais, entrará em vigor, em 2020, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18), cujo objetivo, entre outros, é o de “proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade”.
Uma análise realizada por Kamarinou, Milard e Hon (2015) identificou a existência de padrões nos Termos de Uso utilizados pelas plataformas online também no que se refere à política de tratamento de dados pessoais dos usuários e privacidade. As cláusulas relacionadas à política de dados pessoais e privacidade são geralmente disponibilizadas em um documento apartado denominado “Política de Privacidade”, e apresentam uma série de provisões em comum, quase sempre muito desfavoráveis aos usuários. Os pontos que merecem destaque são aqueles relacionados (i) ao compartilhamento de dados; (ii) ao monitoramento de atividades e comunicações do usuário; e (iii) à divulgação de dados pessoais para autoridades.
4.4.1 Compartilhamento de dados
No que se refere ao compartilhamento de dados com terceiros para finalidades comerciais, técnicas ou de processamento, a maioria das plataformas permite o compartilhamento como opção padrão (default), cabendo ao usuário procurar a opção para desativar o compartilhamento, quando existente. Este é o chamado sistema opt-out. Isto confronta diametralmente com a opção adotada pelo legislador brasileiro, que exige a adoção de um sistema opt-in, no qual a opção oferecida por padrão deve ser aquela que não permite o compartilhamento de dados, até que o próprio usuário modifique esta opção. Esta foi a opção adotada pela Lei Geral de Proteção de Dados. Segundo a norma, é necessária a obtenção de consentimento explícito pelo titular dos dados, ou seja, este deve ser informado e dado livremente para que os consumidores optem ativamente por se engajar ou não em atividades que envolvam exposição de dados. A mesma opção foi adotada pelo Marco Civil da Internet:
Conforme exposto quando da análise do artigo 7º, da Lei 12965/2014, o sistema adotado pelo nosso ordenamento jurídico é denominado opt-in. Neste modelo, o usuário deverá consentir de forma expressa e inequívoca, quanto ao tratamento dos seus dados pessoais. Por outro lado, o sistema opt-out (não adotado em nosso sistema) prevê que o usuário deve manifestar de forma expressa o seu interesse em sair, isto porque, o pressuposto é de concordância automática. (Lima & Junior, 2016)
Quanto à possibilidade de compartilhamento de dados para fins comerciais, existem muitas variações.
A plataforma de pagamentos PayPal, por exemplo, deixa claro que poderá “compartilhar suas informações com terceiros para fins de negócios do PayPal”. A propósito, uma lista publicada pela PayPal34 enumera mais de 350 empresas com as quais a companhia pode compartilhar dados, incluindo também as finalidades do compartilhamento. No documento, a empresa deixa claro que poderá, entre outras coisas, compartilhar fotos do rosto do usuário com a Microsoft para prevenção de fraudes e para “fins de pesquisa e testes de adequação de novos produtos”.
4.4.2Monitoramento das atividades, comunicações e conteúdos privados do usuário
A grande maioria das políticas de uso possibilita o monitoramento das atividades dos usuários em sites de terceiros e também estabelece o monitoramento por terceiros como padrão. O grande número de plataformas que exigem que o usuário permita que suas atividades em outros sites sejam monitoradas indica que esta é uma prática comum. De acordo com Venturini et al. (2016), 66% das plataformas inserem cláusulas com este tipo de permissão. De maneira similar, 80% das plataformas permitem que terceiros monitorem atividades do usuário enquanto utilizam seus serviços. Em ambos os casos, as cláusulas são redigidas de maneira genérica e não deixam claro quem são as pessoas ou entidades capazes de monitorar as atividades do usuário. Por fim, poucos são os casos em que é permitido ao usuário a opção de não ser monitorado.
A plataforma de vídeos Vimeo, por exemplo, alerta aos usuários sobre a obtenção de dados do usuário dentro e fora da plataforma, pela própria empresa e por terceiros, para fins de propaganda direcionada. No entanto, não traz informações sobre quais terceiros podem coletar dados e quais informações podem ser obtidas, limitando-se a afirmar que “Alguns terceiros podem coletar dados sobre você quando você usa nossos serviços. Isto pode incluir dados que você envia (como informações de pagamento) ou informações coletadas automaticamente (no caso de terceiros provedores de análises e anunciantes)”35. Esta cláusula é especificamente preocupante por reconhecer que terceiros processam dados de titulares que podem não ter tido acesso aos respectivos Termos de Uso nem ter manifestado seu consentimento expresso, livre e informado, violando frontalmente o disposto no art. 7º, I, da Lei Geral de Proteção de Dados e o art. 7º, VII, do Marco Civil da Internet, que dispõem que o tratamento de dados depende do consentimento expresso, livre e informado de seu titular36.
Além do monitoramento das atividades, grande parte dos Termos de Uso de plataformas online abre a possibilidade de monitorar os conteúdos e mensagens privadas dos usuários. A título de exemplo, a política de privacidade do Google reconhece que a empresa coleta os conteúdos que o usuário cria, faz upload e recebe de outras pessoas, incluindo “e-mails enviados e recebidos, fotos e vídeos salvos, documentos e planilhas criados e comentários feitos em vídeos do YouTube”.
A política de privacidade do Facebook, por sua vez, afirma que pode coletar informações sobre localização, contatos, reconhecimento facial, dispositivos, ações e comunicações dos usuários “a fim de analisar o contexto e o conteúdo incluído nesses itens”, reconhecendo, ainda, que a rede social “processa automaticamente o conteúdo e as comunicações que você e outras pessoas fornecem”.
O escaneamento contínuo de e-mails e mensagens é particularmente preocupante, uma vez que a comunicação por mensagens pela Internet se equipara à troca de correspondências, cujo sigilo é protegido no art. 5º, XII, da Constituição Federal, que exige ordem judicial prévia para sua quebra. Pode-se afirmar, portanto, que este tipo de cláusula afronta o direito à inviolabilidade das comunicações, garantido no art. 5º, XII, da Constituição Federal, sendo tais provisões nulas de pleno direito de acordo com o art. 8º, parágrafo único, inciso I, do Marco Civil da Internet37.
Damásio de Jesus e José Antônio Milagre, em obra sobre o Marco Civil da Internet onde apontam nulidades recorrentes nos Termos de Uso, lecionam:
Ao dar, mais uma vez, ênfase à importância ao respeito ao direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações, o Marco Civil elenca em seu art. 8º que são nulas de pleno direito cláusulas que violem tais direitos, dispostas em contratos de prestadores de internet. Assim, no Brasil, com o Marco Civil, tornam-se nulas cláusulas contratuais que impliquem ofensa ao sigilo das comunicações privadas e as cláusulas que, em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil. (Jesus & Milagre, 2014)
E preciso observar, por outro lado, que algumas companhias têm adotado a chamada criptografia de ponta-a-ponta, que não permite que o conteúdo das mensagens e arquivos enviados seja analisado pela plataforma ou por terceiros. O exemplo mais conhecido no Brasil é o da plataforma de mensagens Whatsapp, que destaca em sua política de privacidade que as “mensagens estão criptografadas para que nós ou terceiros não as possam ler.” A adoção deste tipo de sistema de criptografia garante maior privacidade ao usuário, embora seja alvo de críticas. No Brasil, desde 2015, o Whatsapp já enfrentou pelo menos 4 suspensões de sua operação por não entregar a autoridades judiciais o conteúdo das conversas de usuários investigados. As suspensões do aplicativo por magistrados foram alvo de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 403), pendente de julgamento no STF.
4.4.3. Entrega de dados para autoridades
No que se refere à entrega de dados pessoais dos usuários para autoridades, as políticas de privacidade não proveem garantias suficientes aos usuários.
O relatório A/HRC/17/27, da ONU, recomenda que os Intermediários de Internet não implementem restrições ao direito à privacidade sem intervenção judicial prévia (Rue, 2013) e o Guia dos Direitos Humanos para usuários de Internet deixa claro que o usuário de Internet “não pode ser objeto de medidas de vigilância geral ou intercepção” e que os dados pessoais do usuário só serão acessados em “circunstâncias excepcionais previstas na lei, por exemplo, numa investigação criminal.”
Na Constituição brasileira, o art. 5º, inciso XII, não deixa dúvidas de que a ordem judicial prévia é imprescindível para a interceptação de mensagens e conteúdo privado. Neste mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça entende que é “ilícita a devassa de dados, bem como de conversas de whatsapp sem prévia autorização judicial” (STJ – 6ª Turma – RHC 51.531-RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 19/4/2016 (Info 583).
Como a maioria dos ordenamentos jurídicos nacionais faz menção à interceptação por ordem judicial, esta hipótese está quase sempre prevista nos Termos de Uso. No entanto, é comum que a redação das cláusulas vá adiante e permita a divulgação de dados por simples requisição de autoridade governamental ou policial. Algumas políticas de privacidade vão ainda mais longe e declaram que a empresa poderá divulgar dados pessoais do usuário sempre que isso for considerado do interesse da empresa. Neste sentido é a política de privacidade da Apple, que estabelece a possibilidade de divulgação de informações pessoais dos usuários por “solicitação de autoridades públicas”, “problemas de importância pública”, ou quando a empresa considerar a divulgação “razoavelmente necessária para impor termos e condições ou proteger operações ou usuários”38.
4.4.4.Limitação de responsabilidade
Talvez o maior ponto em comum dos Termos de Serviço de diferentes plataformas seja no tocante à limitação de responsabilidade da plataforma e a inexistência de garantias oferecidas pelos provedores de serviços online. Em linhas gerais, as cláusulas de limitação de responsabilidade buscam eximir o fornecedor de serviços online de toda e qualquer responsabilidade civil que possa decorrer do uso dos serviços oferecidos ou limitar eventuais indenizações a um valor pré-fixado. As cláusulas costumam ser escritas de forma destacada, com caracteres em caixa-alta ou em negrito.
O conteúdo é geralmente extenso e prevê a maior gama possível de situações em que o provedor de serviços online possa ser responsabilizado, sendo comum a utilização de vocábulos como “quaisquer” “todos” ou “nenhum”, de forma a abarcar todos os danos eventualmente sofridos pelos usuários e terceiros. A título de exemplo, a cláusula de limitação de responsabilidade do YouTube destaca que o usuário “concorda em defender, indenizar e isentar o YouTube, sua controladora, seus executivos, diretores, funcionários e representantes de toda e qualquer ação judicial, danos, obrigações, perdas, custos ou dívidas” e que
EM NENHUMA CIRCUNSTÂNCIA O YOUTUBE, SEUS EXECUTIVOS, DIRETORES, FUNCIONÁRIOS OU REPRESENTANTES SERÃO RESPONSABILIZADOS POR QUALQUER DANO DIRETO, INDIRETO, INCIDENTAL, ESPECIAL, PUNITIVO OU IMPREVISTO RESULTANTE DE QUAISQUER ERROS, EQUÍVOCOS OU IMPRECISÃO DE CONTEÚDO, DANOS PESSOAIS OU MATERIAIS , DE QUALQUER NATUREZA, RESULTANTE DO SEU ACESSO E DO USO DO NOSSO SERVIÇO, (…) QUAISQUER ERROS OU OMISSÕES EM QUALQUER CONTEÚDO OU QUALQUER PERDA OU DANO DE QUALQUER NATUREZA SOFRIDO EM CONSEQÜÊNCIA DO USO DE QUALQUER CONTEÚDO (…) 39
O Código de Defesa do Consumidor admite, no art. 51, I, a limitação da responsabilidade indenizatória em situações justificáveis quando o consumidor for pessoa jurídica. Logo, deve ser feita a diferenciação entre a limitação de responsabilidade justificável e a isenção de responsabilidade total, como no caso da cláusula transcrita acima. Desta forma, quando o provedor de serviços online traz uma previsão contratual de irresponsabilidade total, esta cláusula deverá ser considerada nula de pleno direito.
É também comum encontrar nos Termos de Uso cláusulas de limitação de responsabilidade que fixam um quantum indenizatório simbólico ou quase simbólico que acabam por fulminar a responsabilidade de indenizar. Os Termos de Uso da Microsoft, por exemplo, admitem o pagamento de indenização por danos diretos “até o valor equivalente ao valor pago por seus Serviços para o mês durante o qual ocorreu o prejuízo ou a violação (ou até USD$ 10,00 se os Serviços forem gratuitos).40” Para Flávio Tartuce (2016, p. 252), “além da cláusula de exclusão total da responsabilidade do fornecedor ou prestador, não tem validade a cláusula que atenua o dever de reparar dos fornecedores ou prestadores em detrimento do consumidor”.
Portanto, as cláusulas de isenção total de responsabilidade e as cláusulas de limitação do quantum indenizatório simbólico incluídas em Termos de Uso não encontram guarida em nosso ordenamento jurídico. Viola-se diretamente o direito assegurado à indenização previsto nos arts. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal41 e 927 do Código Civil42. Além disso, reconhecida a aplicação do CDC na relação jurídica entre provedores de serviço online e os usuários, é preciso reconhecer também a aplicação do princípio da reparação integral dos danos, inscrito no art. 6º, inc. II, do CDC e no art. 25, que veda expressamente “a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar”. Por fim, o Marco Civil da Internet consagra no seu art. 2º, inc. VI, que o uso da Internet no Brasil tem como um de seus fundamentos a “responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades”, prevendo hipóteses de responsabilização civil dos provedores de serviços online nos seus artigos 19 e 2143.
5.Conclusão
O objetivo deste trabalho foi documentar e analisar em que extensão os Termos de Uso de plataformas online, enquanto modalidade contratual específica, oferecem proteção aos direitos à privacidade, liberdade de expressão, devido processo e indenização de seus usuários.
Em primeiro lugar, restou demonstrado que as empresas de tecnologia são grandes detentoras de poder social e econômico. Em razão disto, são capazes de causar limitações significativas no que se refere ao exercício dos Direitos Fundamentais dos usuários de Internet. Por isto mesmo, de acordo com a teoria da eficácia horizontal dos Direitos Fundamentais (Drittwirkung), devem respeitar parâmetros mínimos de Direitos Fundamentais em suas relações com os usuários. Os Termos de Uso, enquanto materialização jurídica desta relação, deveriam conter cláusulas protetivas dos direitos dos usuários.
Também se conclui que os Termos de Uso, enquanto espécie contratual específica, são enquadrados como contratos de adesão e governam uma relação de consumo, conforme doutrina e jurisprudência nacionais, mesmo que não haja pagamento efetivo em dinheiro. Embora o consentimento do usuário-consumidor para vincular-se a estes contratos e utilizar os serviços oferecidos seja obtido através de um clique em um botão indicativo de sua anuência, demonstrou-se que, em regra, este consentimento não é informado. A obtenção de um consentimento esclarecido é dificultada pelas redações longas, com linguagem técnica e de difícil acesso pelos usuários, o que contraria disposições do Marco Civil da Internet, do Código de Defesa do Consumidor e da Lei Geral de Proteção de Dados.
Com relação à estrutura comumente adotada pelos Termos de Uso, viu-se que existe um padrão seguido pelas empresas na redação destas políticas. A despeito da legislação contrária, são muito comuns cláusulas de eleição de foro e escolha de legislação, permissões para monitorar conteúdos e mensagens privadas, disposições que limitam a liberdade de expressão e provisões que excluem a responsabilidade civil das empresas. A conclusão a que se chega, portanto, é de que os Termos de Uso não oferecem garantias suficientes para os usuários. De forma contrária, estes contratos revelam-se instrumentos jurídicos que visam minimizar a responsabilidade dos Intermediários de Internet, ao invés de reforçar sua responsabilidade em resguardar a privacidade, o acesso à justiça e a liberdade de expressão dos usuários. Esta função minimizadora de riscos atribuída aos Termos de Uso pelos Intermediários de Internet explica não só a falta de clareza nas redações dos contratos, como também a ausência de informações suficientes, contrariando critérios mínimos de efetivação de direitos fundamentais, especialmente à privacidade, liberdade de expressão, devido processo, informação e indenização.
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