Resumo
Este artigo tem por objetivo fomentar diálogos sobre as possibilidades de prevenção do suicídio que deem conta dos fenômenos que acontecem em meios digitais, por meio da apresentação e da discussão de alguns casos. Os dados são baseados em uma pesquisa de doutorado que buscou investigar o suicídio das pessoas LGBTQIA+ por meio de uma etnografia em ambientes digitais. Os casos mostram que o assunto ganha ainda mais complexidade com o advento do digital, e que é urgente discutir, seja a partir de políticas públicas, ou a partir de projetos de organizações específicas, as possibilidades de construir uma efetiva prevenção do suicídio nos ambientes digitais.
Introdução
Neste artigo, abordo alguns casos de suicídio que envolveram mensagens ou despedidas na Internet, em redes sociais e fóruns, para mostrar o quão diverso e complexo o tema do suicídio pode ser em relação à Internet e às plataformas digitais. É importante, inicialmente, atestar que o suicídio é um evento que independe do digital, per se, portanto, quando falo de suicídio na Internet, estou levando em conta polissemias e metáforas – bem como o termo “mídias digitais” pode ser uma metáfora para as implicações das relações humanas no digital1. São muitas as formas como o suicídio se mostra na Internet, contudo, para exemplificar os pontos levantados neste artigo, me atenho a alguns casos que fizeram parte de uma pesquisa de doutorado2.
A metáfora de que a Internet é um mar navegável3 foi uma fonte de inquietação durante os anos de pesquisa. Eu teria um campo quase infinito para ancorar meu barco, muitas vezes dependendo da sorte para “pescar” algo em mar tão revolto e diverso – e navegar. Se foi no campo metafórico que eu vi surgir e desenhei a pesquisa, nem tudo se reduziu a metáforas: também foi necessário compreender a Internet como coisa (com elementos reais e tangíveis, acessíveis e ao alcance), como produção humana, que funciona por conta de milhares de quilômetros de cabos e parafernálias orbitáveis, enquanto se materializa em pequenos dispositivos em nossas mãos: as telas são amigáveis mas na base estão linhas e mais linhas de códigos que criptografam, transmitem, recodificam e transformam todo tipo de informação por meio de zeros e uns, portanto binário, portanto digital. Ou seja, ao mesmo tempo que é metáfora, é material.
Este modo de compreender a Internet guiou toda a pesquisa de doutorado. É preciso entender que ninguém se suicida na Internet, mas ela é um meio em que as possibilidades comunicativas do suicídio, bem como a transgressão às barreiras da dicotomia público/privado, (Marquetti, 2014) se fazem evidentes: é relativamente fácil encontrar cartas de despedidas em postagens em todas as redes sociais, grupos de compartilhamento de perfis de pessoas que já morreram (e que identificam até mesmo o método utilizado), fóruns em que as pessoas tentam discutir o tema livremente, outros em que a motivação é escrever cartas de despedida fictícias; e se pesquisar mais a fundo, encontram-se vídeos de cenas de suicídio, inclusive de transmissões “ao vivo” em plataformas de conversas por câmera, informações sobre métodos, vendas de “kits suicídio” e a busca por parceiros para se matarem juntos (Nagafuchi, 2017; Nagafuchi e Adorno, 2016; Ozawa-de Silva, 2008, 2010). Assim como a média entre os dígitos 0 e 1, a Internet é também um meio, um caminho, uma possibilidade. Metáfora e material.
Do mesmo modo, é preciso expandir o entendimento do suicídio dentro de uma etnografia em ambientes digitais, em metáfora, porque o que vem em tela são diversas traduções sobrepostas com diferentes significantes; e objetivamente, porque se torna um meio de comunicação que têm consequências para quem lê e digita (ou concretiza mensagens por meio de imagens e significações ocultas – como um influenciador4 que postava uma sigla em suas redes sociais, que só ele sabia o significado, toda vez que tinha uma ideação suicida). Tal discussão facilmente resvala em possibilidades e limitações éticas – que não pretendo abordar neste artigo; ao invés, proponho uma conversa fundamentada em preceitos da antropologia digital, com descrições da pesquisa de doutorado, para, por fim, discutir um pouco sobre caminhos e possibilidades para a prevenção do suicídio na Internet e nas mídias digitais.
O objetivo do artigo, então, é apresentar uma perspectiva de como se deu uma pesquisa sobre suicídio na Internet, trazendo alguns casos e discussões, e fomentar diálogos sobre possibilidades de prevenção do suicídio que deem conta também dos fenômenos que acontecem em meios digitais. Como tratar de prevenção do suicídio quando as pessoas estão fortemente presentes nas plataformas digitais?
1. A Era Digital: vidas em zeros e uns
A Internet, como é concebida, no senso comum, parece uma entidade do mundo das ideias, “virtual”, em oposição ao que é real e palpável. Isso pode se dever ao fato de não vermos os sinais de wi-fi transmitidos, ou os mecanismos por trás de uma tela sensível ao toque. O que se esconde nas máquinas e nos aparelhos é uma sequência de números zero e um – todos os comandos, todas as informações, todas as funcionalidades; das fotografias publicadas nas redes sociais às receitas de bolo, tudo é uma constante codificação, recodificação e decodificação de sequências dos dígitos zero e um: é por isso que algumas tecnologias são chamadas de digitais. E, por mais que pareça simples, todas as operações envolvem linhas complexas de programação, inteligência artificial construída a partir de cálculos avançados e o desenvolvimento de tecnologias que permitem transmitir e acessar todas essas informações.
E, além disso, esta troca de sequências numéricas se tornou possível graças a uma miríade de equipamentos como cabos ultramarinos, satélites em órbita, torres de transmissão, supercomputadores e servidores gigantescos – como se fossem uma estrutura corpórea e física da Internet. Tal estrutura é gigantesca, posto que estamos cada vez mais conectados – segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), no ano de 2018, chegamos ao marco de mais da metade da população mundial5 com acesso à Internet, o que se traduz em, aproximadamente, 3,9 bilhões de pessoas. No Brasil, aproximadamente 50,7 milhões de pessoas têm acesso à Internet, e o uso é majoritariamente feito através de aparelhos de celular (smartphones6) – 58% do total e ainda maior para as classes D e E7, 85%, o que reflete as muitas formas de desigualdades sociais no país. (TIC Domicílios 2019, 2020).
De acordo com Miskolci (2017), as tecnologias digitais, como as conhecemos hoje, tiveram gênese no final da Segunda Guerra e seu uso se intensificou na disputa de poder entre Estados Unidades e a União Soviética, na corrida em direção ao domínio dos modos de comunicação em rede. Entram nesta equação de gênese, segundo o autor, a criação dos computadores pessoais pelo setor privado e por empreendedores nos anos 70, e o movimento de privatização da Internet, no meio da década de 1990, principalmente por conta da criação de sistemas de trocas de mensagens entre universidades norte americanas.
Um marco importante, identificado por Van Dijck (2013), foi a passagem do paradigma da web1.0 para a web2.0, mais focada no usuário por meio da participação e do compartilhamento – e, mais adiante, na criação de conteúdo. Outro signo essencial deste paradigma é a manipulação das conexões sociais pelos sistemas automatizados das redes sociais, com inteligências artificiais – cujos códigos e algoritmos são em parte desconhecidos, necessário dizer, e que decidem os conteúdos que serão visíveis aos seus usuários:
de modo a ser capaz de reconhecer o que as pessoas querem e gostam, o Facebook e outras plataformas monitoram desejos por meio da codificação dos relacionamentos entre as pessoas, coisas e ideias, em algoritmos. O significado de ‘social’, portanto, parece englobar tanto a conexão (humana) quanto a conectividade (automatizada). […]. A sociabilidade codificada pela tecnologia torna as atividades das pessoas em algo formal, gerenciável e manipulável, permitindo que as plataformas construam a sociabilidade nas rotinas cotidianas das pessoas (VAN DIJCK, 2013, p.12, tradução nossa).
Por trás de todo código escondido das redes sociais, esconde-se um objetivo de maximização dos lucros das empresas que são responsáveis por elas. Em um sistema em que qualquer pessoa ou empresa pode comprar espaço nas linhas dos tempos dos usuários, com marketing direto ou indireto por meio dos influenciadores digitais, a medição do sucesso é feita por um mecanismo de reação do usuário (curtidas e “amei”) que, como lembra Van Dijck (idem), são mais o resultado de uma computação derivada de um clique do que uma “virtude atribuída conscientemente por uma pessoa para algo ou uma ideia” (p.13). Além disso,
O que pode significar uma maior margem de lucro para alguns, pode não representar a realidade por trás da tela – que configura um exemplo dessa (con)fusão entre a conexão humana e a conectividade automatizada, uma vez que é impossível quantificar em que medida essas curtidas e esses seguidores vêm de grupos neutros apenas expostos aos algoritmos ou de devotos que realmente estão em busca do consumo de um estilo de vida (NAGAFUCHI, 2017, p.27).
Por trás de um clique, podem existir diversos motivos pessoais, desde uma forma de chamar a atenção de outra pessoa ao gosto mais genuíno da ideia ou da imagem. Desse modo, estariam nossas reações mais ligadas à relação das pessoas com as máquinas do que com outras pessoas? Para Turkle (2011), quanto mais conectadas, mais as pessoas experimentariam uma ausência de atenção, o que resulta em pessoas mais apáticas e menos engajas com o outro.
E, mais do que um vazio nas relações, na Internet, para James (2014), há um “ponto cego” em que a moral (capacidade de empatia) e a ética (as consequências das ações) ficam suspensas, como no caso de Tyler Clementi, contado pela pesquisadora, que se matou depois que seu colega de quarto divulgou um vídeo, gravado sem seu conhecimento, em que ele aparecia fazendo sexo com outro homem. No final de 20138, duas adolescentes brasileiras se mataram após serem vítimas de “pornografia de vingança”9, depois que duas pessoas próximas compartilharam fotos e vídeos em que elas apareciam em situações sexuais – os dois casos foram independentes e sem conexão, e geraram muita discussão na época.
A Internet e o digital são ambivalentes e um espelho das relações humanas. Existe uma camada fina que separa as potencialidades e os prejuízos individuais e sociais; e, ao mesmo tempo que o suicídio não acontece na Internet, a Internet não é a causa de eventos suicidas. De modo geral, isso não exclui a responsabilidade de plataformas e empresas que acumulam dados e desenham algoritmos; evidentemente, devemos discutir as consequências reais a que estamos submetidos quando aceitamos os termos de uso10 dos sites e redes sociais. O que enfatizo aqui é que o foco das discussões deve estar no fator humano (criação e usuário) destas plataformas, para não incorrer no risco de um essencialismo infrutífero (como se a Internet ou digital fossem responsáveis pelas misérias humanas).
2.Caminhos e experimentações metodológicos
Pesquisar suicídio na Internet é um tanto desafiador e exige um grande esforço metodológico. Em resumo, há muitas informações e muitos caminhos e desenhos de análise são possíveis, há uma quantidade inumerável de dados e informações. Por isso, as metodologias são essenciais para coletar e organizar os dados, por exemplo. É necessário, antes de tudo, compreender o que é o campo de pesquisa, principalmente em investigações que se fundamentam inteira ou parcialmente na Internet. Mas, antes, como organizar tantas informações? No meu caso, me dividi entre o digital e o analógico11. Fazer pesquisa na Internet é correr o risco de estar on-line o tempo todo, uma vez que qualquer tipo de aparelho com wi-fi pode se transformar em “campo”. Conto um pouco do meu percurso metodológico porque considero essencial construir estratégias próprias para dar conta da quantidade de informações e de uma certa ansiedade de pesquisador (um pensamento constante era “se eu deixar para salvar isso amanhã cedo, vou perder a informação?”). E o excesso é quase inevitável, uma vez que estamos diante de um campo gigantesco.
A minha escolha foi pela antropologia digital e por uma etnografia em ambientes digitais, que tentam dar conta da produção de conhecimento sobre as questões derivadas de sociedades cada vez mais conectadas (em toda sua polissemia) às tecnologias digitais. Para boyd (2015), dentro destas tecnologias e plataformas, estão as mídias sociais, pautadas em dinâmicas sociotécnicas que “se abrem enquanto milhões de pessoas abraçam a variedade de tecnologias disponíveis em um tempo particular e as usam para colaborar, compartilhar e socializar” (idem, p. 221-2).
Neste campo de estudos, surge a antropologia digital, que parte da premissa de que o digital “pode e deve ser uma maneira efetiva de refletir sobre o que significa ser humano” (Horst & Miller, 2012, p.2). Isso porque o digital é um espelho das relações humanas, cheio de contradições e também dialético – que ao mesmo tempo potencializa práticas antidemocráticas e faz florescer movimentos pautados em princípios de direitos humanos, separados por um clique de distância. É global e local ao mesmo tempo, uma curtida em qualquer rede social, é um simplificado mecanismo acionado por botões, na mesma medida em que ganha significados locais, a depender de grupos sociais – uma foto curtida no Instagram pode ser o início de uma paquera, ou apenas uma demonstração de afeto mecanizada. Os mundos digitais são ambíguos e materiais. A Internet só é possível por conta de produtos físicos, que vão dos aparelhos pessoais, como computadores e celulares, a cabos ultramarinos gigantes e satélites em órbita. Em suma, o digital é, hoje, parte inerente da cultura humana, ao passo que “as transformações digitais representam uma mudança tanto em nossa capacidade cognitiva quanto em nossa essência humana” (Idem, 2012, p.29).
Em particular, Miller (2011), em uma etnografia sobre relacionamentos digitais, compreende o Facebook como um meta-amigo, que pode ser o motivo pelo qual dialogamos com as ferramentas como se a própria rede social fosse um ente ativamente participante das nossas vidas, de modo a nos autorizarmos a dividir intimidades e transformar o cotidiano em conteúdo; neste “meio”, o Outro é uma figura abstrata consubstanciada em perfis, grupos, curtidas, reações, memes, emoticons, selfies e trocas de mensagens, síncronas ou não. A rede de amizades construída no Facebook é um trabalho que leva tempo e dedicação e, ainda, está submetida a um algoritmo focado na interação e até mesmo na venda de produtos – e, por vezes, na venda de candidatos de eleições –, e que ainda molda relações sociais fora da Internet.
Alia-se a isso a facilidade de conexão dada pelo uso de smartphones e da popularização dos planos de dados. Assim, além das relações criadas com as redes sociais, também podemos pensar nas relações dadas com os aparelhos, como extensão do próprio corpo (Lins, 2020). Ubíquo, o celular permite o registro em tempo real de situações corriqueiras e cotidianas. Não seria diferente com relação ao suicídio e com a quebra da dicotomia público/privado12. Uma mensagem de despedida, ou até mesmo a transmissão de uma tentativa de suicídio, própria ou de outro, fica ao alcance das mãos.
Chamo, aqui, de caminhos metodológicos porque considero uma etnografia em ambientes digitais ultrapassa os limites do que chamamos de “método qualitativo/quantitativo”, isso porque ela não é somente o meio ou a lente que se usa para se analisar dados e informações. Não é também somente um método analítico, porque o conhecimento é construído a partir da relação do pesquisador com os interlocutores, mas também a partir de um complexo fluxograma que liga o pesquisador, os interlocutores e o digital – nem sempre em linhas (setas) retas. Há uma dimensão de afetação, de doação, de feitiço – em referência à Favret-Saada (2005[1990]). É preciso abrir a própria intimidade, negociar fronteiras móveis entre confiança, segredos e intimidades (Pelúcio, 2016). É desafiador, seja porque o digital tem mudanças constantes, ou porque se torna necessário aprender, construir subjetividades, configurar olhares plurais e ambíguos (Nagafuchi, 2017). O digital não é uma entidade externa que determina os movimentos da sociedade, pois as tecnologias são incorporações (como extensões do corpo) de relações sociais que abrem possibilidades de ação e expressão culturais (Ito et. al., 2013). Assim, pesquisar o suicídio a partir desta abordagem não seria apenas compreender
Como o digital poderia influenciar na suicidabilidade das pessoas […] mas, sim, usar como categorias de análise as relações intersubjetivas e objetivas entre o digital e as tentativas de suicídio (ou construção de ideações ou acesso à métodos, por exemplo) dos interlocutores. Muitas pessoas usam as mídias digitais das formas mais corriqueiras no seu dia a dia, buscam receitas, fotos específicas, atualizam as redes sociais, trocam e-mails e emoticons[hoje em dia eu diria memes], mandam piadas em grupos de aplicativos de mensagens, ouvem música, assistem filmes e vídeos diversos […]; e, também: postam mensagens de despedida no Facebook, compram “kits suicídio” […] na deep web, […] criam fóruns para compartilhar cartas de despedida hipotéticas, e tantas outras coisas mais. (Nagafuchi, 2017, p.30-1).
O foco da pesquisa era o termo “suicídio”, por isso, tudo o que tinha a ver com o tema poderia ser considerado fonte de informações. A pesquisa se baseou em redes sociais (prioritariamente o Facebook, mas também encontrei informações no Twitter, no Instagram, no Reddit e no Tumblr), em aplicativos diversos de trocas de mensagens, fóruns variados, notícias, um formulário respondido por pouco mais de 1.100 pessoas e entrevistas em profundidade13.
3.A pesquisa nas redes: buscando e encontrando informações
A ferramenta Google Trends permite pesquisar a tendência de busca de termos específicos e possui muitas ferramentas interativas. Por exemplo, sobre o termo “suicídio”, os “picos” mais comuns estão relacionados à casos de pessoas famosas que tiraram a própria vida, como o caso do ator brasileiro Flavio Migliaccio14. Mas, se tentarmos especializar a pesquisa, com a busca de termos, por exemplo, podemos encontrar algumas tendências: ao buscar “como cometer suicídio”, os termos relacionados são, em ordem de importância, “veneno”, “sentimento”, “eutanásia”, “pessoa” e “filosofia”, e no mapa do Brasil da própria ferramenta, o estado onde mais se pesquisou o termo no Google é o Rio Grande do Sul, que tem uma das maiores taxas de suicídio no país, e onde muitos dos casos se dão nas áreas rurais com plantação de fumo. Um dos termos associados à busca de “como se matar”, é “vingança”.
Se buscarmos o termo suicídio no Google, temos um retorno de aproximadamente 9 milhões e meio resultados, o primeiro deles é uma caixa com o contato para o Centro de Valorização da Vida (CVV), uma das principais organizações promotoras de prevenção do suicídio no país, com o título “Encontre ajuda”, onde se divulgam o número de telefone e os horários de funcionamento. Por vezes, a busca vem associada com outros termos, como “nó” ou “veneno”, mas informações precisas sobre métodos e ferramentas não são tão facilmente encontradas, em parte por conta de esforço de plataformas digitais para derrubar postagens que possam conter tais informações.
Durante a pesquisa de doutorado, observei alguns fóruns na deep web15 mas eles não tinham muitas informações precisas ou mesmo interação entre os usuários. No entanto, se dava especial atenção ao compartilhamento de um manual construído pela “Igreja da Eutanásia”16, com diversas informações sobre aquele que seria considerado o melhor método de suicídio para quem o criou; e em acordo com uma axiologia muito particular17. Este fórum, especificamente, era um braço de outro localizado na rede Reddit, mas que nos últimos anos migrou para uma página própria, provavelmente por conta da sua natureza. Conto parte de sua história a seguir.
No início dos anos 1990, um pequeno grupo criou um fórum on-line chamado Alt-Holiday Suicide (em inglês, a partir do questionamento sobre o motivo de haver muitos suicídios em datas comemorativas e feriados, como o Natal e o ano novo. O “alt” porque seria um lugar alternativo para discutir o suicídio. Daqui em diante, me referirei ao fórum pela sigla ASH). Logo, o grupo cresceu e se tornou um dos maiores fóruns on-line sobre suicídio. O fórum se manteve ativo por muitos anos, porém, agora só é possível acessar seu arquivo por meio de login e senha18. À época, não me detive ao fórum porque é uma quantidade gigantesca de informações que merece uma pesquisa própria. Porém, para entender melhor como o suicídio surge na Internet, foi necessário estudar a sua história e algumas iniciativas que tiveram origem no ASH.
A Igreja da Eutanásia não foi uma igreja, no sentido estrito, sequer um tipo de culto. Sua existência se resumia a um pequeno grupo de pessoas com ideologias muito próprias sobre o mundo e que fazia pequenos atos de protestos, mas com grande atividade na Internet. Sua líder, uma mulher trans chamada Chris Korda, fazia parte do ASH e tirou algumas ideias do seu grupo do antigo fórum on-line. O principal lema do grupo era “Salve o planeta, se mate”19, na medida em que, acreditavam, um suicídio coletivo de grande escala seria a única forma de salvar o planeta de um desastre ambiental – uma vez que o ser humano seria o principal motor de um fim catastrófico. Os pilares morais do grupo se baseavam em suicídio, aborto, canibalismo e sodomia20.
A igreja da eutanásia21 foi responsável por formular, com base em muitas informações trocadas nos fóruns do ASH, um documento que continha, segundo seus autores, o que seria a melhor forma de suicídio, com base em uma complexa análise das axiologias que envolviam os métodos mais conhecidos. Inicialmente, o documento era facilmente encontrado no site da “igreja”, porém, após uma pessoa que se matou ter sido encontrada com este documento impresso, ao seu lado, ele foi retirado da página. Além de itens necessários e onde comprá-los, é possível encontrar fórmulas para calcular quantidades (não entrarei em detalhes sobre o método) e o tempo que levará para que a morte aconteça.
Apesar de ser um lugar digital em que qualquer pessoa com acesso à Internet consegue chegar, a partir do TOR, os fóruns na Internet não indexada assumem um espectro de não-lugar22. São públicos, mas demandam alguns conhecimentos e informações específicos e certas habilidades. Assim, o acesso é ínfimo, quando comparado à Internet da “superfície”. De todo modo, por ser acessível, há uma necessidade de entender o que se encontra por lá, em se tratando do suicídio.
Na “superfície”, acompanhei alguns fóruns hospedados no Reddit, inclusive um que foi fundado por antigos membros do ASH, que aqui vou chamar de S. S possuía aproximadamente 7 mil membros23, seu principal objetivo era promover discussões “casuais” sobre a perspectiva cognitiva de pessoas que consideravam o suicídio como possibilidade; ou seja, em suma, a ideia era criar um ambiente para diversas discussões sobre o tema sem o que eles considerariam uma moral salvacionista. Para os membros, o fórum não era pró-suicídio, e sim pró-escolha, no sentido de que a escolha pertencia à esfera íntima e pessoal de cada um, sendo proibidas intervenções de qualquer forma que pudessem “prejudicar” a escolha. Para isso, o fórum contava com diversos mediadores que podiam apagar comentários ou postagens completas. Além desta proibição, também não se podia discutir métodos, divulgar informações pessoas, imagens e vídeos de atos suicidas e, por fim, qualquer tipo de dado que pudesse permitir a identificação, como fotos, telefones, endereços de e-mail, redes sociais etc.; propaganda de qualquer tipo também entrava no rol das proibições.
O fórum tinha uma atividade intensa e bastante complexa. Era comum encontrar pessoas divulgando alguns detalhes de suas vidas que as faziam pensar em suicídio, e os motivos eram os mais variados possíveis. Muitas informações técnicas eram desconsideras de acordo com as crenças pessoas – por exemplo, uma pessoa se dedicou, em várias mensagens e respostas, a “desmentir” a física de corpos em queda, criando uma teoria própria sobre a morte por precipitação, uma vez que seria seu método de escolha. Estas discussões tomavam proporções gigantescas.
Elizabeth 24, mulher que estava na faixa dos 40 anos, casada há mais de 10, descobriu que possui uma doença incurável e chegou a pensar em buscar o suicídio assistido25. Porém, ela não queria mais esperar tanto tempo e elencou dois motivos que a levaram a tomar a decisão de cometer suicídio em breve: a doença incurável que, além do sofrimento causado, a debilitou e transformou seu corpo; e o desinteresse do marido, que a traía com outra mulher. Ela estava ressentida. Quando descobriu a doença, sugeriu que eles se separassem porque ele não mereceria passar por todo o sofrimento junto dela, mas ele declinou e disse que estaria a seu lado não importa o que acontecesse. Ela queria se vingar.
O plano já estava traçado: aos amigos, ela escreveu um e-mail de agradecimento e suporte, e ao esposo e sua família, outro e-mail contando sobre o caso extraconjugal dele e que o ato fora motivado por um sentimento de vingança. O e-mail era programado. Caso sua tentativa desse errado, bastaria cancelar o envio. Elizabeth postou sua história no fórum S porque tinha dúvida se as 8 pílulas que ela tinha, de um medicamento específico, e que conseguiu de forma ilegal, seriam suficientes para morrer. Ela tinha uma pequena dose de outro medicamento, por isso perguntou aos outros membros se seria prudente misturar tudo. A recomendação dos usuários que responderam foi que o melhor era não misturar e tomar somente as 8 pílulas. Ela contra-argumentou que talvez não fossem suficientes porque ela teria engordado muito por conta da doença. Outros membros tentaram demovê-la de sua intenção suicida, que o melhor seria esperar e tentar suicídio assistido. Outros desejaram um fim tranquilo, como um dos usuários disse: bon voyage.
Esta é uma das diversas postagens do fórum S. São diversas histórias pessoais neste e em outros fóruns, há ainda diversas informações disponíveis, como os nomes dos medicamentos e debates sobre as quantidades consideradas letais de acordo com o peso corporal. É comum que usuários discutam sobre determinados medicamentos, e como consegui-los, na totalidade dos casos de forma ilegal. Existe uma espécie de moral que circunda as discussões, principalmente no que diz respeito ao sofrimento que determinados métodos podem causar, por isso a maior parte das discussões gira em torno da farmacologia de determinadas drogas. Apesar de as informações serem difusas, e por vezes incorretas, estes blocos de discussão podem funcionar como uma enciclopédia para quem pesquisa métodos e formas de se matar.
Estes exemplos mostram como o suicídio é um fenômeno complexo e multifatorial, decididamente cultural e comunicacional, que demanda camadas de análise multidisciplinares, ainda mais se tratando dos caminhos trilhados em sites e redes sociais. Por isso, é imprescindível que o conceito do suicídio não esteja engessado em definições de senso comum ou puramente medicalizantes. Defendo, mais adiante, como o aporte das ciências sociais permite que o suicídio seja compreendido como atributo humano, portanto histórico e contextual, e que isso deve ser levado em consideração no desenho e na criação de formas de prevenção, na atualidade.
4.A rede social Facebook e as repercussões de um caso de suicídio
Em fevereiro de 2016, um caso de suicídio foi bastante divulgado no Facebook. Tratava-se de uma jovem mulher trans, aqui chamada de Alexa26, de pouco mais de 20 anos, que publicou sua mensagem de despedida e compartilhou sua mensagem em postagem aberta. Na mensagem, ela dizia:
Às vezes, encarar nossas mentiras é mais pesado que encarar a realidade, eu não consigo mais encarar essa realidade fantástica que eu criei. Covardia ou coragem? Demorei tempo para acumular a coragem, mas ela veio quando não conseguia mais suportar o dia a dia (queria continuar, mas já não consigo respirar direito). Como desistir de quem você é? Isso não significa a própria morte? E quantas vezes nós morremos esse mês? Se eu tivesse mais vidas, daria todas elas por vocês. Queria só ter metade da força de vocês, queria só ser metade do que vocês são. A vida tem seu sarcasmo; ela é bonita, e isso é o mais cruel, não, nada nunca é o fim. Hasta siempre! Amo vocês.
Em um comentário, logo após a postagem ela deixou registrado: “última coisa, não foram as drogas, foi a transfobia. Dika”. O caso gerou grande comoção, e uma vez que a mensagem estava pública, na rede social, ela foi bastante repostada por diversas pessoas, indignadas e emocionadas com o caso de suicídio que tinha acabado de ocorrer. Uma ativista da causa trans, que chamo de Anna, comentou sobre a amizade que tinha com Alexa e demonstrou consternação. Em uma última consulta, a mensagem tinha tido 700 curtidas (ainda não havia as emoções na rede social) e foi compartilhada por mais de 60 pessoas e perfis. Muitas pessoas deixaram mensagens direcionadas à Alexa, como “Você nos ensinou muitas coisas lindas, te amamos para sempre!”, que teve 41 curtidas, e tantas outras. No dia seguinte, outra ativista trans, aqui chamada de Julieta, postou a seguinte mensagem:
Não foi apenas uma vez que tentei me matar, foram muitas. A primeira delas eu tinha apenas 16 anos, fui socorrida pela minha mãe, que chegava do trabalho. Naquele tempo, eu não sabia que podia ser trans, eu era apenas um menino gay que não me encontrava em lugar nenhum. A solidão, a rejeição, a negação, me levaram à tentativa de suicídio. A última vez foi no ano passado [em 2015], fui socorrida, na rua, às 3 da manhã por um amigo. O psiquiatra já quis me internar. (…). O suicídio pode ser evitado. É preciso conscientizar a todos sobre o risco do suicídio que pessoas trans e LGBTs enfrentam. Às vezes, parece ser melhor não estar no mundo. Hoje, Alexa se foi, se fizermos nada, muitas mais de nós continuaremos a ir embora.
O texto de Julieta tinha aproximadamente 300 curtidas e, além dela, deixou uma hashtag com o nome #MinhaPrimeiraTentativa, sugerindo que as pessoas LGBTQIA+ contassem sobre as suas primeiras tentativas de suicídio e marcassem com a hashtag. Uma hashtag, no fundo, é um agregador de informações, onde um usuário pode identificar suas postagens e procurar postagens parecidas. O texto e a sugestão geraram movimento no Facebook, na época, muitas pessoas contaram suas experiências e muitas mensagens ficaram públicas e eram facilmente encontradas pela ferramenta de busca. Com grande alcance da postagem, no dia seguinte, Julieta decidiu apagá-lo após receber algumas mensagens que reclamavam que as histórias geravam forte gatilho emocional e, com o passar dos dias, foi cada vez mais raro encontrar posts com a hashtag #MinhaPrimeiraTentativa usadas com este objetivo27. Sobre isso escrevi:
Com relação à comunidade e às transformações que a rede social [Facebook] nos traz, podemos observar o seguinte: ao mesmo tempo em que a hashtag #MinhaPrimeiraTentativa tinha um viés político – no que tange a importância de se discutir a questão do suicídio da população LGBTQIA+, ela teve reações positivas (as pessoas que postaram [sob a hashtag] e negativas (as pessoas que ficaram incomodadas e pediram para ela ser extinta). Isso também vai ao encontro das normalidades e normatividades; a rede social enquanto comunidade funciona como um filtro do que pode ou não ser postado – e isso sem falar das normas de utilização do próprio site […]. (NAGAFUCHI, 2017, p.64).
Esta é uma das formas como o suicídio se faz presente no Facebook, são diversas mensagens de despedida deixadas na rede social, muita delas públicas, e muitas são compartilhadas, inclusive em grupos específicos, como o “Profiles de gente morta”, que é um grupo fechado e tem mais de 161 mil membros28. Os participantes, no grupo, compartilham perfis do Facebook de pessoas que já faleceram, como regra, pede-se que na descrição se aponte a causa e algumas informações extras; nos casos de suicídio, muitas vezes isso envolve colocar as mensagens de despedida (às vezes não são públicas, mas os usuários colocam “prints” de tela) e, até mesmo, método utilizado. Alguns casos geram muita comoção, e é muito comum, em casos de suicídio, outros membros do grupo responderem que também têm intenção de se matar.
Em um evento acadêmico sobre suicídio, conheci uma mulher que me contou que, na falta de ações efetivas das plataformas para tentar minimizar as exposições de ideação suicida nos grupos, ela mesma fazia uma espécie de prevenção, enviando mensagens na ferramenta de “chat” para as pessoas que tivessem comentário com ideação, indicando o número de telefone do CVV, e se dizendo disponível para conversar. Ela disse que, quando podia, dedicava uma ou mais horas do dia neste trabalho, inclusive no grupo mencionado anteriormente. Ela também disse que conhecia outras pessoas que faziam o mesmo. Este trabalho individual e pouco conhecido é talvez uma das únicas ações de prevenção que ocorrem dentro de grupos fechados das redes sociais.
As plataformas têm políticas um tanto obscuras. O próprio Facebook tem uma central de ajuda com informações sobre o que fazer nestes casos, mas exige um certo esforço para acessar. No Twitter, é até mesmo difícil denunciar algumas postagens, por falta de categoria dentro da ferramenta própria para isso29. As plataformas, em sua maioria, dizem que postagens e mensagens são analisadas após um pedido de denúncia, embora não deixem claro quem ou quê faz este trabalho (algumas análises são automatizadas por inteligências artificiais, outras realizadas de forma precária por empresas terceirizadas localizadas em países como a Índia ou Filipinas, por pessoas expostas continuamente à imagens de violência e de abuso, tema de alguns documentários).
5.Internet e suicídio: o desafio da prevenção
A prevenção do suicídio, per se, já é um grande desafio. Quando ainda falamos de marcadores sociais da diferença, podemos dizer que programas ou políticas públicas por parte dos governos municipais, estaduais e federais são inexistentes. Há raros projetos de leis estaduais, mas eles pouco avançam nas casas legislativas. Embora as populações indígenas, as pessoas negras e as LGBTQIA+ já tenham estado no radar do Governo Federal e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) no passado recente30, o trabalho foi suspenso em 2018. No momento, a pauta do suicídio e da automutilação faz parte das ações do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos31. Porém, não há um plano concreto, nacional, que vise à prevenção do suicídio de forma evidente e objetiva32. Por enquanto, este trabalho está delegado ao CVV e outras organizações não governamentais.
Dito isso, quero expor o que entendo por prevenção e como alguns planos podem ser desenhados com auxílio e responsabilização das plataformas digitais. Uma prevenção do suicídio não é somente o ato de evitar que alguém se mate. Há diversos estudos e protocolos que podem ser seguidos em momentos de crise ou em situações em que o tempo não joga contra. Do mesmo modo, a prevenção não deve ser centralizada ou localizada, ela deve orientar protocolos específicos de manejo em saúde mental, bem como se apoiar em uma Rede de Atenção Psicossocial fortalecida e bem estabelecida; mas também deve ser global e de longa duração. Dentro do rol de políticas públicas para prevenção do suicídio de pessoas LGBTQIA+ também devem ser consideradas, por exemplo, políticas de proteção a esta população, de acesso à saúde, de empregabilidade, pautados na inclusão e na diversidade etc. O mesmo deve ser levado em consideração em respeito aos outros grupos identificados dentro dos marcadores sociais da diferença, já que as taxas de suicídio e de tentativa tendem a ser maiores para eles.
O Brasil tem como guias a Agenda de Ações Estratégicas para a Vigilância e Prevenção do Suicídio e Promoção da Saúde e a Lei 13.819/2019, denominada Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, de 2019. Um dos objetivos das ações estratégicas, por exemplo, era diminuir as taxas de suicídio em 10% até 2020, contudo ocorreu o contrário. E, embora a lei apresente alguns avanços, ainda possui pontos problemáticos33 (Kovács, 2019). A única menção à Internet no projeto de lei é o artigo quinto: “o poder público poderá celebrar parcerias com empresas provedoras de conteúdo digital, mecanismos de pesquisa de Internet, gerenciadores de mídias sociais, entre outros, para a divulgação dos serviços de atendimento a pessoas em sofrimento psíquico” (Brasil, 2019).
Ainda há um longo caminho quando se pensa em políticas públicas de prevenção do suicídio. Contudo, há iniciativas interessantes organizados pela sociedade civil, como as cartilhas organizadas pelo Instituto Vita Alere em parceria com o Google, a Ong Safernet e a Unicef34. Além disso, algumas plataformas utilizam Inteligência Artificial para tentar prevenir suicídio; o Facebook, por exemplo, utiliza uma ferramenta de machine learning35 para identificar postagens que denotem situações de risco – no entanto, não está evidente se a ferramenta funciona em outras línguas que não o inglês, ou se identifica somente postagens públicas. Em alguns grupos que acompanho desde o doutorado, é muito comum encontrar comentários com ideações explícitas, que geram uma reação em cadeia incontrolável, com outras pessoas também publicando suas intenções suicidas, reações negativas – como ataques pessoais –, mensagens de apoio, conversas paralelas e situações de paquera, tudo ao mesmo tempo na tela36.
Por isso, é imprescindível que a sociedade civil esteja em constante diálogo com os responsáveis pelas plataformas digitais para pensar estratégias de prevenção no digital. Inclusive, as plataformas, por serem corresponsáveis pelos conteúdos, devem ser mais transparentes em relação às medidas e aos protocolos adotados na prevenção do suicídio, ou mesmo no que diz respeito á exposição à violência de toda sorte. É necessário que mais pesquisas sejam feitas e publicadas sobre o tema, principalmente porque é preciso pluralizar o diálogo, e.g., seria interessante entender o que áreas como o Direito (inclusive agora que existe uma Lei Geral de Proteção de Dados) tem a dizer, bem como a Educação, a Comunicação, as Ciências Sociais, porque uma vez que o suicídio é um fenômeno multifatorial e multideterminado, nada mais justo que os conhecimentos construídos sejam multidisciplinares.
6.Considerações para um remate
De modo resumido, em minhas pesquisas, fundamentadas em uma antropologia crítica da saúde, entendo que o suicídio, enquanto evento marcado no espaço e no tempo, é um dos resultados possíveis dos sofrimentos sociais e das violências (Nagafuchi, 2019), dentro de uma interpretação das biopolíticas contemporâneas das subjetividades e formas de vida (Biehl, 2008; Biehl & Locke, 2017; Das, 2007; Fassin, 2016, 2018; Kleinman, Das e Lock, 1997) ou na ontologia do sujeito que é determinado pelas forças que decidem quais vidas podem continuar e quais vidas devem ser extintas (Agamben, 2012; Butler, 2015). Este resultado é como uma transformação social, um devir-morte (um devir extremo) ou devir-nulo, implicado pela ausência completa de horizonte, sempre como último devir possível, ação derradeira do sujeito. É nesse sentido que o suicídio comunica algo, contrastando com a morte invisível como paradigma nas sociedades ocidentais contemporâneas (mais ainda com o advento do digital) com a transgressão das regras da dicotomia público/privado (Marquetti, 2014). Por fim, o suicídio é um desafio porque contradiz com o entendimento comum da natureza humana (biologia) e da sua cultura (biografia), uma vez que é a negação das duas coisas ao mesmo tempo. Além disso, o ato é destrutivo por ser uma interrupção abrupta, mas também constitutivo, porque exige que elaboremos uma compreensão de mundo e da experiência humana (Staples & Widger, 2012).
As subjetividades marcam as experiências das pessoas no cotidiano. São nas modulações do cotidiano que as pessoas vão encontrando formas de escape para continuarem vivas em contextos dos sofrimentos diversos, como miséria, guerra, doenças, violência, e assim por diante. Para Biehl e Locke (2018), estes movimentos são chamados de plasticidade, como um modo de garantir uma fluidez para as formas de vida nos contextos sociais em que os sujeitos se encontram; e, além disso, a plasticidade se dá por meio de transformações sociais porque os sujeitos são/estão sempre na qualidade de incompletos, assim, sempre é uma ação em direção aos devires. (Nagafuchi, 2019).
É dentro deste contexto teórico que compreendo o suicídio na Internet como um conjunto de tipologias e arquétipos discursivos, fluidos e não fechados em categorias distintas, em constante diálogo uma com as outras, marcados pelo espaço e pelo tempo37. Ou seja, características atribuídas que são ambivalentes. Por isso, no florescer do século XXI, com o surgimento da Internet, o suicídio ganhou ainda novas roupagens e possibilidades de interpretação, o que cria, de certa feita, dificuldades para se pensar a prevenção do suicídio na atualidade.
A partir deste paradigma, é preciso questionar alguns efeitos do suicídio, como a necessidade de reduzi-lo a um caráter biomédico do salvacionismo e das politicas públicas, além dos protocolos de atendimento para pessoas que tentaram tirar a própria vida, com o risco de criação e manutenção de aparatos psiquiátricos medicalizantes, inscritos nas letras dos eventos suicidas e dos traumas como únicas possibilidades de explicação do suicídio, porque isso bloqueia discussões e implica em uma marginalização de abordagens centradas em fundamentações teóricas diversas. Acredito, portanto, que o debate sobre o suicídio não deve ser feito somente a partir das experiências pessoais; deve passar por uma crítica ao modus operandi da racionalização da construção do pensamento científico e da produção de conhecimento, como uma abertura às epistemologias multidisciplinares (Nagafuchi, 2020), ainda mais se tratando da cada vez mais massiva presença das pessoas nas plataformas digitais.
Uma das conclusões que cheguei na pesquisa de doutorado foi que as pessoas têm necessidade de comunicar seus anseios, sofrimentos e as suas tentativas de suicídio sem incorrer no risco de serem julgadas de forma precipitada, uma vez que o suicídio é cercado de sensos comuns que só fazem aumentar o sofrimento. Pensando nas plataformas como uma espécie de meta-amigo, ao alcance das mãos, as pessoas podem ter mais liberdade para narrarem suas histórias de vida. O que isso diz sobre o silêncio e a solidão? É como se a Internet fosse um meio de amplificar vozes, muitas vezes o único meio, e tantas vezes como um vácuo de ecos – um não-lugar que carregamos conosco.
É por isso que a prevenção do suicídio, em sentido amplo, não pode ser resumida em protocolos de atendimento nem em ações individuais nas redes sociais. É preciso que as plataformas compreendam seus papéis e responsabilidades e abram um diálogo multidisciplinar com especialistas no tema. Dentre os desafios impostos às plataformas, estão, por exemplo: divulgação de informações que ensinam métodos de suicídio; proteção dos dados e das informações das pessoas que têm os perfis divulgados após a morte; produção massiva de conteúdos sem qualquer tipo de mediação; conscientização dos usuários, oferecendo informações de forma facilmente acessível sobre ajuda em momentos de crise; construção de um diálogo com os poderes públicos para a implementação de políticas públicas de prevenção e de posvenção; entre tantos outros.
Os desafios são grandes e diversos e este é só o começo de um desenho para começar a respondê-los, uma vez que a discussão deve envolver especialistas de diversas áreas e deve ter uma ativa participação da sociedade civil (aqui entendida como o conjunto de associações, organizações, pesquisadores, usuários, analistas das plataformas, designers, educadores, políticos e tantos mais). É necessário planejar o começo do trabalho, articular informações e trabalhar em modos efetivos de prevenção do suicídio que levem em conta a realidade e a materialidade humana do digital. Ou seja, compreender as metáforas e planejar ações concretas.
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