Resumo
O compartilhamento de moradia por meio do Airbnb é objeto de diferentes tensões jurídicas, nas mais variadas áreas do direito. Este artigo pretende avançar na discussão sobre as ações judiciais movidas por proprietários contra condomínios que proíbem a locação de unidades residenciais por meio da plataforma. Uma pesquisa empírica de caráter exploratório no Tribunal de Justiça de São Paulo serve como ponto de apoio para discutir os argumentos jurídicos mobilizados pelos desembargadores. Pretendemos mostrar que, para além de um conflito entre particulares, estamos diante da discussão sobre a natureza jurídica da própria transação intermediada pelo Airbnb. Uma análise territorial dos endereços dos condomínios nos permite mostrar alguns pontos cegos da argumentação jurídica desenvolvida pela segunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo.
1.Introdução
A ideia original era bastante simples, até mesmo modesta. Com dificuldades para pagar o aluguel, três jovens decidiram utilizar colchões infláveis guardados e oferecer a sala de sua casa em São Francisco como espaço de hospedagem. Era outubro de 2007 e um congresso internacional lotava a maioria dos quartos de hotel da cidade, o que garantiu a atratividade da oferta. Como os colchões eram de ar, Brian Chesky, Nathan Blecharczyk e Joe Gebbia chamaram a empreitada de “AirBed and Breakfast”. Um pouco mais de uma década depois, o Airbnb conquistou a posição de um dos maiores unicórnios – nome dado às start-ups que atingem o valor de mercado de mais de US$1 bilhão – e se tornou um dos principais representantes do que costumamos chamar de “economia do compartilhamento”, com valor estimado pela Forbes em US$ 38 bilhões em 2018 (Team, 2018), com bancos, empresas de serviços financeiros, fundos de venture capital e private equity entre seus principais investidores1.
Muitos entendem que o Airbnb integra a economia do compartilhamento justamente porque a ideia de base é partilhar quartos, casas e apartamentos que antes estariam vazios. Por outro lado, há outros tantos que entendem que este tipo de plataforma estaria muito longe da intermediação por meio do compartilhamento e mais próxima de um tipo de economia que monetiza o acesso sem necessariamente passar pela propriedade (Eckhardt & Bardhi, 2015). Independentemente do termo que decidirmos utilizar, costumamos associar “economia do compartilhamento” a dois aspectos estruturais principais. O primeiro deles é o uso intensivo de bens duráveis subutilizados ou não utilizados. No caso do Uber, carros que em tese ficariam parados em garagens e estacionamentos passam a ser amplamente utilizados como meio de transporte privado. No caso do Airbnb, quartos sobrando podem ser aproveitados, recebendo hóspedes por curta temporada. O segundo aspecto é condição para o primeiro. O uso intensivo destes bens não seria possível sem o desenvolvimento tecnológico que permite que estas conexões aconteçam. Aplicativos e algoritmos que conectam rapidamente duas pontas, mas também a democratização do acesso a smartphones e à internet são requisitos fundamentais. É este segundo aspecto que torna o “stranger sharing” possível, para utilizar os termos de Juliet Schor (2014). Compartilhar carros e apartamentos não é exatamente uma novidade. O novo estaria antes no ganho de escala possibilitado pela tecnologia. E a escala certamente muda a qualidade das relações – compartilhar carros e apartamentos não é um fenômeno novo, mas estava restrito a um círculo de conhecidos (ou de conhecidos de conhecidos). A intermediação entre as duas pontas e a criação de mecanismos de confiança permitem que este círculo se amplie radicalmente.
Se adotarmos o continuum proposto por Arjun Sundararajan (2016, p. 24) para qualificar diferentes tipologias da sharing economy, em que em um extremo está a economia de mercado motivada pelo lucro e, do outro, há uma espécie de economia da dádiva motivada pelo propósito, o Airbnb dos dias de hoje certamente estaria mais próximo da ponta do mercado. Não só porque as transações por meio da plataforma passam necessariamente pela intermediação do dinheiro e pelo lucro da empresa, mas também porque a proposta simples e modesta foi abandonada há muito tempo. Se é verdade que ainda existem muitos anfitriões – nome dado pelo Airbnb àqueles que alugam quartos ou unidades – que anunciam espaços vazios de casas que acabaram se tornando grandes demais ao longo do tempo, também é verdade que a plataforma se tornou um espaço privilegiado de transação negocial por empresas que anunciam uma grande quantidade de unidades inteiras, assemelhando-se a hotéis e corretoras de imóveis (Tavolari, 2019).
De uma perspectiva econômica, o Airbnb é uma plataforma articulada em um mercado de dois lados, ou seja, faz a intermediação entre dois grupos distintos – anfitriões e hóspedes. A literatura mais recente tem chamado estas plataformas de matchmakers (Evans & Schmalensee, 2016). Elas promovem o match entre oferta e demanda, reduzindo fricções de mercado, também conhecidas como custos de transação. Se esta posição como facilitadores dos interesses de dois grupos está razoavelmente bem resolvida no campo da economia, não é possível dizer o mesmo no campo do direito.
A natureza jurídica desta intermediação não só não está clara em diversos sistemas jurídicos ao redor do mundo, como é altamente contestada. A controvérsia perpassa diferentes campos dogmáticos, articulados a partir de conflitos distintos (Tavolari, 2017). A dimensão conflitual mais evidente é a contraposição entre o surgimento de uma plataforma inovadora e o setor econômico tradicional correspondente. Não é raro que o Airbnb seja retratado como uma inovação disruptiva que desestabilizou a indústria hoteleira. Diante da perspectiva Airbnb versus hotéis, surgem questões importantes em torno do direito tributário (Viswanathan, 2018; Kaplan & Nader, 2016) e concorrencial (Dunne, 2018). No caso dos tributos, saber se Airbnb e hotéis prestam o mesmo serviço é fundamental para decidir se ambos devem ser tributados da mesma maneira. No caso do direito antitruste, saber se os serviços são equivalentes é o centro da discussão para decidir se Airbnb e rede hoteleira podem ser considerados como concorrentes ou, seja, se são players que integram o mesmo mercado relevante. A determinação da natureza jurídica da atividade do Airbnb perpassa a discussão em ambos os campos dogmáticos.
Mas a perspectiva que contrapõe o Airbnb a hotéis é apenas uma parte da história. Ainda que o Airbnb se defina como um “mercado online”2 que não oferece qualquer tipo de serviço, a transação entre anfitriões e hóspedes geralmente é entendida, juridicamente, como um aluguel de curto prazo (Coles, Egesdal, Ellen, Li, Sundararajan, 2018; Jefferson-Jones, 2015). Do ponto de vista do direito, é possível falar em aluguel quando recortamos frações de uma propriedade, como apenas um quarto dentro de um apartamento onde moram outras pessoas? Quais são as consequências, do ponto de vista do zoneamento e do planejamento das cidades, quando determinados bairros passam a fazer uso intensivo desta estratégia? Os dados gerados por estas transações devem ser compartilhados com as autoridades municipais? (Miller, 2018) Estas duas perspectivas podem ser denominadas de Airbnb versus mercado de locação e Airbnb versus a cidade3.
No entanto, quando olhamos para os casos que têm chegado ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), é possível ver que eles não tratam de nenhuma destas perspectivas. Não são ações que discutem parâmetros antitruste ou tributários, não há considerações sobre leis de zoneamento ou critérios para discutir o direito à moradia. Para sermos justos, as questões estão, sim, relacionadas à locação. Mas não se trata de discutir a tendência de retirada de unidades de longo prazo do mercado de aluguel e, portanto, do potencial aumento do déficit habitacional em centralidades urbanas. Trata-se antes de ações de proprietários contra condomínios que decidiram proibir o aluguel por temporada no interior dos edifícios. É possível imaginar o motivo deste ponto cego. As três contraposições (Airbnb versus hotéis; Airbnb versus mercado de locação; Airbnb versus a cidade) enfeixam relações de direito público – ou, ao menos, de interesse público. As relações privadas no interior dos prédios não haviam se anunciado até então como parte integrante do panorama de conflitos mapeados pela literatura sobre a plataforma e economia do compartilhamento.
O objetivo deste texto é começar a sanar esta lacuna. Com base em pesquisa empírica exploratória realizada a partir das decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pretendemos apresentar um panorama inicial sobre como os conflitos a respeito do Airbnb têm chegado ao judiciário. A análise das decisões se desdobra em dois pontos. O primeiro deles se refere à argumentação jurídica desenvolvida pelos desembargadores. Queremos mostrar que, mesmo quando se trata de discutir o Airbnb a partir de uma relação privada entre proprietários e condomínios, é, novamente, a natureza jurídica da própria plataforma que está em disputa (Tavolari, 2020). Para isto, pretendemos mostrar como duas variantes interpretativas estão se desenhando nas decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo: a primeira entende que a atividade intermediada pela plataforma tem caráter comercial e que, portanto, é passível de proibição por condomínios e a segunda entende o contrário, ou seja, que a locação de curto prazo decorre do direito de propriedade e que, portanto, condomínios não podem cercear este direito. O segundo ponto é uma análise espacial dos endereços dos condomínios envolvidos nas decisões. Esta não é apenas uma maneira de ver padrões territoriais envolvidos neste conflito. A dimensão do espaço urbano também oferece uma lente de análise para entrever que a questão não é apenas entre privados – ou de direito privado. Os mapas nos ajudam a perceber que elementos de direito urbanístico, especialmente vinculados à lei de parcelamento, uso e ocupação do solo de São Paulo, mais conhecida como lei de zoneamento, poderiam ajudar a decidir estes conflitos no judiciário.
2.Decisões judiciais e metodologia de análise
Entre julho de 2017 e setembro de 2019, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu 33 recursos em que condomínios e proprietários individuais figuravam como partes de litígios envolvendo o compartilhamento de unidades por meio da plataforma do Airbnb. Estas decisões foram selecionadas de um universo total de 53, obtidas por meio da busca pelo termo “airbnb” na consulta ao repositório de jurisprudência do site do Tribunal4. A amostra se organiza da seguinte maneira:
Característica da decisão | Número de decisões |
---|---|
Ações de proprietários contra condomínios residenciais | 33 |
Embargos de declaração nas ações contra condomínios | 10 |
Outros temas5 | 10 |
Se analisarmos as 33 decisões no tempo, teremos a seguinte distribuição:
Ano | Número de decisões |
---|---|
20176 | 3 |
2018 | 15 |
2019 (até setembro) | 15 |
A estrutura das partes é bastante homogênea. A maioria dos casos apresenta pessoas físicas contrapostas a condomínios. Em alguns poucos casos, os proprietários são caracterizados por pessoas jurídicas:
Partes | Número de decisões |
---|---|
Uma ou mais pessoas físicas versus Condomínio | 29 |
Pessoa jurídica (sozinha ou somada a pessoas físicas) versus Condomínio | 4 |
É importante destacar algumas limitações desta amostra. Em primeiro lugar, ela não tem valor estatístico e não pretende ser representativa da judicialização de conflitos em torno do Airbnb. Não só o número total de decisões é pequeno demais para fazer inferências estatísticas, mas há também um recorte específico a partir da segunda instância. Do ponto de vista de uma análise interna dos argumentos jurídicos mobilizados nas decisões, a segunda instância é um âmbito privilegiado de observação, na medida em que é a arena institucional em que os argumentos apresentados na primeira instância serão confirmados ou contestados. Assim, da perspectiva dos argumentos, é justamente nesta instância que justificativas jurídicas são mobilizadas para referendar ou fazer oposição a teses dos juízes. No entanto, para ter uma análise mais representativa das ações, seria necessário mobilizar os dados da primeira instância, a fim de caracterizar as partes e o conflito em mais detalhes, bem como fornecer um quadro descritivo mais preciso. Como as decisões judiciais são utilizadas aqui como pontos de apoio para discutir argumentos mobilizados no judiciário – e não com a pretensão de descrição generalizante do fenômeno –, olhar apenas para uma amostra não representativa da segunda instância é suficiente. A análise das decisões tem o intuito de ilustrar pontos importantes que merecem maior aprofundamento por pesquisas mais sistemáticas que possam vir a tratar da correlação entre judiciário e o compartilhamento de moradia por meio de plataformas digitais.
Uma segunda limitação metodológica diz respeito aos dados utilizados para a análise territorial. Os endereços para o georreferenciamento foram obtidos a partir de buscas pelo nome do condomínio que figura nas ações judiciais. Há, aqui, um provável viés: é razoável presumir que as partes que recorrem à segunda instância – e que não param na primeira instância ou fazem acordos após a primeira decisão do juiz ou da juíza, por exemplo – têm mais recursos para levar a discussão adiante no judiciário. Custas com advogados, custas processuais e mesmo o dispêndio de tempo são fatores importantes para que uma decisão de primeira instância se torne objeto de recurso. Assim, também a análise dos padrões urbanos não tem pretensão representativa, mas serve apenas para abrir caminhos acerca da possível correlação entre a localização dos imóveis e a argumentação jurídica empregada nas decisões.
Há, ainda, um terceiro ponto importante. Pesquisadores e pesquisadoras que estudam o Airbnb em várias partes do mundo enfrentam um obstáculo bastante significativo. Os dados mais básicos – como número de anúncios e localização dos imóveis, por exemplo – são controlados pela própria plataforma7. Há, no entanto, monitoramentos externos que ajudam a compreender o tamanho do fenômeno Airbnb nas cidades. A principal delas é a InsideAirbnb, que coleta os dados dos anúncios publicados na plataforma para diversas cidades, com mapas que mostram a dispersão territorial dos imóveis, bem como a porcentagem de anúncios que alugam apenas quartos ou unidades inteiras8. A principal limitação deste tipo de dado é o fato de que, ao utilizar crawlers para coletar as informações, é possível conhecer apenas os imóveis anunciados e não aqueles que de fato foram alugados por meio da plataforma, ou seja, não é possível saber as taxas de ocupação (Coles, Egesdal, Ellen, Li, Sundararajan, 2018, p. 112). Mesmo com estes problemas, os dados independentes são muito escassos para as cidades brasileiras. O InsideAirbnb faz a coleta apenas para o Rio de Janeiro9. Ou seja, tampouco é possível ter uma estimativa de quantos anúncios estão ativos para a plataforma em São Paulo por não existir um monitoramento destes dados no tempo, o que significa que não conseguimos estabelecer a relação entre demandas que chegam à segunda instância do judiciário e o universo total de transações via Airbnb em São Paulo.
Assim, as decisões servem como ponto de apoio para uma análise dos argumentos jurídicos em disputa e para padrões territoriais urbanos que estão diretamente vinculados a esta argumentação. Passamos agora a discutir os padrões argumentativos.
3.A argumentação jurídica das decisões
As decisões de interesse para esta pesquisa tratam, majoritariamente, de proprietários individuais que, na primeira instância, impetram ações anulatórias contra decisões condominiais que proibiam o aluguel de curta temporada por meio da plataforma AirBnB. Em outras palavras, estamos diante de conflitos que envolvem, por um lado, um proprietário individual e, por outro, uma comunidade de proprietários caracterizada pela coletividade do condomínio. É a composição clássica de conflitos de vizinhança. Se à primeira vista podem parecer conflitos simplórios e menos importantes, do ponto de vista do direito, estamos diante de decisões muitas vezes difíceis de serem tomadas, uma vez que envolvem direitos de propriedade conflitantes (Singer, 2001, p. 92). O proprietário individual tem o direito de usar, gozar e dispor de sua propriedade. Os proprietários individuais que compõem o condomínio têm o direito de regular – e impor limites – ao uso da propriedade individual na coletividade conformada pelo condomínio edilício.
Os argumentos das partes, reconstruídos nos relatórios das decisões de desembargadores da segunda instância, refletem esta contraposição. De maneira geral, o proprietário individual alega que teve seus direitos de propriedade violados pelo condomínio. Afirma que a locação por temporada é prevista no direito brasileiro e alugar sua unidade nada mais é do que exercício legítimo de seus direitos de uso. O condomínio, por sua vez, afirma que a restrição ao aluguel de curto prazo se deu em razão de sua alta frequência, possibilitada pela intermediação via Airbnb. Alega razões de segurança e falta de estrutura para controlar a alta rotatividade de pessoas estranhas no condomínio. Barulhos e reclamações de vizinhos representam justificativas marginais – a principal questão levantada é a segurança.
Esta contraposição entre as partes se traduz em argumentos jurídicos específicos. Analisadas em conjunto, é possível estabelecer três padrões decisórios bastante nítidos – e também bastante típicos para ações judiciais de forma geral, em que um conjunto se consolida a favor de uma das partes, outro da outra parte e um terceiro grupo discute questões processuais ou procedimentais, sem decidir em favor de nenhuma das partes de maneira imediata. Assim, o primeiro deles é caracterizado por decisões em favor do condomínio, ou seja, em favor da proibição do aluguel de curta temporada por meio do AirBnB. O segundo é caracterizado pela predominância dos direitos de propriedade individual e o terceiro padrão é configurado por decisões que não discutem o mérito da controvérsia, mas questões processuais. A distribuição da amostra segundo estes três padrões é a seguinte:
Padrão decisório | Número de decisões |
---|---|
Em favor do condomínio | 12 |
Em favor do proprietário | 9 |
Questões processuais ou procedimentais | 12 |
Processo | Data | Decisão |
---|---|---|
Agravo de instrumento n. 2133212- 93.2017.8.26.0000 | 27/09/2017 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 2235279- 39.2017.8.26.0000 | 29/01/2018 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 2013529- 28.2018.8.26.0000 | 26/02/2018 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 2005910- 47.2018.8.26.0000 | 26/02/2018 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 2011719- 18.2018.8.26.0000 | 15/05/2018 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 2102787- 49.2018.8.26.0000 | 14/06/2018 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 1005350- 81.2017.8.26.0704 | 30/07/2018 | Pró-proprietário |
Agravo de instrumento n. 2114141- 71.2018.8.26.0000 | 15/08/2018 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 1027326- 50.2016.8.26.0100 | 15/10/2018 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 1043841- 34.2014.8.26.0100 | 20/09/2018 | Pró-proprietário |
Agravo de instrumento n. 2214845- 92.2018.8.26.0000 | 22/11/2018 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 2187081- 34.2018.8.26.0000 | 07/01/2019 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 2225844- 07.2018.8.26.0000 | 04/02/2019 | Pró-proprietário |
Agravo de instrumento n. 2265414- 97.2018.8.26.0000 | 18/02/2019 | Pró-proprietário |
Agravo de instrumento n. 1002697- 72.2018.8.26.0704 | 21/02/2019 | Pró-proprietário |
Agravo de instrumento n. 2257026- 11.2018.8.26.0000 | 11/03/2019 | Pró-condomínio |
Agravo de instrumento n. 1060720- 14.2017.8.26.0100 | 19/03/2019 | Pró-proprietário |
Agravo de instrumento n. 1117942- 37.2017.8.26.0100 | 16/05/2019 | Pró-proprietário |
Agravo de instrumento n. 1124567- 87.2017.8.26.0100 | 28/06/2019 | Pró-proprietário |
Agravo de instrumento n. 1132033- 98.2018.8.26.0100 | 25/09/2019 | Pró-proprietário |
A classificação em pró-condomínio e pró-proprietário enfoca a parte vencedora. No entanto, esta classificação diz pouco sobre a pergunta que estas decisões pretendem responder. Todas estas decisões que tratam do mérito discutem, expressa ou implicitamente, a natureza do serviço oferecido via Airbnb. Como veremos, as decisões estão preocupadas em estabelecer se (i) a locação de curta temporada pela plataforma se assemelha à hospedagem e, portanto, se tem caráter comercial ou se (ii) é apenas mais uma modalidade de locação, derivada do feixe de direitos vinculados à propriedade, que não alteraria o aspecto residencial da unidade ofertada. Assim, poderemos traduzir a classificação “pró-condomínio” como “locação via AirBnB configura hospedagem comercial” e a categoria “pró-proprietário”, como “locação via AirBnB não configura hospedagem comercial”. Os critérios para estabelecer se a locação de curta temporada é o ou não comercial estarão, portanto, no centro do debate.
Passamos agora a olhar estes padrões decisórios mais de perto, escolhendo algumas decisões como modelos das demais. Os argumentos das decisões que discutem questões processuais e procedimentais não serão analisados no âmbito deste artigo10.
3.1.Decisões em favor dos condomínios
As decisões em favor dos condomínios apresentam um padrão argumentativo estruturado. O voto do relator Pedro Baccarat no Agravo de Instrumento n. 2133212-93.2017.8.26.0000, de 27 de setembro de 2017, é exemplificativo deste tipo de argumentação. Por um lado, temos um condômino proprietário, que dispôs livremente de seu imóvel. Alugou sua unidade na plataforma Airbnb, por curta temporada. A transação poderia ser entendida como “locação por temporada”, prevista no artigo 48 da Lei n. 8245/1991 (Lei de Locação). Para o relator, o proprietário não está proibido de usufruir dos direitos conexos ao de propriedade. Pelo contrário: “a locação está autorizada, pois a fruição é um dos atributos do direito de propriedade, mas deve se destinar a uso residencial”.
Assim, a questão central para este voto é estabelecer se a locação via Airbnb se destina a uso residencial ou não. Baccarat entende se tratar de hospedagem e, portanto, de finalidade comercial. O critério para estabelecer esta diferenciação é bastante simples. O relator afirma que “uma breve consulta ao site airbnb.com” já seria suficiente para depreender que se trata de transação comercial. A diferenciação dos usos é relevante para os critérios jurídicos estabelecidos pelo Código Civil. O artigo 1336, IV, prevê que é dever do condômino “dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes”, o que vedaria utilizar uma unidade de maneira distinta do restante do edifício, de acordo com a clivagem residencial/comercial. Além disso, o artigo 1351 estabelece que “depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção; a mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da aprovação pela unanimidade dos condôminos”, submetendo a mudança de uso de uma unidade a todos os integrantes do condomínio.
Esta decisão serve como uma espécie de espinha dorsal para as que se seguem. O voto do relator Mario A. Silveira no Agravo de Instrumento n. 2235279- 39.2017.8.26.0000, de 29 de janeiro de 2018, também decide que não é permitida a locação para fins diversos do residencial. Entende que o serviço intermediado pelo AirBnB é semelhante ao de hotelaria. Os critérios vão um pouco além dos de Baccarat: a alta rotatividade, a divulgação eletrônica no site e uma “breve consulta ao site” configurariam o caráter de hospedagem comercial.
Os mesmos critérios são utilizados pelo desembargador Bonilha Filho no Agravo de Instrumento n. 2013529-28.2018.8.26.0000, de 26 de fevereiro de 2018. Segundo o relator: “Não se verifica ofensa explícita ao direito de propriedade, já que a da [sic] unidade para fins de locação de curto período por aplicativos, com verdadeiro caráter hoteleiro, efetivamente não se mostra compatível com a destinação residencial do condomínio”. Os critérios para a incompatibilidade são a “inegável alta rotatividade de pessoas”, além da existência de contrato comercial entre proprietário e visitante. Assim como os demais, Bonilha Filho afirma que “uma singela consulta ao ‘site’ do AirBnB” mostra que o anfitrião tem controle total de preços e disponibilidade de locação, que a relação é lucrativa, que os visitantes são chamados de hóspedes. Bonilha Filho acrescenta ainda que a assembleia de condomínio é soberana e que o judiciário só deve intervir em casos de ofensa à lei.
As demais decisões seguem a mesma estrutura geral, com alguns pontos acrescidos às fundamentações. Por exemplo, a decisão do desembargador César Luiz de Almeida no Agravo de Instrumento n. 1027326-50.2016.8.26.0100, de 15 de outubro de 2018, afirma que o direito de propriedade em condomínio não é absoluto “porque não se pode exercê-lo em prejuízo aos demais condôminos, devendo ser respeitados os direitos de vizinhança”.
Uma reconstrução sistemática dos argumentos deste padrão interpretativo pode ser organizada da seguinte maneira:
- O direito de locação – e de locação por temporada – é válido e previsto pela legislação brasileira (Lei n. 8245/1991).
- O direito de locação decorre do direito de propriedade: é um dos direitos integrantes do feixe de direitos vinculados à propriedade.
- O direito de propriedade e seus direitos conexos não são ilimitados. Em condomínios residenciais, o proprietário deve seguir a destinação de uso, conforme o artigo 1.336, IV do Código Civil.
- A locação de curta temporada por meio do Airbnb desvirtua a finalidade residencial, configurando-se como atividade análoga à de hospedagem e hotelaria.
- Os critérios para estabelecer o uso comercial são: (i) alta rotatividade de hóspedes estranhos ao condomínio; (ii) divulgação da unidade na plataforma do AirBnB; (iii) auto-caracterização do Airbnb em seu próprio site como transação comercial; (iv) existência de contrato entre proprietário e visitante e (v) alguns juízes mencionam a ausência de infraestrutura adequada para garantir a segurança do condomínio.
- Além disto, o judiciário apenas deveria intervir em decisões condominiais em casos de flagrante ilegalidade, uma vez que a assembleia é soberana.
- Não há violação ao direito à propriedade nos atos de proibição de aluguel por curta temporada via Airbnb.
Como veremos a seguir, parte deste argumento terá que ser precisada por Baccarat em um voto vencido, em que ganha a preponderância do direito de propriedade sobre o condomínio.
3.2.Decisões em favor dos proprietários
Diferentemente das decisões discutidas até agora, as decisões em favor dos proprietários não seguem uma estrutura tão nítida. A primeira decisão em favor dos proprietários, de 30 de julho de 2018, diz respeito a um flat (Agravo de Instrumento n. 1005350-81.2017.8.26.0704). A argumentação é semelhante à do padrão descrito anteriormente: a diferença está no fato de que flats não são exclusivamente residenciais, mas incorporam o caráter comercial de saída. Assim, este não poderia ser um exemplo ilustrativo para o segundo padrão.
As demais decisões em favor dos proprietários seguem caminhos diferentes. No Agravo de Instrumento n. 2225844-07.2018.8.26.0000, o relator Soares Levada afirma que “ainda que autorizada a entrada de várias pessoas no condomínio, não há prova inequívoca do direito afirmado, no sentido de se demonstrar irrefutáveis as alegações autorais, quanto à efetiva mudança de destinação da finalidade do condomínio residencial”. Levada não diz quais seriam as provas irrefutáveis desejadas ou quais os critérios para determinar a mudança de uso. Já Carlos Henrique Miguel Trevisan alega, no voto do Agravo de Instrumento n. 1002697-72.2018.8.26.0704, que “o condomínio certamente dispõe de medidas para garantir a segurança e o sossego” e, portanto, não deveria restringir direitos de propriedade apenas por esta razão.
Em ambos os casos, tratam-se de argumentos que não explicitam seus pressupostos ou adotam linhas de argumentação estritamente vinculadas aos casos concretos – ausência de provas para caracterizar a atividade comercial e suposição de que o condomínio poderia contornar problemas de segurança ocasionados pela alta rotatividade de hóspedes. O argumento mais desenvolvido viria apenas no voto de Milton Paulo de Carvalho Filho, no Agravo de Instrumento n. 1002697-72.2018.8.26.0704, de 21 de fevereiro de 2019. Segundo o relator, a locação por meio do Airbnb não muda a finalidade residencial do condomínio em que a unidade está situada. Não haveria diferença entre a locação de longo prazo e de curto prazo: o tempo não mudaria a natureza do direito. Em ambos os casos, há contrato e o proprietário aufere renda. O uso seria exatamente igual. Caso a proibição passasse a valer para a locação de curto prazo, atingiria também a de longo prazo. Para Carvalho Filho, a finalidade comercial se caracterizaria se o proprietário desenvolvesse atividade de caráter profissional no local, ou seja, caso uma unidade fosse ocupada com um escritório, uma loja ou qualquer outra atividade semelhante. Além disto, Carvalho Filho questiona a equiparação entre contrato de locação por curta duração e contrato de hospedagem. Para o relator, a hospedagem se caracteriza por dois elementos: locação e prestação de serviços. Como a locação via Airbnb não abarcaria prestação de serviços, não seria o caso de falar em contrato de hospedagem.
Este voto passa a orientar a argumentação das decisões favoráveis aos proprietários que se seguem. O ponto central está em desfazer a analogia entre AirBnB e serviço de hospedagem, aproximando a transação da relação de locação comum.
Neste mesmo processo, o desembargador Pedro Baccarat se manifesta sob a forma de voto vencido. O voto explicita um argumento subjacente ao primeiro padrão decisório: “A noção de residência não se extrai apenas da oposição ao uso comercial, mas especialmente de sua duração. Residente é o que se acha em determinado lugar em caráter permanente, esta a noção que distingue residentes de turistas, domicílios eleitorais ou tributários”.
3.3.Critérios para a diferenciação
Os votos dos desembargadores Milton Paulo de Carvalho Filho e Pedro Baccarat no Agravo de Instrumento n. 1002697-72.2018.8.26.0704 começam a delinear critérios para responder à pergunta: a transação intermediada pela plataforma do Airbnb tem caráter comercial? O voto de Carvalho Filho busca dar contra-argumentos à maior parte das decisões favoráveis ao condomínio, em que os desembargadores defendem que bastaria acessar o site da plataforma para depreender que a relação comercial estaria caracterizada, com serviço análogo ao de hotel. O argumento procura desestabilizar essa premissa. Haveria diferença entre alugar um apartamento por curto prazo intermediado pela plataforma ou sem intermediação do Airbnb? O tempo da locação ou a frequência de vezes em que o imóvel é alugado mudam a finalidade de residencial para comercial? Como vimos, Carvalho Filho argumenta que o tempo não alteraria o direito de locação conexo ao direito de propriedade. Assim, seguindo o raciocínio do desembargador, não haveria diferença substantiva entre (i) locações de curto prazo intermediadas pela plataforma online e aquelas sem intermediação e (ii) entre a locação de longo prazo e a de curto prazo. Para que a finalidade fosse alterada, seria preciso desenvolver atividade profissional dentro da unidade locada – e não simplesmente permitir que terceiros usufruam do espaço, com maior ou menor frequência.
A resposta do desembargador Pedro Baccarat endereça justamente a questão temporal levantada por Carvalho Filho, na medida em que defende que a finalidade residencial não é definida apenas em oposição ao sentido mais evidente de uso comercial – em que se desenvolve atividade profissional distinta da moradia –, mas incorpora a dimensão temporal da permanência. O conceito civilista de domicílio é evocado para fundamentar este ponto. Segundo o artigo 70 do Código Civil, o “ânimo definitivo” é uma das condições para determinar o domicílio residencial das pessoas naturais. No mesmo sentido, seria ainda possível acrescentar que a concepção jurídica de empresário também abarca a dimensão temporal da habitualidade, ou seja, envolve a noção de práticas reiteradas e frequentes.
Por mais que alguns critérios despontem como caminhos de argumentação, esta diferenciação não é simples de ser feita. Isso porque um dos pontos caracterizadores do que costumamos chamar de economia do compartilhamento é justamente esfumar as diferenças entre o pessoal e o profissional, em que atividades peer to peer que eram antes restritas aos círculos mais pessoais – como dar uma carona e oferecer um lugar para passar a noite – ganham escala e são monetizadas (Sundararajan, 2016, p. 27). Esta ausência de distinção também desestabiliza as categorias jurídicas tradicionais, especialmente as relativas à propriedade (Kreiczer-Levy, 2019, p.117). Estamos, afinal, diante de proprietários que fazem um negócio de suas próprias casas – domicílio e atividade profissional estão, portanto, intimamente relacionados11.
Desde fevereiro de 2019, tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o Recurso Especial n. 1.819.075/RS. O conflito tem exatamente a mesma estrutura dos que são discutidos neste texto – proprietário versus condomínio. A diferença é que o tribunal de origem não é o de São Paulo, mas o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O Airbnb foi admitido como assistente no processo e o voto do relator Luis Felipe Salomão entende que os condomínios não têm o direito de restringir direitos conexos ao de propriedade e que a transação intermediada pelo Airbnb não pode ser equiparada à atividade hoteleira, com argumentos bastante semelhantes aos formulados pelo desembargador Milton Paulo de Carvalho Filho12. A decisão do plenário do STJ será um passo importante para decidir os conflitos entre proprietários e condomínios, mas também para determinar a natureza jurídica do Airbnb no direito brasileiro13. A decisão tem impactos para além de um conflito entre privados, uma vez que esta caracterização transborda para outros campos dogmáticos14. Uma análise territorial destes casos pode nos ajudar a perceber um ponto cego nestas argumentações.
4.Análise territorial
A partir dos nomes dos condomínios que fazem parte das ações judiciais no Tribunal de Justiça de São Paulo, foi possível compilar uma lista de endereços para georreferenciamento. O processo adotado para geocodificação dos logradouros transforma automaticamente a descrição de endereços (ex.: Av. Paulista, 1.880 – Bela Vista, São Paulo – SP) em uma coordenada geográfica com valores de latitude e longitude (neste caso, -23,55971, -46,6583)15. A ferramenta utilizada apresenta altas taxas de acerto quanto mais padronizada estiver a descrição do endereço que se deseja localizar e quanto melhor for a base referencial de logradouros usada para tal procedimento. Neste caso, o sistema utilizado corresponde à base de mapas do Google16, serviço amplamente utilizado no dia-a-dia para localização pessoal e definição de rotas, que oferece um amplo e detalhado banco de endereços para municípios como São Paulo. Uma vez que a lista de condomínios das ações judiciais no TJ-SP possuía poucos endereços e todos bem descritos, sua geolocalização automática não foi um problema para o software de georreferenciamento, que conseguiu identificar, com certa precisão, cada um dos imóveis.
Apesar do sucesso em georreferenciar os endereços de modo automático, foi feita uma validação manual de todo o processo, justamente porque o volume de endereços a serem localizados não era tão grande a ponto de representar um trabalho fora de propósito. Desta forma, cada imóvel foi conferido individualmente através da busca, endereço a endereço, no próprio Google Maps. Este procedimento permitiu checar e corrigir a localização de alguns pontos que, mesmo apresentando poucos metros de diferença, poderiam gerar algumas distorções em análises futuras, baseadas no cruzamento com outras informações territoriais.
Por fim, foram organizadas duas bases auxiliares com informações georreferenciadas para construir as leituras pretendidas. A primeira utilizou dados do IBGE (Censo, 2010) para caracterizar o padrão de renda na Capital através da espacialização renda média domiciliar. Apesar dos dez anos de defasagem, o dado ainda pode ser usado como referencial para diferenciar, na escala do município, as áreas mais ricas das áreas mais pobres da cidade. A ressalva feita sobre a desatualização do dado também é importante para justificar a classificação dos grupos de renda, que leva em consideração o salário mínimo nacional do ano da pesquisa (2010) de R$510,00.
A segunda base auxiliar incorpora a dimensão regulatória disposta pela lei de zoneamento do Município de São Paulo (Lei n. 16.402/2016). O dado encontra-se disponível no Geosampa17, plataforma de dados georreferenciados da prefeitura de São Paulo e pode ser utilizado livremente. Cada zona tem usos e padrões de ocupação do espaço definido por lei municipal e seus perímetros podem chegar à escala de uma quadra ou até mesmo de alguns lotes; por essa razão a validação individual e as eventuais correções na geolocalização de alguns pontos foram necessárias.
No universo de 33 decisões, quatro condomínios apresentavam endereços ambíguos, podendo ter mais de uma localização18. Com as ambiguidades de endereços, temos 39 pontos de localização no espaço urbano da cidade de São Paulo, distribuídos da seguinte maneira:
Ainda que exista uma parcela de endereços imprecisos em razão da multiplicidade, é possível perceber que os edifícios estão localizados no centro expandido da cidade, nas áreas de maior renda. A distribuição dos bairros também é significativa. Mostra que a maior parte dos edifícios está localizada no Jardim Paulista, Vila Andrade, Vila Mariana, Campo Belo e Bela Vista. Aqui é importante lembrar novamente que estes dados não têm valor estatístico e que há um provável viés, na medida em que o recurso à segunda instância do Tribunal de Justiça de São Paulo envolve dispêndio de recursos não triviais.
Ainda assim, os endereços nos ajudam a pensar nestes edifícios como parte da cidade. Os condomínios não são pontos que orbitam no vazio, mas integram o tecido urbano. Entre outras coisas, isto significa que estão submetidos a parâmetros urbanísticos de uso e ocupação do solo, previstos no zoneamento de São Paulo. Ao cruzarmos os endereços com o zoneamento, temos os seguintes padrões territoriais:
O zoneamento nada mais é do que a determinação de parâmetros urbanísticos e construtivos para áreas selecionadas da cidade. Leis de zoneamento também estipulam quais usos devem ser permitidos ou estimulados a depender de sua localização na cidade. Em outras palavras, a discussão sobre usos residenciais e comerciais ganha uma nova camada quando analisamos as relações internas ao condomínio a partir da perspectiva do espaço urbano.
Os mapas e o gráfico mostram que é possível encontrar endereços em Zona Mista (ZM), Zona Centralidade (ZC), Zona Eixo de Estruturação da Transformação Urbana (ZEU), Zona Eixo de Estruturação da Transformação Metropolitana (ZEM), Zona Exclusivamente Residencial (ZER), Zona Especial de Interesse Social 3 (ZEIS-3). A partir da ferramenta do Google Street View, é possível acessar as tipologias dos edifícios:
É possível pensar as categorias estabelecidas pelo zoneamento a partir de seus usos residenciais e comerciais. A Zona Exclusivamente Residencial (ZER) têm nome auto-explicativo, com densidades demográficas baixas. Já as Zonas Mistas (ZM) são porções do território destinadas a promover usos residenciais e não residenciais, com predominância do uso residencial, com densidades construtiva e demográfica baixas e médias. As Zonas Centralidade (ZC) também combinam usos, mas são destinadas principalmente às finalidades não residenciais, uma vez que o objetivo é promover atividades de áreas centrais.
Há, ainda, duas zonas que fazem referência direta à noção de “eixo” – ZEU e ZEM. O plano diretor da cidade de São Paulo (Lei n. 16.050/2014) criou a noção de eixos de estruturação urbana. São partes do território da cidade em que há infraestrutura de transporte público consolidada. Esta não é apenas uma categoria, mas uma das diretrizes da política urbana subjacente ao plano diretor. O objetivo é adensar e verticalizar estas áreas para que mais pessoas possam usufruir diretamente de equipamentos e redes de mobilidade urbana na cidade. Assim, o zoneamento estabelece parâmetros distintos para estas áreas justamente para aproximar transporte e moradia.
Entre os endereços dos condomínios, também foi possível encontrar um edifício localizado em ZEIS-3. As Zonas Especiais de Interesse Social são recortadas com a finalidade de promover a moradia digna para população de baixa renda. Atualmente, há 5 categorias de ZEIS, sendo a ZEIS-3 as “áreas com ocorrência de imóveis ociosos, subutilizados, não utilizados, encortiçados ou deteriorados localizados em regiões dotadas de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas, boa oferta de empregos, onde haja interesse público ou privado em promover Empreendimentos de Habitação de Interesse Social” (art. 45, III, da Lei n. 16.050/2014).
Assim, no caso das três primeiras zonas – ZER, ZM e ZC –, há um continuum entre uso residencial e uso comercial, sendo a ZER aquela que permite apenas usos residenciais e a ZC dá prioridade a usos comerciais. É claro que estes usos se referem a uma porção no território e não ao interior de um edifício. Mas, se as transações intermediadas pelo Airbnb forem consideradas apenas como um desdobramento do direito de propriedade e não como uma atividade comercial, seria possível entender que este não seria um uso a ser estimulado nas Zonas Centralidade (ZC). Em contraponto, se as transações forem entendidas como análogas às de hospedagem, com claro componente comercial, seria difícil sustentar a permanência de locações via Airbnb em Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER).
Já as zonas que caracterizam os eixos – ZEU e ZEM – adicionam outro componente territorial importante. Se o objetivo da política urbana é adensar estas áreas para aproximar moradores do transporte público, as transações de unidades via Airbnb tendem a ir na contramão deste propósito. Isso porque, nos casos de locação de unidades inteiras, há uma substituição de residentes fixos por residentes temporários. O objetivo subjacente aos eixos de estruturação urbana pressupõe moradores permanentes e não turistas eventuais. Se houver uso massivo do Airbnb nestas áreas – o que não conseguimos constatar com os dados apresentados aqui, apenas apontar para a existência de unidades nestas zonas –, a proposta de diferenciação em eixos se perde, uma vez que são residentes temporários e turistas que vão usufruir da infraestrutura de transporte urbana consolidada.
Já o caso situado na Zona Especial de Interesse Social é o mais problemático. A finalidade expressa das ZEIS é garantir moradia digna para população de baixa renda. Substituir moradores permanentes por residentes temporários ou turistas nestas zonas é contrariar o objetivo expresso da demarcação deste zoneamento.
Correlacionar os endereços dos condomínios em que há transações de unidades via Airbnb com o zoneamento da cidade de São Paulo abre um caminho de argumentação até então não explorado por desembargadores e ministros. Se o conflito chega ao judiciário como uma disputa entre privados, isto não quer dizer que esta controvérsia possa ser recortada do plano mais abrangente do tecido urbano e das leis de planejamento urbano. Algumas zonas ajudam a determinar atividades residenciais e comerciais. Outras zonas estabelecem prioridades sociais que são colocadas em xeque caso a transação via Airbnb se torne expressiva. A argumentação em torno dos critérios de residência ou comércio certamente ganharia muito ao combinar critérios do direito civil com critérios do direito urbanístico.
5.Considerações finais
Esta pesquisa empírica de caráter exploratório pretendeu avançar nas discussões sobre a regulação jurídica de uma das maiores plataformas da economia do compartilhamento. Boa parte da literatura que explora as tensões jurídicas em torno do Airbnb trata de questões de direito público ou de interesse público, voltadas à regulação de mercados, competição, dados e planejamento urbano. A análise das decisões de segunda instância no Tribunal de Justiça de São Paulo mostrou que os conflitos que estão chegando ao judiciário são de ordem privada, entre proprietários e condomínios, refletindo a estrutura clássica do direito de vizinhança. No entanto, como procuramos mostrar, a argumentação nas decisões de mérito acaba discutindo a própria natureza jurídica da transação intermediada por meio da plataforma, ao colocarem a distinção residencial/comercial no centro da discussão. Esta distinção não é lançada ao acaso; é um componente importante para a interpretação do artigo 1336, IV, do Código Civil, que obriga os condôminos a utilizares suas unidades com a mesma finalidade do edifício.
Mostramos que as decisões mais sofisticadas do ponto de vista da argumentação jurídica, seja em favor do condomínio ou em favor do proprietário, discutem a diferenciação entre residência e atividade comercial a partir de noções temporais. Entendemos que a dimensão do espaço também poderia ser importante para determinar estas diferenças, especialmente porque as leis de zoneamento fazem justamente isto: determinam possibilidades de uso, valendo-se da clivagem residencial e comercial. A análise dos endereços dos condomínios mostra que não há apenas um ganho em relação às finalidades das atividades, mas também é possível entrever pontos em que as transações via Airbnb se chocam com elementos da política urbana consolidados na legislação urbanística. A substituição de moradores fixos por residentes temporários altera substancialmente os objetivos de demarcação de territórios na cidade, seja com a finalidade de aproximar a moradia do transporte, seja com o propósito de fomentar a habitação de interesse social.
A determinação da natureza jurídica da transação intermediada pelo Airbnb transborda para outros campos dogmáticos. Isto porque não faria sentido, do ponto de vista da unidade do ordenamento jurídico, adotar um critério para definir estas transações nas relações entre privados e outro para as diversas dimensões de direito público. Ainda não é possível saber como o Airbnb sairá da crise gerada pela pandemia. Mas já é possível saber que algumas cidades estão se movimentando para rever a regulação acerca dos aluguéis de curto prazo intermediados pela plataforma (Tavolari, 2020a). A proposta desta pesquisa foi mostrar que os argumentos jurídicos e os padrões do espaço urbano são incontornáveis nesta discussão, seja qual for a política adotada por cada cidade.
Referências
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