O presente texto é uma resenha do livro Desafios: Arte e Internet no Brasil de Maria Amélia Bulhões, lançado no final do ano de 2022. Levantaremos as ideias contidas e abordaremos os aspectos que o fazem relevantes nas pesquisas do campo da arte, especificamente no que diz respeito a arte e tecnologia.
Maria Amélia Bulhões é historiadora e crítica de arte e pesquisadora do CNPq, Doutora pela USP, com Estágio Sênior nas Universidades de Paris I, Sorbonne e Universidade Politécnica de Valencia. Professora e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em seu segundo livro dedicado às práticas artísticas no contexto da web, Maria Amélia Bulhões pretende tornar visível os estudos que tentam compreender de que maneira a disseminação do uso da internet e os avanços tecnológicos geram novas práticas artísticas e mexem com o sistema vigente da arte. O livro já estava em desenvolvimento quando a pandemia de COVID-19 nos atingiu. Esse momento crítico teve um impacto significativo no mundo da arte, impulsionando o crescimento e a importância da arte on-line. Com as restrições de distanciamento social e o fechamento de espaços físicos, como museus, galerias e teatros, os artistas e o público se voltaram cada vez mais para o ambiente virtual como forma de se conectar, expressar e apreciar a arte. O projeto do livro que já nascia de um percurso importante nas pesquisas de Bulhões, ganhou ainda mais relevância.
Em suas pesquisas, a autora é conhecida pela contribuição nos estudos sobre o sistema da arte, destacando a importância de uma análise crítica sobre ele. Ela descreve o sistema da arte como “indivíduos, e instituições que, atuando em uma complexa rede de inter-relações, são responsáveis pela produção, a difusão e o consumo de objetos e eventos, por eles mesmos rotulados como artísticos e, também, pela definição dos padrões e limites da arte para uma sociedade em um determinado momento” (BULHÕES, 2022, p. 15). A discussão do livro tem como objetivo analisar tendências que criam fissuras nas hegemonias estabelecidas por esse complexo sistema da arte. Assim, observamos que a produção artística construída a partir da internet lida com questões contrárias a aspectos fundamentais da área artística tradicional, como autoria, unicidade, permanência e originalidade.
Para pensar sobre a relação arte e internet, no capítulo “Arte e Internet: considerações preliminares”, ela propõe a utilização do conceito de energia escura. Ao qual referencia o autor Gregory Sholette, que utiliza o termo matéria escura – retirado do campo da ciência do cosmos -, para tratar de uma força composta de elementos invisíveis e desconhecidos, responsáveis por aglutinar o campo artístico. Segundo esse teórico, seriam os atores invisíveis e desconhecidos que não estão no mainstream, mas que são um fator importante para a agregação e manutenção do funcionamento da arte (SHOLETTE, 2010, apud BULHÕES, 2022, p. 17). Partindo do pensamento de Sholette, Bulhões acredita que o conceito de energia escura se aplicaria melhor em sua definição. Já que essa segunda força invisível atua no cosmos como uma força de mudança que promove a contínua expansão. Assim, durante todo o livro, ela nos apresenta vários aspectos que reforçam a hipótese de um processo expansivo do sistema da arte contemporânea. Para a autora, os limites deste sistema estão cada vez mais fluidos. Expandindo suas fronteiras com misturas que podem ser definidas como híbridas e interseções que por vezes trazem à luz da história e estética, a problematização da sua tradição.
No capítulo “Pesquisa: uma porta de entrada”, a partir de uma breve narração de seu percurso acadêmico, Maria Amélia Bulhões nos apresenta o grupo de pesquisa Territorialidade e subjetividade, criado em 1992, cujas reflexões foram incorporando as mudanças que ocorriam no meio artístico a partir dos anos 1990. Foi dentro desse grupo de pesquisa que Maria Amélia Bulhões começou a explorar as relações entre arte, tecnologia e a web/net arte. Em 2005, iniciou seus estudos específicos sobre a arte e tecnologia, concentrando-se na produção artística desenvolvida na internet. Naquela época, essa forma de produção artística ainda era pouco citada e comentada no meio artístico no Brasil, sendo mais desenvolvida e restrita a um nicho específico chamado “arte tecnológica”. A autora ficou particularmente interessada na produção desenvolvida na internet devido ao seu aspecto democrático e de ampla difusão. Hoje podemos reconhecer o potencial da web/net arte de alcançar um público diversificado e para romper com as barreiras do espaço físico das instituições tradicionais de arte. Assim como a originalidade do funcionamento e as novas bases estéticas desta prática.
No entanto, por essas produções estarem dispersas no ciberespaço, foi preciso criar uma metodologia para seu levantamento e constituição para o banco de dados que apoia o desenvolvimento das pesquisas. Esta foi a primeira abordagem desenvolvida no projeto de Maria Amélia, e que foi disponibilizada no blog Territorialidade/Territoriality (http://territorialidadeterritoriality.blogspot.com/), seguido pela publicação do livro Web arte e poéticas do território1. A segunda abordagem, se desdobrou no site ConectartBR (https://www.ufrgs.br/conectartbr/) que integra e divulga estudos sobre arte contemporânea, sistema da arte e internet, no Brasil. E a terceira abordagem, na qual o livro Desafios: Arte e internet no Brasil faz parte, e a tentativa de elencar os resultados da pesquisa com o intuito de dar visibilidade às suas atividades.
Ao explorar o diálogo entre diferentes formas de expressão artística enraizadas em contextos territoriais, dentro do cenário globalizado, propõe uma pesquisa sobre arte feita para e pela internet, argumentando que os artistas não abandonaram a realidade em favor de um mundo totalmente digital, mas sim aproveitaram as oportunidades oferecidas pela internet para buscar formas mais complexas e novas de se aproximar da realidade. Sua abordagem destaca a maneira como a arte online pode expandir as possibilidades de expressão artística e promover interações criativas entre diferentes culturas e territórios. Ao invés de uma substituição da realidade, a pesquisa sugere que a internet oferece um novo espaço de exploração e conexão. Além disso, a obsolescência das ferramentas tecnológicas pode levar à perda de acesso a alguns trabalhos. Isso destaca a necessidade de preservação digital e da documentação adequada dessas obras para garantir que elas possam ser apreciadas e estudadas no futuro. É importante considerar como a natureza efêmera da web/net arte pode afetar sua recepção e legado a longo prazo.
Os artistas que trabalham na web/net arte utilizam os códigos e as linguagens digitais como meio de expressão. Eles criam novas formas de interação e engajamento, explorando a participação ativa do público. Essa abordagem participativa torna a experiência artística mais inclusiva, permitindo que os espectadores se envolvam e até mesmo influenciem o resultado final da obra. Além disso, a web/net arte apresenta uma dimensão reflexiva, promovendo questionamentos sobre a própria natureza da arte, sua relação com a tecnologia e o papel do espectador. Os artistas exploram temas contemporâneos, como identidade, privacidade, redes sociais, realidade virtual, entre outros, refletindo sobre as transformações culturais e sociais trazidas pela era digital.
Na busca por deixar mais claro o que seria essa prática artística específica da web, a autora coloca:
Os trabalhos de web/net arte se caracterizam por serem criados especificamente com os recursos da internet, existem, total ou fundamentalmente, on-line e serem realizados a partir de programas de composição de páginas na World Wide Web , reunindo diferentes recursos, combinando mídias estáticas (texto, gráficos, fotografias) com mídias dinâmicas (animação, áudio, vídeo). Portanto, nem todo trabalho de arte que se encontra na internet pode ser chamado de web arte ou net arte. (BULHÕES, 2022, p.52)
Partindo para o capítulo “Web/Net Arte: uma prática artística específica”, são destacados dois aspectos importantes da arte na internet: o uso de imagens construídas completamente por computador e o uso de imagens captadas da realidade e transmitidas online através de meios digitais. E ainda há um terceiro aspecto significativo: o uso da escrita e dos signos de navegação. Essa mistura de elementos visuais cria uma experiência multidimensional e interativa para o usuário. A inclusão de palavras, ícones e recursos de navegação não apenas orienta o usuário no espaço digital, mas também se torna parte integrante do regime visual das composições artísticas online. A utilização desses recursos de navegação e arquitetura visual pode oferecer aos artistas uma forma única de expressão e interação com o público. Essa abordagem amplia ainda mais as possibilidades criativas e a maneira como os espectadores interagem com as obras de arte.
A construção do olhar na web/net arte é caracterizada por visualidades compartilhadas e em fluxo permanente. Essa abordagem é descrita como “uma estética do rizoma, cujo objetivo, sem centro nem periferia, sem direção definida, sem escolas ou tendências, expande-se indefinidamente” (BULHÕES, 2022, p.57). A ausência de uma estrutura hierárquica ou direcionamento definido permite que os artistas explorem livremente novas possibilidades estéticas e estabeleçam conexões com outros criadores e públicos. No entanto, essa fluidez também pode trazer desafios. O rápido desenvolvimento tecnológico na área exige que os artistas estejam continuamente atualizados com as inovações, muitas vezes trabalhando em equipes e ligados a grupos de pesquisa.
Justaposição sobreposição e hibridismo fazem parte dessa visualidade cumulativa, que se sustenta não na busca de uma unidade, mas por leituras de telas que, uma a uma, vão construindo sentidos. O hibridismo foi tratado no livro a partir de uma percepção assertiva, relacionado à dinâmica do virtual e o espaço físico, pois com os projetos transitando espaços de exposição on-line rompe-se, de certa maneira, as hierarquias tradicionalmente conhecidas no campo do sistema da arte, a partir daí são elaboradas novas bases de sensibilidade que a partir da internet passam a percorrer galerias e museus. Ainda assim, para estarem no circuito de exposições, os artistas precisam transpor seus trabalhos em outros meios, como físicos, por exemplo, e transformá-los em materiais.
Já a interatividade, outra característica importante da web/net arte, permite que o usuário deixe de ser apenas espectador e torne-se, com sua participação, cocriador. Esta é uma das principais apostas da arte feita para a internet, pois resulta no fortalecimento da conexão do público com a mensagem ou reflexão que está sendo transmitida pela obra e o artista.
Nas redes sociais foi observado um novo fenômeno de movimento, diversos artistas e suas obras adentraram esse meio e passaram a utilizá-las como ferramenta tanto para agregar e distribuir informação, quanto para contato com o público, aproveitando e explorando o imenso tráfego de usuários, tamanho o alcance possibilitado, algo não imaginado até o momento. Com sua mecânica de fácil acesso e divulgação, permitiu-se que as relações entre artistas e público se tornassem mais diretas, imediatamente significante para seus receptores. A diversidade alcançada foi representativa, após essa integração nas redes, as propostas deixaram de estar isoladas no seu espaço habitual e específico e passaram a ser desenvolvidas de forma interativa com grande movimentação fluída entre os usuários.
Bulhões nos atenta sobre essa nova forma para se pensar as práticas on-line no âmbito do sistema da arte, o qual descreveu na sua obra, a ideia é de que a internet, como potencial manifestador, vai além de uma ferramenta mas propicia e proporciona formas inéditas de interação social.
Em nosso contexto pós-digital em que a tecnologia se integra tão profundamente em nosso cotidiano, e principalmente com o avanço acelerado das redes sociais, artistas exploram as complexidades e impactos da cultura digital em suas obras. O termo “pós-digital” não sugere a eliminação da tecnologia, mas sim uma mudança na forma como a tecnologia é incorporada e percebida na prática artística. Isso pode envolver uma crítica à sociedade do espetáculo digital, à vigilância online, à saturação de informações, entre outros temas relacionados à vida na era digital. No entanto, isso não impede o desenvolvimento de poéticas que não estejam relacionadas diretamente com o meio digital, o que vemos é artistas que exploram a interseção entre o físico e o digital, usando a tecnologia como uma ferramenta versátil para criar experiências significativas. Bulhões nos explica:
existência de uma produção artística que foge a(sic) definição tradicional da web/net arte e avança no sistema da arte, inovando e derrubando algumas barreiras. (…) prática artística que não usa a internet como sua única plataforma, mas como um eixo em torno do qual transitam ao pesquisar, se apropriar, alterar e apresentar dados, on-line e off-line. (…) Enquanto na web/net arte as obras existiam exclusivamente on-line, na produção pós-internet estratégias digitais são usadas para criar objetos que existem no mundo real. (…) São artistas que, embora passem muito tempo mergulhados no meio visual digital, na sua estética e nas políticas sociais de transmissão e recepção on-line , desenvolvem a maior parte de seu trabalho off-line. (BULHÕES, 2022, p.86)
Nesse contexto, o objeto de estudo é ainda muito recente, o que torna difícil a compreensão do mesmo. Apesar disso, a autora deixa claro os principais conceitos, utilizando vários exemplos de artistas que os utilizam e participam ativamente dessa prática artística. O texto se mostra sucinto, abrangente, introdutório e atual. Relevante por se ater ao crescimento do interesse dos artistas e outros agentes do sistema em experimentar a web como espaço para propostas em arte. Também importante por haver pouca bibliografia sobre o assunto web arte e com a divulgação dessas pesquisas possibilitar que novas possam surgir, assim como o interesse do sistema nessas proposições.