<span class="sans">Usuários soberanos na era da plataformização: </span>consumo e política como estruturas de tomadas de decisões democráticas

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Victor Carnevalli Durigan
Isabela Inês Bernardino de Souza Silva
Beatrice Bonami
Caio Vieira Machado

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volume4 ⁄ número 1 ⁄ set 2023 ↘ Artigo

Usuários soberanos na era da plataformização: consumo e política como estruturas de tomadas de decisões democráticas

Victor Carnevalli Durigan & Beatrice Bonami & Isabela Inês Bernardino de Souza Silva & Caio Vieira Machado

Resumo

O presente artigo busca elucidar como os dados pessoais de usuários das mídias sociais são relevantes para ferramentas de personalização da informação e como elas influenciam na fragmentação social, podendo criar um ambiente virtual problemático para a finalidade democrática. O objeto desta pesquisa é a preservação do debate construído sobre informações e fatos para objetivos democráticos, uma vez que a circulação de informação nas redes sociais atinge seus usuários através de bolhas informacionais – ocasionando o menor acesso à informação plural e contraditória. Serão abordados dois instrumentos para a ocorrência de tal fato: a arquitetura de controle, efetuada pelo trabalho algorítmico, e o micro direcionamento de propagandas ou anúncios patrocinados. Ambas técnicas são alimentadas pela matéria-prima composta pelos dados pessoais dos usuários, tendo como objetivo a aproximação entre anunciante/vendedor e potenciais consumidores – o que se torna um problema quando esse ambiente de consumo é utilizado para o contexto político-eleitoral. Com base em alguns exemplos práticos, campanhas eleitorais dos Estados Unidos de 2016 e Brasil 2018 e 2022, busca-se problematizar as plataformas para compreender a soberania política e do consumidor, com base na teoria de Cass Sunstein.

 

1. Introdução

A Internet permitiu o desenvolvimento de novos meios de interação social. Dentro da rede, ambientes inovam o cotidiano de usuários a fim de economizar tempo e acessar informações. Neste movimento, cultura e entretenimento foram transferidos do mundo analógico para o virtual. Plataformas, nesse contexto, desenvolveram um modelo de negócio com a justificativa de aproximar pessoas, oferecendo aos usuários um  ambiente virtual, onde podem acessar conteúdos de seus interesses e entrar em contato com amigos e familiares de maneira gratuita (DIJCK, 2018; PARISER, 2012). Contudo, as plataformas oferecem, às empresas financiadoras, o acesso aos dados de usuários que são potenciais consumidores de seus produtos. O sucesso das redes sociais ocorre pelo fato do anunciante aproximar-se de seus consumidores ideais, somado à possibilidade de direcionamento de propagandas sob medida (Bernardino, et al. 2022).

A matéria-prima por trás do sucesso são os dados pessoais. Segundo Pariser (2012), com a cada vez mais frequente transferência de informações relevantes de suas vidas para o ambiente virtual, redes sociais compreenderam que acumular dados de usuários possibilita conhecer detalhes de níveis pessoal e individual, bem como seus interesses. Os dados pessoais permitem que as redes sejam aprimoradas para agradar seus usuários criando filtros bolha1 (no inglês “bubble filter”), permitindo também que as empresas anunciantes conheçam seus potenciais clientes e consigam acessá-los individualmente. O resultado são os aumentos das vendas das empresas e, consequentemente, o aumento dos anúncios nas redes sociais. Para o usuário, o serviço “gratuito” é pago com sua atenção e seus dados pessoais. Esse contexto não passou despercebido pelas campanhas eleitorais. Na última década, a importância das redes sociais aumentou para o resultado final dos pleitos eleitorais.

Candidatos, partidos políticos e militantes desenvolveram novos métodos de comunicação e de aproximação com o eleitorado. Como as esferas do consumo e da política diferem entre si – as interações sociais são distintas e os objetivos buscados são diversos – a internet revelou-se um ambiente problemático para as democracias contemporâneas, lançando desafios para a convivência entre a política e a evolução
tecnológica (Oliveira, 2018, Vero, 2023). Cass Sunstein (2017) avalia o ambiente virtual como um novo fórum onde o debate público ocorre, as pessoas se informam e há interação para a tomada de decisões políticas. O autor acredita, porém, que no ambiente virtual, principalmente nas redes sociais, impera a soberania do consumidor (no inglês “consumer sovereignty”) prejudicial à tomada de decisões coletivas. Na soberania do consumidor o importante é satisfazer os desejos individuais e não comunitários. As redes sociais revelam-se problemáticas para o avanço do que se chama soberania política (no inglês “political sovereignty”), essencial para fins democráticos. Sunstein (2017) argumenta sobre problemas da soberania do consumidor – acesso à informação personalizada e individual, fragmentação, radicalização e outros – e visa apresentar a soberania política como o oposto a ser almejado – amplo acesso à informação plural e diversa, integração, compartilhamento de experiências e demais. Em diálogo com os ensinamentos de Sunstein (2017), o presente artigo propõe, em um primeiro momento, apresentar os dados pessoais como a matéria prima da arquitetura de controle – um conceito de Sunstein (2017) – e do micro direcionamento em redes sociais
e como elas operam filtrando quais e como as informações circulam em seu ambiente digital. Em seguida, o artigo tratará da soberania do consumidor nas redes sociais, sua origem e seus propósitos, e como ela é inadequada para o contexto político-eleitoral, visto que plataformas dispõem-se a ser um fórum do embate político mundial atual2 – e lucram com isso. Por fim, será apresentado o conceito de soberania política, sua origem e seus propósitos, e como ela deve ser alcançada em ambientes de discussão e persuasão eleitoral. Por fim, relembrando exemplos das eleições norte-americanas de 2016, o escândalo da Cambridge Analytica, e do contexto brasileiro das eleições de 2018 são feitos apontamentos para o futuro de um ambiente virtual, com foco , mais saudável e que sirva de base para objetivos democráticos. Os apontamentos são baseados na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e em ponderações a respeito do micro direcionamento e da arquitetura do controle.

Este artigo busca problematizar o uso dos dados pessoais nos pleitos eleitorais, principalmente no que se refere ao acesso à informação e a circulação desta, e levantar caminhos para repensar o ambiente virtual, de forma a torná-lo mais saudável para a soberania política dos cidadãos. Por meio de revisão da literatura sobre o tópico, espera-se que esta contribuição teórica enfatize a importância das resoluções de proteção de dados, tendo como base princípios de transparência e acesso à informação.

2.Dados pessoais, micro direcionamento e arquitetura de controle: a personalização da realidade

Em 1916, Lewis Fry Richardson acreditou que seria possível fazer a previsão do tempo calculando-o e tratando-o como um problema matemático. Ele compilou dados que centenas de observadores haviam coletado em toda a Europa no tempo de uma única manhã.

Aplicando métodos matemáticos, ele passou 4 meses calculando a previsão do tempo daquele único dia. Ao chegar em resultados, percebeu que eles estavam majoritariamente corretos. Richardson foi uma das primeiras pessoas que acreditou que o mundo poderia ser reduzido a dados e, assim, poderia ser numericamente compreendido e modelado (BRIDLE, 2018), já que “talvez algum dia no futuro sombrio seja
possível avançar os cálculos mais rapidamente do que o tempo e com um custo menor que toda a economia da humanidade devido às informações obtidas. Mas isso é um sonho» (RICHARDSON, 2007)3. A tecnologia evoluiu e o sonho de Richardson tornou-se realidade. Ainda que a construção de bases de dados não seja algo exclusivo do presente, as novas tecnologias oferecem um campo de discussão para que o termo seja reconhecido como um fenômeno diverso da simples construção de uma base de dados. O fenômeno do Big data pode ser definido como um ativo de informações caracterizado por seu grande volume, sua grande variedade de informações e sua alta velocidade de tratamento, o que requer tecnologias e métodos analíticos específicos para sua transformação em valor agregado (MAURO; GRECO; GRIMALDI, 2016).
A presença do Big Data se tornou palpável a partir do momento em que a internet penetrou no dia-a-dia da população mundial e as pessoas passaram a disponibilizar seus dados na rede, facilitando seu recolhimento e seu acúmulo. Algo que antes demandava um custo considerável para mobilização de pessoas, hoje toma a forma de alguns cliques no ambiente virtual que são realizados de forma espontânea pelo próprio usuário. Big Data tornou-se um ramo de negócios bilionários, constatado nas listas das marcas mais valiosas do mundo4.

Vale ressaltar que o fenômeno tem como protagonistas os grandes processadores de dados e os algoritmos. Ao se questionar o que são códigos e algoritmos, Accoto (2017) entende que, apesar de serem estruturas que constituem as plataformas, não funcionam como meras ferramentas que facilitam a interação online e sim como tecnologias performativas e orientadas a projetar o futuro. Dito de outra forma, a princípio o código não é utilizado unicamente para gravar ou armazenar informações, mas orienta uma dupla ação (do código para a máquina e da máquina para o mundo). O código não é concebido em termos do que aconteceu (como nas narrativas literárias, televisivas e cinematográficas), mas para produzir o que está prestes a acontecer. Enquanto isso, algoritmos coletam, analisam, agrupam e transmitem informações segundo um sistema lógico e logístico próprio, ligado ao modelo de negócios das operadoras das plataformas que moldam como a sociedade se organiza.

Observando as chamadas Big Five do campo da tecnologia: Alphabet, Apple, Amazon, Microsoft e Facebook (DIJCK, 2018) ou Big Nine, se considerarmos também IBM e as chinesas Tencent, Baidu e Alibaba, elas detém poderes cada vez mais similares aos de governos e nações, regendo escolhas de milhões de pessoas (sem terem sido eleitas para isso), operando plataformas que funcionam como os pilares de uma megaestrutura de conexões e camadas.

Van Dijck et. al. (2018) as denomina como plataformas infra-estruturais, pois funcionam como guardiões dos portões5 da internet (no inglês, “internet gatekeepers”), fornecendo ferramentas e serviços (gerenciamento, processamento, armazenamento e canalização) que estruturam o fluxo informativo: motores de busca, web browsers, data servers e computação na nuvem, e-mail e mensagem instantânea, redes sociais, redes de propaganda, lojas de aplicativos, serviços geoespaciais e de navegação, etc.

Portanto, a infraestrutura física – seja ferroviária, rodoviária, sistemas de tráfego, aéreo ou de comunicação – que, historicamente, previa uma mistura de investimentos públicos e privados para a sua construção, com as plataformas digitais, no ocidente, torna-se privada. Com a transição da infraestrutura econômica-social do físico para o digital, do público para o privado, essas plataformas penetram e reconfiguram as estruturas institucionais estabelecidas.

Em entrevista para a newsletter DigiLabour6, a autora José Van Dijck resume como o processo de plataformização afeta o setor de desinformação:

[…] As grandes plataformas operadas por Facebook e Google assumiram a distribuição de informação sem assumir as responsabilidades que vêm tradicionalmente com as organizações que produzem conteúdo. O Facebook e o Google efetivamente causaram a “desagregação” e o “reagrupamento” do conteúdo de notícias, das audiências e da publicidade. Essas duas empresas juntas controlam o mercado de publicidade e a distribuição de notícias personalizadas. Elas não apenas atrapalham os modelos de negócios das organizações jornalísticas, mas também abalaram os próprios valores e normas em cima dos quais o jornalismo é construído: independência, precisão, accountability, entre outros. O Facebook não se considera uma empresa de mídia e, graças a uma grande falha na lei dos Estados Unidos (seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações, de 1996), não pode ser responsabilizado pela distribuição de discursos de ódio, desinformação e outros tipos de poluição no mundo conectivo. a arquitetura imposta pela plataforma também acarreta grandes repercussões na organização do trabalho jornalístico: assim como a Uber tem motoristas que “não são seus”, os produtores de conteúdo estão cada vez mais separados das organizações midiáticas. As empresas de plataforma preferem contornar as instituições, promovendo a conectividade entre indivíduos e consumidores privados, minando, desta forma, a coletividade e os valores públicos.

Para compreender as transformações qualitativas promovidas pelas plataformas no setor de notícias é preciso entender a articulação de três mecanismos inerentes a elas e decisivos para os atores envolvidos: dataficação, comoditização e seleção (ou curadoria). Ao longo do tempo, o impacto desses mecanismos ocasiona uma reconfiguração da lógica conteúdo-audiência-publicidade, que se caracteriza do seguinte modo: organizações de notícias produzem um conteúdo supostamente justo e compreensivo para uma audiência que deseja se manter informada; o acesso a esta é de interesse de empresários e do mercado publicitário que, por sua vez, dão
aporte financeiro às organizações de notícias em troca de espaços para promoção da marca. A dataficação é esse mecanismo que possibilita que a plataforma, em rede, transforme em dados quantificáveis aspectos do mundo. Nesse sentido, interações do usuário nas plataformas digitais podem ser capturadas, algoritmicamente processadas e empacotadas em perfis, permitindo a elaboração de modelos de previsão e análise de comportamento em tempo real. A dataficação intensifica o processo de comodificação, que é a capacidade da plataforma em transformar objetos, atividades, emoções e ideias em commodity (à medida que a massa de dados é coletada e processada, oferece insights sobre interesses, preferências e necessidades dos usuários). Por fim, a conexão dos dois primeiros com o mecanismo de seleção (ou curadoria), permite a combinação de usuários com serviços personalizados e propaganda. É perceptível que, para as plataformas, dados pessoais dos usuários são a base do seu negócio. Conhecendo seus clientes, as redes sociais conseguem criar uma navegação personalizada individual, onde a linha do tempo contém os principais interesses e as informações mais importantes para o dia-a-dia de cada um dos usuários, baseados em suas personalidades, suas escolhas e suas individualidades. a personalização acontece, principalmente, a partir de dois filtros informacionais: arquitetura de controle e micro direcionamento – ambos alimentados por dados pessoais.

Sob a ótica da teoria de Sunstein (2017), a primeira utilização de dados pessoais que cabe destacar é no que se denomina arquitetura de controle. Sem a curadoria de um jornal para decidir o que é publicado diariamente ou o que é anunciado nos telejornais, ao internauta é permitido focar sua atenção nos seus interesses mais diretos através de um design de comunicação exclusivo. Se ele deseja saber tudo o que acontece no mundo futebolístico ou na retirada das tropas Americanas do Afeganistão, por exemplo, ele escolhe ser exposto, por meio de seu newsfeed, apenas a notícias relaciona- das a esses dois temas. Automaticamente, uma consequência é a exclusão de antemão de notícias indesejadas que sequer chegam ao seu conhecimento.

Vale ressaltar o fato de que, apesar da arquitetura de controle relacionar-se às possibilidades permitidas aos usuários de efetuarem escolhas para as informações que deseja ter acesso (através do aprofundamento e interesse a certos nichos e afastamento de outros), a personalização é executada por terceiros e não pelo usuário, na medida em que algoritmos tratam os dados pessoais e automatizam suas decisões criando um padrão de navegação e comportamento (CORMEN, 20009; SUNSTEIN, 2017). Não obstante, quando efetuada uma escolha durante a navegação, o algoritmo trabalha em cima desse rastro de informação e passa a filtrar temas relacionados aos que os dados pessoais indicam ser desejados, guiados pela probabilidade e pelo padrão de comportamento do usuário.

Somado à personalização feita diariamente através do tratamento dos dados pessoais pelos algoritmos, redes sociais disponibilizam outra ferramenta de personalização informacional: os anúncios patrocinados.

Os anúncios patrocinados são disponibilizados através de uma ferramenta que determina parâmetros para atingir os alvos preferidos da melhor maneira possível. Para os anunciantes é permitido direcionar a publicidade com base em múltiplos critérios: objetivo, público, formato do anúncio e posicionamento7. A aplicação de métodos para retirar informações padronizadas, organizadas, estatísticas e análises sobre Big Data fomentou o desenvolvimento de empresas especializadas no serviço, chamadas de corretores de dados (no inglês “data brokers”). Essas empresas fornecem esse serviço aos anunciantes que com as informações confeccionadas efetivam suas estratégias pela ferramenta da rede social.

Os corretores mineram dados (no inglês “data mining”) de uma quantidade de fontes, podendo ser de bancos de dados públicos ou privados, e vendem serviços para o marketing de produtos e propagandas direcionadas geradas através de pontuações analíticas, classificações e perfilização8 (ou no inglês “profiling”). Aparentemente, para essas empresas a riqueza das informações é um fator central para seus negócios, já que utilizam-se de informações publicadas espontaneamente nas redes sociais para cruzá-las com bases de dados públicos, como o Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE), com bases de dados próprias e com bases de dados de seus clientes, desenvolvendo estratégias para serviços de âmbito comercial como política em campanhas eleitorais9.

Com isso, candidatos ou partidos têm a oportunidade de segmentar sua propaganda e alcançar cada potencial eleitor em cada canto do território. Por exemplo, se em determinada região é crescente a preocupação com o tema da violência, ali podem se dirigirem propostas armamentistas ou propagandas negativas quanto ao desarmamento, tornando possível a conversão de eleitores individualmente detectados como “em dúvida” em apoiadores da pauta. Os corretores, após aplicarem métodos analíticos, extraem informações detalhadas que são utilizadas para definir a estratégia de marketing, seja política ou de consumo.

As estratégias e os métodos cada vez mais refinados de direcionamento das propagandas na rede geraram o termo, micro direcionamento (no inglês “microtargeting”) de mensagens ou propagandas individualizadas para perfis identificados como mais suscetíveis a consumir a informação veiculada. Diferentemente das propagandas que buscam consumidores e eleitores de forma uniformizada e abrangente (como as veiculadas nos canais televisivos), este direcionamento contém um grau considerável de individualização e personalização, sugerindo que o anunciante seja capaz de preencher expectativas íntimas do receptor da mensagem.

Arquitetura de controle e micro direcionamento, apesar de distintos, são dois lados de uma mesma moeda: filtros bolha que personalizam e isolam a experiência do usuário, a partir de seus dados (com base nos históricos de busca e cookies), para que este seja exposto somente a conteúdos que deseja. Sunstein (2017) argumenta que apesar das escolhas serem incumbidas aos usuários da plataforma, a maio-
ria pode não compreender o real poder que os provedores das informação têm para exercer o filtro algorítmico. A consequência é o fechamento dos usuários em segmentações de pessoas com pensamentos e ideias de mundo semelhantes, com informações de mesmo viés que não encontram oposição ou contradição. Como será detalhado mais à frente, esse cenário pode resultar em fragmentação social.

3.O predomínio da soberania do consumidor nas interações dentro das plataformas

3.1.A soberania do consumidor

Como explorado nos parágrafos anteriores, ofício das redes sociais é capturar o olhar dos usuários mediante técnica de marketing e extrair dados pessoais[id=10]. O tempo de atenção capturada é diretamente proporcional ao volume de dados coletados e exposição a anúncios personalizados. Plataformas tornaram-se comerciantes de atenção[id=11], fazendo com que consumidores acreditem que seus serviços são gratuitos quando, na verdade, estão sendo pagos não só com sua atenção como também com seus dados privados[id=12].

Os atrativos da tecnologia são considerados, pelos consumidores, como facilitadores cotidianos. No entanto, o objetivo das companhias é “aumentar o tempo no site” e o “número de visualizações”[id=13], a fim de maximizar a aproximação anunciante/consumidor e para coletar mais dados pessoais. Sobre o funcionamento da rede social prevalece o que Sunstein (2017) denomina soberania do consumidor. Esta relaciona-se à faculdade do consumidor de procurar apenas pelo que lhe interessa e de enxergar apenas o que deseja, dentro de um cenário de livre mercado, sujeito às variáveis de oferta, demanda e sistema de preços, bem como de suas reservas financeiras e exigências.

Sob essa ótica impera a personalização promovida pela arquitetura de controle e o microdirecionamento. Eric Schimdt, ex-CEO do Google, assim previu, em 2010, ao dizer que o poder do direcionamento individual de informação faria com as pessoas encontrassem dificuldade em assistir ou consumir aquilo que não fosse feito sob medida para elas14. Sem prejuízos maiores, chamar a atenção dos olhos dos consumidores para um ou outro produto não demanda conformação coletiva a respeito de um ou outro assunto, apenas cumprimento de uma vontade individual.

O problema, no entanto, revela-se quando as plataformas, sob o funcionamento da lógica do interesse do consumidor, pretendem participar da vida ativa da política mundial como ambiente passível de propagandas eleitorais e como arena de debate político. O contexto político, principalmente nas épocas de eleições, não segue a soberania do consumidor, mas sim, o que Sunstein (2017) intitula como soberania política, que caminha em direção oposta à soberania do consumidor.

3.2.Consequências do predomínio da soberania do consumidor nos contextos político-eleitorais

Ao ambicionar o potencial de monetização que os anúncios de propagandas políticas poderiam proporcionar, plataformas deixaram de olhar para as diferenças entre a relação anunciante/consumidor e a relação candidato/eleitor. Os filtros que podem ser ambicionados no mundo do consumo, podem trazer consequências à democracia no contexto político.

Vale citar aqui a fragmentação, que promove a formação de agrupamentos de discurso onde membros falam apenas entre si e ouvem informações daquele limitado círculo social, podendo resultar na impossibilidade de construção de entendimentos comuns entre grupos heterogêneos de eleitores. Assim, quando a informação não é compartilhada de maneira uniforme entre os diversos grupos que compõem uma sociedade, são impostos obstáculos na construção de debates sobre premissas para o entendimento comunitário. Se trata do debate sobre um terreno de premissas, as quais podem e devem ser defendidas e/ou criticadas. As chamadas publicações ocultas (ou no inglês “dark posts”) são exemplos dessa situação: um mesmo candidato impulsiona propagandas com informações divergentes para grupos distintos, sabendo que a segmentação impossibilita levar a público a divergência entre as informações disseminadas[id=15].

Essas fragmentações, por mais que sejam difíceis de serem rastreadas, foram comprovadas por vários estudos conduzidos tanto na plataforma do Youtube quanto do Twitter, em que se concluíram que a segmentação oferece certa proteção aos disseminadores de informações adulteradas.

“É importante perceber que esse fenômeno guarda relação com a modificação no polo produtor de campanha negativa, pois, historicamente, a veiculação de ataques aos adversários era concentrada na comunicação oficial de candidatos e partidos, o que os inibia razoavelmente de produzir notícias falsas contra os rivais. Quando grupos não oficiais assumem a produção de campanha negativa, a criação de fake news passa a não sofrer os mesmos riscos, já que não se consegue comprovar facilmente a ligação desses agrupamentos às coligações oficiais” (JOATHAN, ALVES, p. 5 2020)

Outros problemas decorrem desse cenário, visto que a informação atinge grupos fragmentados, tendendo a um aumento da desinformação, uma vez que o público geral e os órgãos reguladores não têm acesso ao que circula nos pequenos agrupamentos e fragmentações (VOSOUGHI; ROY; ARAL, 2018). Não há um conceito único para desinformação (WARDLE, DERAKHSHAN, 2017), e o problema deste fenômeno se dá entre a produção e a distribuição de conteúdos – que pode se dar desde informações individuais vinculadas de forma tendenciosa até manobras mais robustas para manipular a opinião pública com base em fatos fabricados ou falsificados. Aqui vale destacar que a desinformação veiculada por propaganda política explícita (com nome e partido) é mais facilmente combatida, uma vez que a transparência de sua veiculação permite conhecer sua origem e, consequentemente, punir em certa amplitude seu criador. Todavia, o micro direcionamento serve à desinformação disseminada por páginas e perfis falsos, por exemplo, da qual retira-se o caráter de propaganda e é capaz de aumentar sua credibilidade perante os eleitores[id=16].

Perspectivas opostas – com dissenso, inclusive, em relação a fatos e não apenas opiniões – podem fomentar a polarização e a radicalização de grupos. Estudos indicam que deliberações em grupos de pessoas com pensamentos iguais tendem a mover seus membros para os extremos do ponto de vista original do grupo.

“Como a internet facilita o encontro de pessoas com pensamentos semelhantes, ela pode facilitar e fortalecer comunidades que têm uma ideologia em comum de pessoas dispersas geograficamente. Assim, físicos, enófilos, fãs de Star Trek e membros de grupos de milícia usam a internet para trocar informações e alimentar as paixões uns dos outros. Em muitos casos, os diálogos aquecidos podem nunca atingir a massa crítica do restante da sociedade. Uma vez que indivíduos com ideias semelhantes se localizam, suas interações subsequentes podem polarizar ainda mais seus pontos de vista ou até mesmo provocar chamadas por ações concretas”i[d=17](ALSTYNE; BRYNJOLFSSON, 1997).

Por fim, aparenta ser um problema não compreender como a liberdade relaciona-se de maneira distinta com as esferas dos consumidores e dos cidadãos. Se a soberania do consumidor prevalece no contexto de disputas políticas, maximizada pela personalização de sua timeline, a liberdade é compreendida como a satisfação de preferências privadas, sem restrições às escolhas individuais. Em contrapartida, na esfera do cidadão, a liberdade é compreendida como a satisfação das preferências coletivas e públicas.

Esse cenário não escapou aos olhares dos estrategistas políticos. a campanha eleitoral de Donald Trump, em 2016, ficou marcada pela atuação da Cambridge Analytica, empresa de aná- lise de dados pessoais comportamentais para direcionamento de propagandas com a finalidade de persuadir eleitores para o candidato[id=18].

Na campanha do republicano, a empresa executou um programa de comunicação estratégica utilizando técnicas de análise de personalidade para estimular e manipular os eleitores indecisos ao voto. A coleta dos dados pessoais foi feita por meio de uma aplicação no Facebook denominada “essa é sua vida digital” (no inglês “thisisyourdigitallife”) que distribuiu um questionário – sobre orientação política, QI, religião e temas de interesse – para aproximadamente 320 mil pessoas.

Para responder, o usuário autorizava o acesso ao seu perfil pessoal e, em troca, recebia quantias de 2 a 5 dólares. O escândalo formou-se, no entanto, quando se descobriu que a aplicação não apenas acessou o perfil dos usuários que a autorizaram como também os perfis de toda a rede de amizade: 50 milhões de usuários tiveram seus dados coletados pela Cambridge Analytica sem consentimento ou conhecimento[id=19].

Os dados coletados pela empresa foram utilizados para a combinação de dois elementos: perfilização baseada em elementos de psicologia e psicográficos e micro direcionamento.

Segundo Christopher Wylie, programador da empresa durante a campanha, os dados permitiram que fossem construídos perfis psicológicos da quase totalidade de eleitores nos Estados Unidos[id=20]. No total, aproximadamente 7.000 informações por pessoa foram utilizadas para a categorização dos perfis em 5 conceitos do chamado OCEAN: abertura, consciência, extroversão, agradabilidade e neuroticismo[id=21]. Após a perfilização (ou profilização), se direcionava individualmente propagandas para as pessoas mais suscetíveis em assimilar a informação, o que era feito levando-se em conta o formato, o conteúdo, o tom e a reação e também a quantidade de vezes que a informação deveria ser bombardeada para capturar o indeciso.

Ao invés do discurso em praça pública passível de escrutínio pelo amplo público, sussurrou-se dentro do ouvido de cada eleitor informações personalizadas, moldadas para sua manipulação, sem que o restante do público tivesse conhecimento[id=22]. Apesar de ser um tópico de importante discussão, este artigo não entra no mérito de como a perfilização psicométrica funciona, apontando apenas este grau de perfilização sem consentimento ou conhecimento do usuário pode ser encarado como uma violação da autonomia individual.

A Cambridge Analytica criava conteúdos sob medida para os segmentos de eleitores que visava capturar. Essa estratégia tinha o objetivo de fazer com que os eleitores fossem tragados, segundo Makri, Buckley (2020), para dentro do buraco do coelho (em inglês “down the rabbit hole”). Isso significa que os conteúdos criados eram personalizados para os desejos do eleitor e uma vez em contato, ele era incentivado a seguir por um caminho de novos conteúdos, todos personalizados para modificar sua visão de mundo e consequentemente manipular sua opinião política. Uma vez dentro do buraco, o eleitor dificilmente encontra saídas para ou-
tros caminhos de percepções opostas.

4.Ambiente virtual saudável: a busca pela soberania política

4.1.O que é a Soberania Política e como seu impacto molda sociedades democráticas

Em uma democracia, é prudente que a ideia de soberania política se contraponha à ideia de soberania do consumidor. a primeira não prioriza interesses pessoais como prefixados. Quando políticos estão vendendo suas mensagens ou a si próprios como mercadorias, estão tratando o domínio público como mercado, sujeito às mesmas variantes de demanda, oferta e preço.

Se no processo eleitoral, a soberania do consumidor é considerada, a questão relevante é se os consumidores estão tendo o que querem ou não. Sunstein (2017) aponta que a noção de soberania política sustenta uma alternativa democrática, a qual desafia o individualismo inerente à soberania do consumidor[id=23]. Na arena do debate público é importante que à ideia e à informação sejam dadas a oportunidade para que se espalhem de forma orgânica e se tornem propriedades da multidão. Para isso, é necessário que os métodos e as condições de debate, discussão e persuasão sejam aperfeiçoados (DEWEY, 2012).

A soberania política é construída sobre diferentes bases, já que o processo político molda o desejo de uma sociedade – como indivíduos e como comunidade – que toma decisões coletivas. a soberania política parece se tornar, assim, um requisito para que o povo governe por meio da discussão e da deliberação, ou seja, informações devem ser prestadas e discutidas mesmo quando sob intenso conflito (SUNSTEIN, 2017). Se leis e políticas são “consumidas” do mesmo modo que se compra outros produtos, a própria ideia de soberania política está sob risco. Como consumidores diferem de cidadãos, as escolhas dos primeiros resultam em  um entendimento insuficiente sobre os problemas públicos e dificultam a formação de uma cultura de decisões tomadas de forma coletiva.

Quando os cidadãos ponderam sobre os deveres de uma nação, diferentemente do que cada consumidor deve comprar, coloca-se em jogo a definição de objetivos maiores, que devem ser considerados a longo prazo. É no processo democrático que cidadãos podem empreender esforços para driblar obstáculos da convivência social (SUNSTEIN, 2017). Segundo Louis Brandeis, ex-juiz da Suprema Corte norte-americana, uma das grandes ameaças para a liberdade são as “pessoas inertes”, pois a discussão pública não é apenas um direito como também um dever de engajamento. Isso significa que as pessoas possuem, como cidadãos, direitos e deveres para garantir que as forças deliberativas prevaleçam sobre as arbitrárias.

Para a realização dos direitos e dos deveres dos cidadãos, um sistema de comunicação democrático e o acesso à informação são engrenagens centrais. Ao contrário da soberania do consumidor, a liberdade política em uma democracia, consiste na chance das preferências e crenças individuais serem formadas sob condições construídas perante a exposição de quantidade suficiente de informação, assim como um conjunto de opiniões e opções divergentes. Em um paralelo entre o ambiente virtual e o que Sunstein (2017) denomina fóruns públicos (public forums), o autor propõe que algumas características desses fóruns sejam transferidas para o ambiente virtual para que neste a soberania política possa prosperar. O compartilhamento e exposição de experiências e informações são dois requisitos para a concretude de um ambiente de debate político e de efetividade da cidadania. Ambos são, também, instrumentos de amplificação do acesso à informação, plural e contraditória, e de integração social.

Um ambiente que se dispõe a ser um fórum de discussão política e uma arena para o compartilhamento das informações e das propagandas do processo eleitoral, como as plataformas de redes sociais se dispõem a ser, pode garantir um sistema de comunicação que se empenhe em atingir princípios democráticos básicos, como a integração social e não a fragmentação. Para tal, o compartilhamento de experiências comuns é a primeira característica que o fórum de discussão política deve projetar. A soberania política demanda dos cidadãos uma dedicação e um entendimento para além de suas aspirações íntimas. Essa demanda transparece durante os períodos de grandes deliberações pelo povo, sendo os principais os períodos eleitorais. Durante estes, o acesso à informação é especialmente relevante na medida em que os eleitores devem enxergar e entender
suas opções para efetivarem suas escolhas de forma democrática. No debate político, as informações devem ser apresentadas de maneira ampla e universal para que os eleitores tenham acesso a informações apresentadas pelos candidatos e partidos políticos. Nos fóruns públicos, argumenta Sunstein (2017), o acesso à informação possui dois ângulos distintos: o daqueles que falam e o daqueles que recebem a mensagem. Para os primeiros, os oradores, o ambiente de debate político deve assegurar acesso aos mais heterogêneos ouvintes. Para estes, deve garantir exposição pública e simultaneamente compartilhada aos diversos oradores com suas distintas propostas e visões de mundo.

Sob o ângulo dos ouvintes, os eleitores, a ex- posição aos oradores e suas mensagens deve ser simultaneamente compartilhado, visto que se reserva o direito de conhecer as mesmas informações que os demais e de tomar decisões baseadas sobre elas. Além disso, para a concretude da liberdade política, as informações devem ser amplamente disponíveis e dos mais varia- dos espectros ideológicos. Somente alcançando o maior número de pessoas heterogêneas de forma simultânea e compartilhada poderá ser construído um debate sobre premissas, fatos e problemas a serem enfrentados coletivamente. a discussão é benéfica uma vez que o conheci- mento é limitado. Ninguém sabe tudo o que o outro sabe ou consegue fazer as mesmas reflexões e inferências. O debate é o caminho para a combinação de informações e amplificação do alcance dos argumentos (RAWLS, 1971).

4.1. Micro Ativismo nas redes sociais como forma de mobilização política online

Dentro da lógica de soberania do consumidor, o direcionamento da atenção do usuário é dependente de padrões de consumo. Ou seja, o poder de agenda-setting (de definir a pauta das discussões online e portanto de influenciar significativamente os temas de debate da esfera pública), são aquelas figuras que já estão inseridas nas cadeias de distribuição de atenção das redes sociais. Assim, ao invés da pauta e informações virem dos agentes políticos e dos canais de comunicação, eles precisam passar por figuras já inseridas nesse ecossistema, que são pontos focais de conteúdo e agendas. Por isso que na era atual tantos “influenciadores” surgem como autoridades e fontes de informação em temas que não dizem respeito direto à seus métiers e vemos tantos agentes políticos se tornarem, também influenciadores. O espaço de debate político fica submetido à lógica coletiva de soberania do consumo, pois o cidadão é um usuário.

A soberania popular precisa estar intrinsecamente atrelada à atenção. Esta é a chave para qualquer movimento social diante da lógica das redes sociais, na atualidade. Os atores de movimentos sociais precisam gastar grande parte do seu tempo para tentar trazer engajamento para suas pautas políticas e suas informações, dentro da Internet, uma vez que, uma das grandes máximas deste ambiente é a associação da atenção como sendo diretamente proporcional à importância do tópico. Em outras palavras, caso as redes sociais não estejam falando sobre tal questão, ela parece não ter tanta relevância dentro da opinião pública
(TUFEKCI, 2013)[id=24].

A economia da atenção para questões políticas relevantes depende de atores capazes de captar a atenção de um público cativo. Estes são denominados de microcelebridades ativistas, pessoas politicamente motivadas que usam as redes sociais para envolver um público acerca de temas políticos e sociais, chamando a atenção para pautas que precisam ser discutidas. Elas tendem a surgir, principalmente, em cenários de movimentos sociais, fazendo reportagens e comentários importantes e garantindo atenção internacional para a causa.

As microcelebridades ativistas trazem um maior engajamento político da população que os acompanha, trazendo opiniões relevantes para problemas que, antes, poderiam ter passado despercebidos, mas que ganharam
uma importância dentro da opinião pública. Elas abrem caminho para grupos que foram excluídos, até mesmo, pelo poder público, ou pertencentes a grupos pequenos e seletos ainda sem grande repercussão. Eles são essenciais, por exemplo, em países dominados por regimes repressivos, onde pretendem “salvar vidas” através da atenção internacional. Portanto, sua principal característica é trazerem atualizações políticas, testemunhos e documentos relevantes e têm importância ímpar dentro dos contextos políticos atuais.

4.3.Alternativas para o horizonte brasileiro

A internet e seus ambientes virtuais são espaços de ideias e, recentemente, de debate político. Como observado por Anthony Kennedy, os pensamentos não são modificados nas ruas e nos parques como foram um dia. O alcance do direito público de participar nesses meios de comunicação pode ser modificado ao longo das evoluções tecnológicas[id=25].

Com aproximadamente 203 milhões de habitantes[id=26] e 156 milhões de eleitores[id=27], estima-se que os brasileiros passem mais de nove horas por dia na internet[id=28], sendo o quarto país em número absoluto de usuários – mais de 130 milhões de internautas[id=29]. Ainda, pesquisa Datafolha de outubro de 201830 apontou que 68% dos eleitores possuem conta em alguma rede social. Para as eleições gerais de 2018 e, depois, de 2022, as instituições brasileiras tomaram decisões que impactam diretamente o ambiente virtual para o pleito. Três merecem destaque (SANTOS, VARON, 2018).

A primeira foi a declaração de inconstitucionalidade de contribuições por pessoas jurídicas para campanhas eleitorais. Isso diminuiu o acesso aos recursos financeiros e incentivou as campanhas a buscarem alternativas mais baratas de propaganda31. a segunda foi a reforma eleitoral de 2015, a qual diminuiu o tempo de campanha de 90 dias para 45 dias[id=32], e para 35 dias a duração das propagandas em rádio e televisão. A terceira foi a reforma eleitoral de 2017, que possibilitou a veiculação de propaganda paga na internet, desde que “identificado de forma inequívoca como tal, é contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes”[id=33]. Tais condições legais combinadas com as condições sociais expostas acima, orientaram e orientam a atenção das campanhas e dos eleitores para a Internet. No contexto das eleições de 2018, não havia sido aprovada uma lei de proteção de dados pessoais, o que resultou em um espaço propício para as empresas especializadas na corretagem e análise de dados pessoais. Muitas delas impor-
taram um modelo de negócio semelhante ao da Cambridge Analytica, como a Ponte Estratégia.

Seu CEO e fundador, André Torreta, afirmou em entrevista, durante a pré-campanha de 2018, que a empresa recolhe dados pessoais de diversas fontes: disponíveis em serviços públicos, como o IBGE; fornecidos por seus clientes; e disponíveis em redes sociais e terceiros, como a Serasa Experian – maior conjunto de dados pessoais da América Latina (SANTOS, VARON, 2018) e também agente no ramo de propagandas e marketing político. Em seguida, sobre essa base, pesquisas qualitativas e quantitativas são empregadas para a análise de público-alvo. Sobre este, por sua vez, são efetivadas estratégias de propaganda segmentada para a persuasão da opinião política de acordo com características como “Valores”, “Sociabilidade”, “Personalidade”, “Frames etno-culturais”, “Apetência e aversão”, dentre outros[id=34]. Para isso, a empresa consegue “entregar a mensagem correta com a linguagem correta” (SANTOS, VARON, 2018). Eleitorais de 2018 declararam, oficialmente, um montante de 77 milhões de reais para impulsionamento de propagandas na internet. Desse total, 80,% foi destinado ao Facebook35. a título de exemplo, metade dos deputados federais eleitos declararam gastos com impulsionamento de propagandas[id=36]. A plataforma do Facebook, portanto, do modo que se dispõe a funcionar atualmente (sob a ótica da soberania do consumo), vai contra com o que Sunstein (2017) apresenta como atributo dos bons fóruns de debate político. Sua arquitetura de controle e os anúncios micro direcionados induzem os cidadãos a limitar seus horizontes ao invés de permitir que eles busquem por novas fronteiras e visões de mundo. Esse formato da plataforma demonstrou-se insuficiente para o contexto político eleitoral, como deixou evidente o escândalo da Cambridge Analytica. A manipulação para o consumo tornou-se a regra para a manipulação do jogo eleitoral. De 2018 para 2022, um primeiro passo dado pelo Brasil foi a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – “L13709”)[id=37]. No entanto, durante o processo eleitoral de 22, o que se viu foi uma autoridade de proteção de dados, a ANPD, ainda em construção e que pouco havia caminhado para construção robusta de mecanismos regulatórios para proteção de dados. Nesse sentido, sua atuação limitada ainda não permitiu observar estágio mais avançado de aplicação da legislação no Brasil. a autoridade trabalhou em diálogo com o Tribunal Superior Eleitoral e publicou mate- riais mais em âmbito orientativo e educativo, ficando a justiça eleitoral responsável pela fiscalização e aplicação de sanções[id=38].

A efetiva aplicação da LGPD deve dificultar a atuação tanto da rede social, quanto das empresas terceiras, no que se refere à criação e utilização de seus bancos de dados. O princípio da transparência[id=39] deve aumentar o conhecimento dos titulares de dados sobre os algoritmos do Facebook e de sua arquitetura de controle e quais impactos eles acarretam. Além de dar conhecimento sobre as propagandas impulsionadas, suas origens, seus autores e as finalidades do direcionamento. A autodeterminação informacional[id=40], por sua vez, entrega ao titular o poder sobre seus dados: quais podem ser utilizados, como podem ser utilizados e para quais finalidades. Assim, as segmentações por perfis podem ser melhor compreendidas e controladas pelos titulares, inclusive contra abusos. a eles também caberá a decisão sobre quais dados podem ser utilizados em propagandas e nos direcionamentos de anúncios. Por exemplo, o gosto musical de um indivíduo pode refletir suas preferências políticas? Os bancos de dados de aplicativos de música podem ser utilizados para propagandas político-eleitorais?

Os princípios da legislação ensejam encurtar a distância entre os titulares e os operadores dos dados pessoais, tanto a distância informacional quanto a distância técnica relacionada ao complexo funcionamento da tecnologia.

A janela entre 2018 e 2022 fez com que o debate sobre a transparência transbordasse da esfera apenas da proteção de dados pessoais, atingindo o ambiente digital e as plataformas de mídias sociais como um todo. O impacto da desinformação em torno da pandemia do Covid-19, fez se iniciar no Brasil o debate sobre a regulação das plataformas digitais, com o Projeto de Lei 2.630 de 202041. A desinformação ganhou holofotes cada vez maiores, alçada ao grande desafio imposto nas eleições em todo o mundo. No Brasil, o processo de 2022 foi marcado pela utilização da desinformação como estratégia construída para questionar urnas eletrônicas, atacar instituições, como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral e pedir intervenções autoritárias contra o regime democrático (BERNARDI, 2021). De novo, as redes sociais e sua arquitetura tiveram lugar central no contexto, sendo utilizadas para divulgação maciça de conteúdos e organização de atos antidemocráticos.

Até o momento a proposta não foi aprovada, mas passou por inúmeras audiências públicas e debates, tendo seu texto evoluído em grande parte. Sem querer aprofundar em suas características, merece atenção o destaque dado para as obrigações de transparência para as plataformas, especialmente no que diz sobre moderação de conteúdo, mecanismos de recomendações, algoritmos e riscos. Esta mesma linha se mantém no debate sobre a regulação do uso da Inteligência Artificial, que no Brasil se mostra de forma mais evidente no Projeto de Lei 2.338 de 2023[id=42]. Isso mostra a grande opacidade em torno das operações das empresas de tecnologia. Somadas as transparências de dados, dos mecanismos das plataformas, dos algoritmos e das tecnologias de Inteligência Artificial, o eixo se mostra como medida urgente e basilar para avanços contra crises futuras.

Uma segunda alternativa seria repensar o micro direcionamento de propagandas patrocinadas, principalmente de conteúdo político. Na esfera da autorregulação, as próprias empresas podem repensar o funcionamento das propagandas em suas plataformas. Além disso, na esfera regulatória, cabe repensar a reforma eleitoral de 2017 que permitiu o impulsionamento de propaganda política paga na internet e sua consequente regulamentação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Conteúdo impulsionado releva-se uma forma perversa de disseminação de informação. Como visto, as segmentações do eleitorado em pequenos grupos combinado com técnicas de psicometria permitem que campanhas dialoguem com pequenos alvos de seu eleitorado, destinando mensagens exclusivas a eles. Essas informações e esse modelo de comunicação não são democráticos[id=43]. A soberania política, ao contrário, clama por amplo acesso à informação e o amplo debate sobre experiências compartilha- das. As propagandas pagas na internet podem existir, mas devem ser públicas e com grau ainda mais elevado de transparência.

Por fim, uma regulamentação mais aprofundada pode ser levada em conta para que o espaço seja melhor compartilhado, tanto entre os  eleitores como entre os candidatos e partidos. a circulação do conteúdo, sobretudo em eleições, deve ser inclusiva, ampla e plural, sem segredos. Os objetivos democráticos devem ser perseguidos nos ambientes que se dispõe a ser um fórum de debate público sobre políticas.

5. Conclusão

Todo tirano sabe que é importante, e muitas vezes possível, não apenas restringir as ações das pessoas, mas também os seus sentimentos, por meio do medo, de discursos tendenciosos e da limitação de acesso à informações (SUNSTEIN, 2017). Ao longo do presente trabalho, os dados pessoais foram analisados como a sustentação dos filtros de personalização da realidade virtual das redes sociais: arquitetura de controle e micro direcionamento de propagandas. Esses instrumentos servem à soberania do consumidor, conceito de Cass Sunstein, que predomina nas interações da rede social. a liberdade do consumidor resume-se a satisfazer seus interesses íntimos, individuais e instantâneos.

Assim como Richardson percebeu que os dados permitem compreender o mundo e prever seu comportamento, as redes sociais perceberam que os dados pessoais de seus usuários permitem compreendê-los e, ainda, permitem traçar estratégias para induzi-los em seus comportamentos futuros.

Nesse cenário de exploração de dados pessoais e soberania do consumidor, a democracia só tem a perder. Uma vez que a plataforma é compreendida como um fórum de discussões políticas e um ambiente para as propagandas eleitorais, Sunstein observa que a soberania política deve substituir a do consumidor. Os cidadãos eleitores devem ser expostos a experiências compartilhadas e comuns, que realcem a interação social, e não a informações personalizadas que os fragmentem. O debate democrático clama pelo acesso amplo às informações e essas devem representar toda a heterogeneidade de uma sociedade. As decisões políticas devem representar a vontade do coletivo. O governo pela deliberação deve prevalecer sobre o governo arbitrário.

Ao cabo, algumas ponderações sobre o cenário brasileiro mostraram-se pertinentes.

Primeiro, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais deve garantir a transparência nas relações titulares/operadores e uma regulação de plataformas deve jogar luz ao funcionamento das plataformas digitais. Aos titulares deve ser garantida a palavra final sobre seus dados e sua privacidade. Em segundo lugar, o micro direcionamento deve ser repensado nos contextos eleitorais, visto que resulta em disseminação não democrática de informação. Por fim, a arquitetura de controle também pode dar espaço a uma arquitetura que permita ao usuário deslocar-se entre visões de mundo distintas e permita a ele expandir seus horizontes de conhecimento.

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