<span class="sans">Turvando as águas: </span>três casos de coordenação de discurso político da extrema-direita no YouTube Brasil

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Guilherme Felitti

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volume 3 ⁄ número 1 ⁄ ago 2022 ↘ Artigo

Turvando as águas: três casos de coordenação de discurso político da extrema-direita no Youtube Brasil

Guilherme Felitti

Resumo

Na sua função de repositório de conteúdo multimídia, o YouTube tem um papel central no ecossistema de informação política ao armazenar e distribuir o conteúdo que embasa campanhas coordenadas. Para entender como essa coordenação se desenvolve no YouTube Brasil e quais suas dinâmicas específicas, a pesquisa transcreveu 299.470 vídeos dos 307 mais relevantes canais de extrema direita do Brasil. Após transcrever e tratar os dados, a pesquisa usou Python para analisá-los com a ajuda de algoritmos de aprendizado de máquina. Foram três os casos analisados a fundo: as reações ao assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), ao assassinato do prefeito de Santo André Celso Daniel (PT) e às acusações de “rachadinha” contra o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos. A análise descobriu que o bolsonarismo no YouTube baseia suas campanhas em interpretar notícias para que sempre pareçam benéficas ao movimento e/ou ataquem rivais políticos. A pesquisa encontrou indícios de coordenação, que se dá por duas formas descritas no artigo: quando já há uma resposta pronta, com a publicação em massa por canais relevantes de conteúdo sustentando a tese, e quando a tese ainda não foi descoberta, o que leva os canais a iterarem sobre possíveis teorias até que uma se desenvolva. Descobriu-se também indícios de uma estratégia, adotada quando políticos do movimento são acusados, de turvar o debate citando escândalos semelhantes, reais ou não, sobre rivais políticos.

1.Introdução

Entre os tantos fatores que ajudaram na ascensão e chegada à Presidência da República em 2018 do político alinhado à extrema-direita
Jair Bolsonaro, a estratégia de comunicação baseada em redes sociais apostando na desintermediação teve papel relevante, principalmente na divulgação de desinformação (Aggio, 2020). O bolsonarismo1 se mostrou um movimento com atuação nas redes sociais antiga, ubíqua e de muito sucesso (Watmough, 2021) para escoar “um enorme fluxo de propaganda” com uma alta incidência de desinformação (Kalil, 2018). Dentro da estratégia de Bolsonaro, o YouTube, maior plataforma de vídeos do mundo e com mais de 100 milhões de usuários mensais no Brasil (Capelas, 2020), se tornou fundamental para escoar e articular discursos para sua base de seguidores. Outras pesquisas disponíveis já mapearam os principais influenciadores (Homero do Couto Neto, 2019; Kerche, 2019; Oliveira Silva, 2018), os efeitos da desinformação sobre COVID-19 (Brennen et. al, 2020; Tokojima, 2020) e as estratégias de apagamento de vídeos (Felitti, 2021). Mas como se dá a coordenação da extrema-direita no YouTube Brasil?

Esta pesquisa se propõe a investigar e analisar os métodos usados por grupos alinhados ao bolsonarismo no YouTube Brasil para adotarem pautas únicas como respostas a notícias ou desenvolvimentos que atinjam o interesse do grupo político atualmente governando o Brasil. Ao mapear e analisar essa dinâmica, a pesquisa tentará identificar suas particularidades, sinalizando os principais perfis propulsores, as “ondas” de respostas, como elas se espalham pela comunidade e quais notícias desengatilham quais respostas. Para tanto, escrevi códigos para transcrever e analisar 299 mil vídeos publicados por canais brasileiros alinhados ao bolsonarismo e 5.838 notícias publicadas por jornal de alcance nacional que abordam três casos políticos de grande repercussão na sociedade.

2. As formas de consumo de vídeos no Youtube e o impacto em coordenação

Desde pelo menos 2007, dois anos após a fundação, grupos extremistas, atrelados ou não a projetos políticos, vêm utilizando o YouTube
para arregimentar novos membros, apoiados pela execução falha das políticas de moderação da plataforma contra desinformação e discurso de ódio (Mock, 2007; Hosseinmardi et. al., 2021; Burton et. al., 2020). A articulação de discurso político no YouTube se dá levando em consideração suas duas principais formas de conteúdo: dentro da plataforma, por meio das ferramentas sociais, do feed e dos algoritmos de recomendação; e fora da plataforma, com o compartilhamento de conteúdo em outras comunidades digitais. O papel dos algoritmos de recomendação vem sendo exaustivamente estudado, principalmente o impacto que o algoritmo tem na radicalização dos usuários ao recomendar conteúdos políticos mais extremos (Rieder et. al., 2018). Em outras plataformas, a recomendação pode levar usuários a descobrir novos artistas ou gêneros musicais no Spotify. No YouTube, porém, “a mesma capacidade de se aprofundar cada vez mais profundamente em gêneros especializados (…) cria caminhos para posições radicais” (Rieder, B., 2020). Ainda que o YouTube ofereça ferramentas sociais dentro do site, como a capacidade de seguir um canal e ter alertas sempre que um novo vídeo é publicado, a plataforma ganha maior relevância na discussão política quando assume “o papel de repositório de mídia em vídeo relevante a comunidades em plataformas primordialmente baseadas em texto” (Burton et. al., 2020). Em outras palavras: ainda que canais que veiculam discursos políticos não tenham uma grande comunidade de seguidores dentro do YouTube, a possibilidade de compartilhar links para o conteúdo em comunidades de mensageiros os tornam potencialmente relevantes para a discussão pública. Com essa dinâmica “de fora para dentro”, o alcance não se limita à própria plataforma e se torna maior que o número de assinantes que o canal tem no YouTube. A partir do momento em que o vídeo continua no ar, porém, a dinâmica “de fora para dentro” mantém o YouTube relevante para que “discursos políticos subculturais amplifiquem as alegações desinformativas de muitos dos canais de notícias alternativas e comentário social” (Burton et. al., 2020). No seu papel de repositório, o YouTube continua a cumprir seu papel no ciclo de desinformação.

3. A falta de moderação ativa pela plataforma como dificultador

Com mais de 105 milhões de usuários, o YouTube atinge um recorte demográfico bastante amplo no Brasil. A investigação e análise acerca da coordenação de grupos ideológicos para campanhas direcionadas à desinformação política com o intuito de construir cenários que não correspondem à realidade configura-se relevante para jogar luz sobre métodos que ameaçam a democracia e a possibilidade de in-
citar comportamentos violentos. O estudo se torna ainda mais relevante pelo papel de repositório que o YouTube ocupa na estratégia de comunicação política digital: a partir do momento em que todas as outras comunidades digitais dependem dos seus vídeos, o YouTube se torna essencial a todos os outros sites (Burton et. al., 2020). Há outro fator que torna a pesquisa urgente: ainda que o YouTube adote um tom otimista sobre seus esforços para combater desinformação, sempre com destaque ao número de vídeos deletados (Braun, 2021), a estratégia se mostra insuficiente para evitar campanhas de desinformação. Pesquisas nos EUA (Robertson, 2020) e no Brasil (Tokojima, 2020) continuam a encontrar redes de coordenação responsáveis por milhares de vídeos com centenas de milhões de visualizações espalhando desinformação sobre vacinas e a lisura de processos eleitorais.

Entender essa coordenação e como ela se desenvolve no Brasil são os primeiros passos para que se desenvolvam outros estudos sobre a importância do YouTube no ecossistema político brasileiro. Mais que isso, a pesquisa ajudará a entender como é possível adotar práticas que diminuam campanhas de desinformação e mantenham a integridade do debate político, já que o “o compartilhamento e circulação de desinformação se estende além dos poderes regulatórios de apenas uma plataforma” (Burton et. al., 2020).

Em uma plataforma com essas características, como entender os métodos usados por grupos políticos para tentar definir uma agenda ou manipular a percepção de realidade? A pesquisa se foca especialmente na tentativa de, ao ser envolvido em acusações de crimes ou desvios éticos, influenciadores alinhados ao movimento publicarem acusações semelhantes contra seus rivais. O uso de “cortinas de fumaça” no discurso político com o objetivo de desviar atenção não é novo (McCombs, 2007). Mas como ele se desenvolve no YouTube? Um exemplo prático: quando há desdobramentos na investigação do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, é comum observar no Twitter que hashtags atreladas ao assassinato do então prefeito de Santo André, Celso Daniel, em 2002 viralizam graças à ação de comunidades digitais de extrema-direita (Schuquel, 2019).

Dessa forma, torna-se relevante investigar o fenômeno para entender quando existem indícios de ação coordenada para manipular a percepção de realidade ou, em outras palavras, uma tentativa de “cortina de fumaça” para desviar a atenção.

4. Metodologia

O estudo usará uma combinação entre métodos computacionais, com a criação de scripts de análise, e análise manual de conteúdos relacionados a casos múltiplos. A pesquisa partiu da extração dos microdados de todos os vídeos publicados pelos 307 canais de extrema-direita mais relevantes no debate político brasileiro2. A extração foi feita usando a API oficial do YouTube. Para serem considerados para o monitoramento, os canais foram analisados manualmente pelo autor. Só entraram canais com conteúdos alinhados ao bolsonarismo, como vídeos enaltecendo Jair Bolsonaro, seu governo e/ou seus aliados. Fixou-se como data final para a extração o dia 30 de setembro de 2021. A data inicial foi estipulada como primeiro de janeiro de 2018, como forma de entender os primeiros desdobramentos do bolsonarismo online e abarcar episódios relevantes para o debate político nos últimos anos, como o assassinato da vereadora carioca Marille Franco, em 14 de março de 2018. Esta primeira versão do banco de dados resultou em pouco mais de 341 mil vídeos. Os scripts de transcrição usaram o módulo de código aberto youtube-dl para extrair e salvar a transcrição automática que o YouTube cria para os vídeos. Nem todos os vídeos contam com transcrição automática habilitada, o que diminuiu o segundo recorte do banco de dados para 299.470 vídeos. As transcrições do youtube-dl costumam trazer trechos repetidos, então um novo script para fazer a edição automatizada. Com as transcrições prontas, foram criados scripts para analisar os dados e trazer resultados para análise manual. Para a filtragem, em vez de apenas um termo foram agrupados diferentes termos sobre uma mesma categoria e essa categoria foi considerada. O uso de categoria abrange diferentes termos relacionados ao assunto ao mesmo tempo em que dribla a transcrição ainda imperfeita para assuntos específicos. O melhor exemplo é o nome da vereadora Marielle. Na transcrição automática do próprio YouTube capturada pelo youtube-dl, seu nome foi grafado de diferentes maneiras, como “Mary L”, “Mariela”, “Mariele” e “Marielly”, o que exigiu uma edição manual dos termos antes da análise.

As três categorias e seus respectivos termos usadas na análise das transcrições foram as seguintes3:

•Marielle: marielle, mariele, mary l, marielly mariela, mariella e mary
• Celso Daniel: celso daniel
• Rachadinha: rachadinha, 89.000, oitenta e nove mil, oitenta nove mil, cheque, cheques, xeque, Queiroz, Queiróz, Queirós, Queiros, Michelle, Michele, esquema, petrolao, petrolão, mensalão, mensalao, quadrilha, corrupto, corruptos e corrupção

Para as análises das notícias da imprensa, foram usados apenas os termos “Marielle”, “Celso Daniel” e “rachadinha”.

Para entender como os assuntos falados pelos canais de extrema-direita se comparam aos temas abordados na imprensa, abrindo a possibilidade de entender dinâmicas exclusivas do núcleo político, foi criado um scraper que extraiu todas as notícias publicadas no jornal Folha de S.Paulo sobre as categorias4. Com os corpora de transcrições e notícias prontos, a pesquisa adotou dois caminhos no que diz respeito ao uso de inteligência artificial para analisar os dados. O primeiro deles usa um método de Processamento de Linguagem Natural (PLN) chamado Bag of Words. Passo básico para uma série de algoritmos mais complexos, o Bag of Words “quebra” os textos em tokens únicos e permite entender a evolução da frequência de uso de determinado termo no tempo. O segundo caminho usa um algoritmo de aprendizado de máquina chamado Rapid Algorithm Keyword Extraction (RAKE). O RAKE analisa os textos e, segundo parâmetros como relevância de bigramas em cada texto e posicionamento no começo, indica os termos ou expressões de duas palavras mais relevantes para cada texto. Foi necessário fazer alguns ajustes para excluir das transcrições termos associados à linguagem oral, como “gente”, “olha” e “vamos”.

Para entender como o bolsonarismo responde no YouTube a determinados assuntos, a pesquisa criou um robô que cria um panorama de popularidade dos termos em dois ambientes: nas transcrições dos vídeos e no noticiário do jornal Folha de S. Paulo. Esse panorama é composto por dois gráficos com menções diárias aos termos selecionados: um no YouTube e outro na cobertura diária, representada pela Folha de S. Paulo. O panorama facilita entender quando o noticiário e a resposta da base bolsonarista coincidem ou, no sentido contrário, quando há resposta sem novos fatos na cobertura da imprensa. Com os picos de interesse revelados pelo robô criado pela pesquisa, começa a fase de análise manual das ondas mais populares para entender o que as desengatilhou. Neste estágio, a pesquisa criou um outro robô para entender, nos dias daquela onda, quais foram os vídeos com mais menções e visualizações e onde eles entram na linha do tempo. Trata-se de uma tentativa de entender quais foram os vídeos que mais tiveram impacto na formação da “narrativa” adotada pelo bolsonarismo na reação observada naquela onda. Este outro robô tabula no eixo X o horário de publicação de vídeo, no eixo Y o número de menções ao assunto e o tamanho do ícone corresponde ao número de visualizações registradas. Quanto maior o círculo, mais visto foi o vídeo. É bom esclarecer que o horário devolvido pela API oficial do YouTube está três horas adiantado em comparação ao horário de Brasília.

5. Resultados

Este artigo abordou três estudos de casos que demonstram diferentes técnicas de coordenação e articulação no bolsonarismo de YouTube. Os casos são os seguintes: o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco em 2018, o assassinato do prefeito de Santo André Celso Daniel em 2002 e as acusações de “rachadinha”5. Os dois primeiros casos foram selecionados por já ter sido documentado em outras plataformas o fenômeno que se pretende analisar. No Twitter, o nome de Celso Daniel aparece nos Trending Topics, o ranking que compila os principais assuntos debatidos na plataforma, após desdobramentos nas investigações (Schuquel, 2019) ou efemérides (Araujo, 2022) do assassinato de Marielle Franco. O terceiro caso foi escolhido para analisar métodos de resposta envolvendo uma das principais bandeiras da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018, o combate à corrupção. A análise dos três casos não compreende um estudo exaustivo de como a extrema-direita coordena respostas em comunidades digitais, incluindo o YouTube, no Brasil.

5.1.Caso 1 - assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL)

[Figura 1] Panorama comunicacional das menções diárias à categoria “Marielle Franco” entre os youtubers de extrema-direita (acima) e no noticiário do jornal Folha de S. Paulo (Pesquisa)

Para a análise deste caso, foram escolhidos três ondas: março de 2018, quando Marielle foi assassinada; outubro de 2019, quando o Jornal Nacional reportou que um dos acusados do assassinato alegou ir à casa do presidente Jair Bolsonaro no dia do crime; e junho de 2021, quando o ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel citou o assassinato no depoimento que deu à CPI da Pandemia, no Congresso Nacional.

5.1.1.

Nas horas seguintes ao assassinato de Marielle Franco, a articulação bolsonarista, composta de algumas figuras que, meses depois, conseguiriam cargos legislativos nas eleições de 2018, se esforçam para “moldar” o debate para torná-lo menos desabonador a Bolsonaro e atacar seus rivais políticos. Organizemos os dados em uma linha do tempo: Marielle é assassinada perto das 21h30. O primeiro post no Facebook aparece às 21h56. Primeiro veículo a reportar o crime, o G1 publica sua reportagem às 22h06. O primeiro post no Instagram, do jornal O Globo, aparece às 22h32.

[Figura 2] Quem lidera o movimento é a advogada Bia Kicis, seguida pela então jornalista Joice Hasselmann e por Roberto Boni, cover do cantor Roberto Carlos. Kicis e Hasselmann se elegeram deputadas meses depois (Pesquisa)

Nota-se aqui como a base bolsonarista no YouTube, ainda desarticulada, demonstra baixa coesão criar uma narrativa que favoreça o movimento após o assassinato. Entre os canais da extrema-direita, o primeiro vídeo abordando exclusivamente o assunto foi da futura deputada federal Bia Kicis. Às 22h43, Kicis publicou no seu canal um vídeo de 1m29 classificando o assassinato como “assalto” e atacando Marcelo Freixo (PSOL): “fica aí a pergunta para o Freixo, defensor do desarmamento da população. Certamente essa vereadora apoiava também essa agenda desarmamentista”. É uma linha argumentativa que se replicará nos próximos dias. A análise apontou duas grandes tendências na resposta bolsonarista ao assassinato: por um lado, canais como Pingos Nos Is, Seu Mizuka e Paulo Martins alegam que o caso foi um assalto ou crime comum e condena seu suposto “uso político”. Por outro, figuras como Joice Hasselmann, Roberto Boni e a própria Kicis embarcam na cobertura citando nominalmente e fazendo ataques a cobranças ao PSOL, partido da vereadora assassinada, que o bolsonarismo classifica como “defensor de bandidos”. “Agora, é importante que a esquerda, o PSOL emita uma opinião, uma nota que fale sobre a criminalidade. Que peça investigação e punição em último grau para bandido”, afirmou Hasselmann. A ser eleito deputado federal nos meses seguintes, o comunicador Paulo Martins publica vídeo reclamando da politização às 00h02 do
dia 15 de março.

Nos meses seguintes, conforme as investigações deixaram claro que não se tratava de um crime comum, mas de execução, a linha argumentativa se adaptou para apostar mais na linha desenvolvida por Martins (a percepção de “uso político”) e questionar porque o assassinato de policiais militares em serviço não rendia tanta comoção. A narrativa encaixa o assassinato de Marielle dentro das crescente campanha bolsonarista nos dias anteriores contra a intervenção federal em curso no Rio de Janeiro, decretada um mês antes. Os resultados do RAKE mostram que, os principais assuntos abordados pelos youtubers bolsonaristas nos dias anteriores e posteriores ao crime envolviam a intervenção federal no Rio de Janeiro. Os vídeos usam o crime para corroborar a teoria segundo a qual era preciso de uma intervenção ainda mais forte para combater o crime na cidade. O algoritmo de aprendizado de máquina com as transcrições dos dias anteriores e posteriores ao assassinato deixa claro a popularidade de expressões como “intervenção federal” e “segurança pública”.

O que esta primeira onda deixa claro é que figuras ainda desconhecidas do grande público se aproveitaram do interesse público no assassinato para criar teorias que forneciam interpretações rápidas para não apenas salvaguardar o então candidato Jair Bolsonaro, mas também atacar seus rivais políticos. Não à toa, três dos nomes que articularam essa resposta viraram parlamentares: Kicis, Martins e Hasselmann. Não há participação direta da família Bolsonaro.

[Figura 3] Os resultados da modelagem de inteligência artificial da pesquisa mostra que os principais assuntos abordados pelos youtubers bolsonaristas nos dias anteriores e nos posteriores ao assassinato de Marielle Franco envolviam a intervenção federal no Rio de Janeiro (Pesquisa)

5.1.2. Onda 2

A segunda onda mostra um tipo de coordenação diferente. Na primeira onda, notou-se um movimento com vários youtubers se mobilizando nas horas seguintes para publicar interpretações que favorecessem Bolsonaro. Nesta segunda onda, quem definiu a toada da resposta foi o próprio. Em 29 de outubro de 2019, o Jornal Nacional publicou reportagem baseada nos registros da portaria do Condomínio Vivendas da Barra, onde vivem o ex-policial suspeito do crime Ronnie Lessa e o presidente Bolsonaro, mostrando que outro suspeito do crime, Élcio de Queiroz, afirmou que iria à casa do então deputado. A resposta do bolsonarismo no YouTube é difusa até que o próprio Bolsonaro faz uma live6 direto da Árabia Saudita, para onde viajou para visita oficial, no começo da madrugada. Na transmissão online, o presidente se apresenta visivelmente perturbado e ataca a TV Globo: “É uma canalhice o que vocês fazem. Uma ca-na-lhi-ce, TV Globo. Uma canalhice fazer uma matéria dessas em um horário nobre, colocando sob suspeição que eu poderia ter participado da execução da Marielle Franco, do PSOL”. O tom de Bolsonaro serve como guia para o resto do bolsonarismo.

[Figura 4] Nesta onda, a resposta do bolsonarismo é moldada pelo próprio Jair Bolsonaro.(Pesquisa)

No primeiro momento dessa onda, os dois vídeos com mais views vêm do presidente e do seu filho mais velho Flávio Bolsonaro atacando diretamente a TV Globo. O atual senador replicou no seu canal momentos depois a live do pai na Arábia Saudita.

[Figura 5] Horas após a publicação da reportagem da TV Globo que o aproxima dos suspeitos de assassinar Marielle Franco, o presidente Jair Bolsonaro fez live na Arábia Saudita atacando a rede de TV. A live, replicada pelo filho Flávio momentos depois, serviu como base para guiar a resposta da militância na plataforma. (Reprodução)

O que se vê nos dias seguintes é a intensificação dos ataques à Globo com quase todos os canais bolsonaristas monitorados se juntando. A onda de ataques une praticamente todos os principais canais: os canais Vlog do Lisboa, Carlos Jordy (do deputado federal homônimo), Folha Política, Universo, Alessandro Santana Oficial, Seu Mizuka, Pânico, Te Atualizei, Ana Campagnolo, contabilidadetv e Pingos nos Is publicam vídeos em que, repetindo expressões de Bolsonaro, atacam a Globo. Um dos principais motes da campanha é o “Globolixo”.

[Figura 6] Os ataques de Bolsonaro em sua live deram o tom da resposta da base nos dias seguintes. Canais como contabilidadetv, Seu Mizuka, Carlos Jordy, Vlog do Lisboa e Sikera Jr. reproduzirem os ataques de Bolsonaro contra a emissora carioca, reproduzindo, em alguns casos, o bordão “Globo Lixo” (Reprodução)

Em 31 de outubro, um dia depois da live de Bolsonaro, quem se junta à mobilização é Sikera Junior, então o maior youtuber de extrema-direita no Brasil em base de seguidores. Já alinhado ao bolsonarismo, Sikera repete os ataques de Bolsonaro à Globo com sua tradicional galhofa. A segunda onda exemplifica uma dinâmica em que quem toma a frente da mobilização é o núcleo duro do bolsonarismo – o presidente, seus filhos ou aliados muito próximos.

5.1.3Onda 3

A terceira onda em citações mistura as duas anteriores. Em 16 de junho de 2021, o ex-governador do Rio de Janeiro e ex-aliado de Jair Bolsonaro Wilson Witzel presta depoimento à CPI da Pandemia no Congresso.

No depoimento, Witzel, já cassado do cargo para o qual foi eleito em 2018, ataca o bolsonarismo e recupera episódios desabonadores do movimento, ainda que não tenham relação direta com saúde pública, como a investigação de “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro e o assassinato de Marielle. Uma das suas principais acusações envolve o crime. Witzel afirmou que seu impeachment começou a avançar conforme a investigação avançava e sugeriu uma reunião sigilosa com os membros da CPI para aprofundar as denúncias. O principal antagonista do ex-governador no depoimento foi Flávio Bolsonaro. A dinâmica da onda segue a liderança jogada pelo senador no bate-boca ao vivo, mas foi feita exclusivamente pela militância no YouTube. Argumentos usados pelo filho mais velho de Bolsonaro, posteriormente organizados em vídeo em seu canal, foram repetidos nas horas seguintes por canais como Ed Raposo, Alessandro Santana Oficial, Folha Política, Os Pingos nos Is, Jornal da Cidade Online, Carlos Jordy e Canal Paródia Gospel. O teor dos vídeos se apoia em acusações de que o ex-governador foi depor na CPI para “tentar lacrar”, enquanto o senador “partiu para cima” e o “desmontou”. Tal qual a segunda onda, aqui vemos uma figura central no bolsonarismo indicar narrativas que vão se repetir no YouTube pelos dias seguintes. Dois vídeos publicados pelo canal Os Pingos nos Is com menos de duas horas de diferença repetem os argumentos de Flávio e atacam Witzel, com audiência que variou entre 607 mil e 708 mil visualizações.

[Figura 7] A resposta dos apoiadores do presidente Bolsonaro no YouTube ao depoimento de Wilson Witzel é pautada pela atuação – no Congresso e no YouTube – do senador Flávio Bolsonaro. (Pesquisa)
[Figura 8] Em vídeo publicado em seu canal, o senador Flávio Bolsonaro (PL) encapsula sua linha argumentativa apresentada horas antes no depoimento do rival Wilson Witzel como forma de direcionar a militância no YouTube. (Reprodução)

5.2. Caso 2 - As menções ao ex-prefeito de Santo André Celso Daniel

[Figura 9] Panorama comunicacional das menções diárias à categoria “Celso Daniel” entre os youtubers de extrema-direita (acima) e no noticiário do jornal Folha de S. Paulo. (Pesquisa)

Como o gráfico acima mostra, há um claro descasamento entre o noticiário e as menções da base bolsonarista no YouTube. Os picos das menções nos vídeos não coincidem com o noticiário da Folha no mesmo período. Este caso aparece como o segundo a ser analisado já que os picos se parecem com os observados no caso anterior. O maior número diário de menções a “Celso Daniel” no bolsonarismo no YouTube acontece nos dias 25 e 26 de outubro de 2019. No dia 25, Marcos Valério cita o ex-presidente Lula em depoimento do Ministério Público (MP) como um dos mandantes da morte do ex-prefeito de Santo André. O segundo pico acontece poucos dias depois, entre 29 e 31 de outubro do mesmo, data mencionada já aqui: no dia 29, o Jornal Nacional publicou a reportagem aproximando Bolsonaro das investigações sobre o assassinato de Marielle Franco.

A proximidade tão grande entre os dois picos dá formato à dinâmica: assim que o bolsonarismo precisa se defender da acusação de proximidade entre Bolsonaro e o assassinato de Marielle, muitos youtubers recuperam o assunto explorado alguns dias antes. A dinâmica indica como o crime envolvendo Celso Daniel é um dos temas preferidos do bolsonarismo para defender o presidente de acusações. O tema já está tão consolidado entre as opções de respostas do bolsonarismo de YouTube que, ao contrário das ondas anteriores, quando há um tempo de espera até a indicação do caminho a seguir, aqui parece que os perfis já sabem como abordar a notícia citando Marcos Valério. No fim do dia 25 e começo do 26, canais como Os Pingos no Is, Folha Política e ALAN MAZZOCO publicaram vídeos com poucas horas de diferente explorando a questão.

[Figura 10] O bolsonarismo no YouTube é rápido em explorar a acusação de participação de Lula no assassinato de Celso Daniel, feita por Marcos Valério. Dias depois, quando nova notícia aproxima Bolsonaro do assassinato de Marielle Franco, youtubers de extrema-direita recuperam a denúncia de dias anteriores. (Pesquisa)

Nos dias seguintes, com a sucessão de novos assuntos, o tema se diluiu. Com as acusações do caso Marielle, a resposta recuperando o depoimento de Valério foi articulada pelos canais Carlos Jordy, Alessandro Santana, Bruno Engler, Ana Campagnolo e PHVox Canal. Para entender melhor o uso do tema “Celso Daniel” como resposta às novidades nas investigações do caso Marielle Franco, o pesquisador cruzou os dois corpora com o intuito de analisar se as ondas de citação se relacionam e, se sim, como.

[Figura 11] Comparação do número de menções diárias às categorias “Marielle Franco” e “Celso Daniel” nas transcrições dos vídeos de extrema-direita para entender se existe paridade entre os movimentos. (Pesquisa)

O número de menções diárias indica que alguns dos picos dos termos contido na categoria “Marielle” são seguidos, com um pequeno atraso, por picos citando “Celso Daniel”. Os maiores picos de ambos invertem essa dinâmica e compreendem a semana em que Marcos Valério acusou Lula de participação direta no assassinato de Celso Daniel e a revelação de que um dos suspeitos do assassinato de Marielle visitou o condomínio de Jair Bolsonaro no dia do crime. Em alguns dos outros picos de “Marielle”, pode-se observar como as menções a “Celso Daniel” sobem no mesmo dia ou no dia seguinte. Isso acontece durante abril de 2018, quando o bolsonarismo insiste em diferentes teorias, como algumas apresentadas no artigo, na primeira quinzena de março de 2019 (os dois principais suspeitos do crime, Ronnie Lessa e Elcio de Queiroz foram presos em 12 de março de 2019) e entre os dias 9 e 18 de fevereiro de 2020 (outro suspeito, Adriano da Nóbrega foi morto em operação policial na Bahia em 9 de fevereiro de 2020. No dia 11, laudo da Polícia Civil alegou que voz que autorizou entrada de Elcio de Queiroz no condomínio de Lessa e Bolsonaro não era do porteiro que fez a acusação veiculada no Jornal Nacional).

5.3. Caso 3 - As reações às acusações sobre "rachadinha"

[Figura 12] Panorama comunicacional das menções diárias à categoria “rachadinha” entre os youtubers de extrema-direita (acima) e no noticiário do jornal Folha de S. Paulo. (Pesquisa)

Por fim, este caso analisará a forma como o bolsonarismo responde às acusações da prática de “rachadinha”, quando funcionários devolvem parte do salário ao empregador, nos gabinetes de membros da família Bolsonaro.

5.3.1. Onda 1

O pico das menções à categoria “rachadinha” acontece a partir de 18 de junho de 2020, quando a Operação Anjo prende Fabricio Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro e amigo de Jair Bolsonaro, na casa do advogado Frederick Wassef, que já tinha feito a defesa tanto de Flávio como de Jair, em Atibaia. A prisão de Queiroz se deu dentro do inquérito que investigava sua participação em esquema de “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro.

[Figura 13] A resposta do YouTube de extrema-direita à prisão de Fabricio Queiroz mostra uma mobilização e a consolidação rápida da resposta em torno de perseguição contra Bolsonaro (Pesquisa)

A prisão de Queiroz apresenta um cenário de difícil interpretação para o bolsonarismo. Afinal, Queiroz sempre foi próximo do presidente e dos filhos, participou de atividades que soam fortemente como corrupção, ficou foragido durante meses e foi preso na casa do advogado dos Bolsonaros. Todos os fatores vão contra o discurso anticorrupção que alavancou a campanha de Bolsonaro e o levou ao Palácio do Planalto. É bom esclarecer que, no mesmo dia da prisão de Queiroz, outros dois assuntos caros ao bolsonarismo estão se desenrolando, como mostra a modelagem dos discursos usando RAKE: a demissão de Abraham Weintraub do Ministério da Educação após insultos contra os ministros do STF e a decisão do plenário do STF de reiterar a constitucionalidade do inquérito aberto pelo próprio tribunal para investigar a veiculação de fake news e as ameaças contra os ministros do STF. Postas todas essas particularidades, como o bolsonarismo respondeu? No geral, canais – sejam os puramente ideológicos ou os que se apresentam como “jornalísticos” – apostam em uma justificativa de que a prisão de Queiroz foi, na verdade, uma tentativa de atingir o presidente Jair Bolsonaro. A análise não encontrou defesas de Queiroz e, entre os veículos profissionais que fazem parte do espectro da extrema-direita, há uma tensão entre defender sua punição e tentar pintar uma injustiça contra ele. Rodrigo Constantino na Jovem Pan e até Sikera Jr. defendem que, se realmente fez algo errado, Queiroz tem que pagar. Mas é o próprio Constantino quem repete que “tem que se cobrar um senso de proporção e coerência”, já que o caso da “rachadinha” de Flávio Bolsonaro foi mais um entre tantos indicados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF). “Todo cerco que vai se fechando ao presidente e ao governo. Claro que fica a percepção legítima de que pode ser mais um capítulo de perseguição política”, diz Constantino.

É uma linha argumentativa que será repetida incessantemente no ciclo informacional. Entre os que embarcam nesta tese estão Caio Coppola, Carlos Jordy, Alexandre Garcia, Kim Paim, Bernardo Kuster e Vista Pátria, que chama a operação da PF de “invasão à casa do advogado do presidente Jair Bolsonaro de uma maneira muito midiática”. Estes dois últimos – Kuster e Vista Prática – foram os primeiros a publicar vídeos citando o argumento oficialmente explorado nos dias seguintes. O discurso persecutório ganha traços históricos no vídeo em que Políbio Braga repete que “é claro que essa prisão tem tudo a ver com essa escalada que o eixo do mal move contra o presidente Bolsonaro” e chega a afirmar que Queiroz não repetirá a história de Gregório Fortunato, chefe da segurança de Getúlio Vargas que, ao promover uma tentativa falha de atentado contra o adversário político Carlos Lacerda, mergulhou o governo em uma crise que culminou no suicídio de Vargas. Há também outras tentativas de interpretar a prisão de Queiroz de uma forma positiva a Bolsonaro. Vídeo publicado pelo canal Notícias de Política de HOJE editou fala de Adrilles Jorge no programa Morning Show, da Jovem Pan, para argumentar que a prisão prova que Bolsonaro não interferiu na PF. Já Alessandro Santanna afirma que, com o fim da chamada “novela”, “agora o Brasil pode andar, acabou o Carnaval Queiroz”. Por fim, uma corrente um pouco menos popular argumenta que um nível de corrupção é esperado de qualquer governo. Quem lidera o argumento é Olavo de Carvalho e meses antes da prisão de Queiroz. Em entrevista dada à BBC em maio de 2020, o ideólogo bolsonarista, ao comentar Queiroz, repete que “casos pequenininhos de corrupção podem acontecer em qualquer governo. Sempre tem um ladrão em qualquer lugar”. Alessandro Santanna segue a linha: “esse negócio de rachadinha é a coisa mais comum que tem. E não precisa nem ir na ALESP, no caralho a quatro. Rachadinha é um bagulho que existe há mil anos, entendeu? Normal. Normal. Não quer dizer que é certo”. Constantino também classifica a rachadinha como “uma prática muito generalizada e banal nos gabinetes. Quando é uma prática basicamente aceita no meio, todo mundo faz, aí é óbvio que você precisa levar isso em conta”.

5.3.2. Onda 2

[Figura 14] A resposta do YouTube de extrema-direita à reportagem do UOL sobre suspeitas de “rachadinha” no gabinete do então deputado Jair Bolsonaro demora mais a engrenar que a da prisão de Queiroz e não devolve uma narrativa tão consolidada (Pesquisa)

A segunda onda acontece a partir de 5 de julho de 2021, quando o portal UOL publicou reportagem afirmando que o gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro também tinha indícios de “rachadinha”. Em gravações obtidas pela jornalista Juliana Dal Piva, autora da reportagem, a ex-cunhada em depoimento acusa Bolsonaro de ter demitido seu irmão por não entregar parte do salário ganho como funcionário do gabinete. A resposta segue duas linhas. A primeira é defender que as gravações foram vazadas em um momento específico para minar a autoridade de Bolsonaro. No dia 4, o STF tinha formado maioria para arquivar a denúncia de investigação contra a primeira-dama Michelle Bolsonaro pela suspeita de participação na prática de “rachadinha”. Os vídeos publicados pelos canais Luan Amâncio, Ancapsu e PAPO CONSERVADOR (o vídeo, deletado do YouTube, segue no ar no Facebook) lideram o argumento.

A segunda linha é adotar a adaptação de uma estratégia de debate político chamada de “accusation in a mirror” ou acusação espelhada, em tradução livre. A técnica consiste em “incitar genocídio ao acusar as vítimas precisamente dos crimes que se pretende cometer contra eles” (Marcus, 2012). Canais como Pais e Filhos e, novamente, PAPO CONSERVADOR publicam nos dias seguintes vídeos acusando adversários políticos de Bolsonaro de praticarem “rachadinhas” em seus gabinetes. Em 6 de julho de 2021, o canal Pais e Filhos afirma em vídeo que o estatuto do Partido dos Trabalhadores (PT) “tem rachadinha como obrigação para filiação no partido”. Dois dias depois, o vídeo do PAPO CONSERVADOR, deletado do YouTube após a coleta de dados da pesquisa, mas ainda no ar no Facebook, cita supostos documentos afirmando que o senador Randolfe Rodrigues (Rede Sustentabilidade), um dos líderes da CPI da Pandemia, usava um assessor para pagar contas pessoais, como aluguel.

[Figura 15] Em vídeo, canal Pais e Filhos acusa regulamento do PT que supostamente “obriga” rachadinha dias após reportagem do UOL revelar áudios acusando Jair Bolsonaro de fazer “rachadinha” quando deputado (Reprodução)
[Figura 16] Em vídeo, canal PAPO CONSERVADOR acusa suposta prática de “rachadinha” no gabinete do senador Randolfe Rodrigues (Rede Sustentabilidade) dias após reportagem do UOL revelar áudios acusando Jair Bolsonaro de fazer “rachadinha” quando deputado. Vídeo foi deletado do YouTube pelo youtuber, mas segue no ar no Facebook. (Reprodução)

No gráfico acima criado pela pesquisa, percebe-se que, ao contrário da resposta à prisão de Queiroz, a articulação segue a argumentação de que o presidente é alvo de perseguição. Fica-se com a impressão que o bolsonarismo percebe que só alegar perseguição não ajudará na consolidação da narrativa. Só no dia seguinte começam a aparecer as acusações de supostas práticas semelhantes feitas por rivais, como uma forma de turvar as águas. É algo que recupera uma linha argumentativa já vista na primeira onda (e até antes dela, com Olavo de Carvalho) de que rachadinha é algo corriqueiro. Suspeita-se que a inserção de supostos casos de rivais políticos tente passar uma impressão de “normalidade”, de “todo mundo faz”, na tentativa de neutralizar o peso das acusações publicadas pela imprensa.

6. Conclusões

De maneira geral, os resultados indicam algumas tendências sobre as dinâmicas e métodos de coordenação de discurso político, especificamente da extrema-direita no Brasil, dentro do YouTube. Se partimos da definição de definição de agenda como “a organização centralizada de uma ideia para conteúdo noticioso que oferece contexto e sugere qual é a questão por meio do uso de seleção, ênfase, exclusão e elaboração” (Tankard et al., 1991), observa-se como os canais analisados se esforçam para selecionar, elaborar e dar ênfase a pontos específicos que beneficiem um determinado lado. É um método voltado a indivíduos, como descrito por McCombs et. al. (2007), tão envolvidos em uma situação que precisam consumir conteúdos que os ajudem a interpretar os fatos de forma positiva.

A primeira das tendências encontradas no estudo é a sugestão de que existe algum tipo de coordenação para a publicação em massa de um mesmo argumento. Essa coordenação não se aplica a todos os casos e não sobrevive unicamente no YouTube. Suspeita-se que a articulação seja feita fora, em grupos de mensagem ou comunidades fechadas ao qual o público em geral (e os pesquisadores) não têm acesso. Ainda que seja feito fora, seus efeitos são claramente observados no YouTube. É onde a operacionalização da estratégia deságua.

A primeira onda do caso 3, que envolve a prisão de Fabricio Queiroz, mostra uma coordenação precisa: grandes canais publicaram, durante o primeiro dia, vídeos que sustentavam a mesma argumentação (a de que a “rachadinha” de Flávio Bolsonaro é uma das que menos movimentou dinheiro na lista do COAF e, logo, a prisão é perseguição política contra o presidente). Quando Marcos Valério acusou Lula de ser o mandante do assassinato de Celso Daniel, a resposta é muito parecida: vários canais simultâneos repetiram a mesma teoria.

Fica-se com a impressão de que, para alguns assuntos específicos, o bolsonarismo já burilou uma resposta pública a ponto de, quando há uma nova movimentação, é rápido publicar novos vídeos que repetem os argumentos para interpretá-los de maneira positiva ao movimento. Há também outros cenários em que não existe uma resposta já definida, recuperada de casos anteriores. Nesses casos, nota-se que existe um momento em que a comunidade, perdida sem o direcionamento, testa narrativas até emplacar ou até que surja um direcionamento. Um exemplo prático: nas horas posteriores ao assassinato de Marielle Franco, vemos alguns influenciadores testando o método, como Bia Kicis, Joice Hasselmann e o MBL usando o crime para atacar o PSOL ou Roberto Boni defendendo que não existe razão para comoção maior do que a vista por policiais mortos. São duas das principais correntes a serem usadas nos meses seguintes, mas não as únicas. Há uma mobilização forte, escoada aparentemente mais por aplicativos de mensagem, espalhando a mentira de que Marielle tinha sido casada com um traficante (Cunha, 2018). Precisa-se levar em consideração que o crime aconteceu em março de 2018, começo da campanha eleitoral em que a articulação da base bolsonarista estava ainda longe do estágio da completude e da complexidade que adquiriu após as eleições. Essa dificuldade de articulação não é exclusiva do YouTube e já foi observada em outras comunidades digitais da extrema-direita. No fim de março de 2021, quando Jair Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa e pediu a troca dos três comandantes das Forças Armadas, sua base não sabia ao certo como reagir e ficou em compasso de espera durante alguns dias (Miranda, 2021). Ao envolver o embate público entre dois dos pilares fundamentais da mitologia bolsonarista (Jair Bolsonaro e as Forças Armadas), a base não sabia como interpretar o fato de maneira que soasse positivo a ambas ou se teria que escolher um ou outro e, se fosse o caso, qual deles.

O segundo ponto que vale a pena levantar é que, ao contrário de plataformas onde a automatização de conteúdo é mais fácil, publicar vídeo no YouTube é uma atividade que exige uma dose de trabalho manual. Os tipos de coordenação encontradas envolvem a publicação de posicionamentos por canais relevantes que acabam sendo seguidos pelos canais de menor projeção. Tradicionalmente, quem define e repete estas posições são canais que ganharam projeção dentro da plataforma, não os canais dos Bolsonaro, por exemplo. Em casos raros, quem lidera o movimento de resposta são o presidente e seus filhos. No primeiro caso, é curioso notar que três dos principais articuladores da resposta ao assassinato da vereadora Marielle Franco se elegeram nas eleições meses depois (todos como deputados federais). É preciso uma investigação mais profunda para entender se as respostas, adotadas pela comunidade, ajudaram a projetar uma persona online ou, pelo contrário, por já terem uma posição relevante a disseminação das teorias foi facilitada.

É por isso que, a partir do momento em que influenciadores que ganharam projeção pré-Bolsonaro passaram a questionar o presidente, observou-se uma mudança de estratégia de “fomentar” e ajudar a aumentar a projeção de canais totalmente alinhados com o bolsonarismo. Durante 2018, o youtuber alinhado ao bolsonarismo com a maior base era Nando Moura (2,6 milhões de seguidores na época). Moura fez entrevista elogiosa com Bolsonaro na campanha de 2018 (tornada não-listada) e comemorou sua eleição. No fim do primeiro ano de mandato de Bolsonaro, porém, o youtuber rompeu publicamente ao acusar Bolsonaro de trair “TODO o povo brasileiro” ao sancionar “a emenda do FREIXO”. Nos meses seguintes, Bolsonaro passou a se reunir com youtubers de menor projeção (Rodrigues, 2020) em uma aparente estratégia para ajudar a projetar nomes que estejam 100% alinhados com sua estratégia. Neste encontro de maio, estão nomes citados na pesquisa, como Vista Pátria e Te Atualizei. Por fim, esses dois tipos de articulação detalhadas no artigo (a de “prateleira” e o processo de tentar novas narrativas na falta de uma pronta) servem ao mesmo propósito: dar uma resposta rápida, enérgica e que interprete os acontecimentos de forma positiva ao presidente Jair Bolsonaro para ser adotado como argumento do bolsonarismo. Essa tentativa de responder se alimenta da recuperação de notícias semelhantes envolvendo seus rivais políticos, a estratégia da “acusação espelhada”. Tal qual detalha Marcus (2012), ao recuperar acusações do caso Celso Daniel quando há avanços nas investigações do caso Marielle, como no caso 2, ou citar suspeitas sobre a suposta prática de “rachadinha” tipificada no estatuto do PT ou praticada no gabinete do senador Randolfe (caso 3), os youtubers bolsonaristas adotam uma resposta “espelhada”, como se tentassem “virar” a mesa do jogo acusatório. Trata-se de uma estratégia para turvar o debate, imputando aos rivais políticos suspeitas idênticas ou parecidas para que não exista um descasamento moral ou ético percebido muito grande entre os dois lados. Essa dinâmica de um grupo de influenciadores se unindo para publicar conteúdos que introduzam dúvidas sobre um assunto (acusações de corrupção, neste caso) guarda semelhanças com a observada por Tokojima et. al(2020) para atacar vacinas.

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Guilherme Felitti gfelitti@gmail.com

Mestre em tecnologia e comunicação pela PUC-SP.