<span class="sans">Liberdade de Expressão 2.0:</span> a constitucionalidade dos casos de <em>deplatforming</em> no Inquérito das Fake News

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Erick Curvelo

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volume 1 ⁄ número 3 ⁄ jun 2021 ↘ Artigo

Liberdade de Expressão 2.0: a constitucionalidade dos casos de deplatforming no Inquérito das Fake News

Erick Curvelo

Resumo

O presente artigo versa sobre os alcances e limites dados à liberdade de expressão nas plataformas digitais e o papel exercido pelo Poder Judiciário na moderação de conteúdos online. Precisamente, analisa os recentes casos de “deplatforming” ordenados pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Inquérito das Fake News para determinar a legalidade e proporcionalidade do bloqueio universal de usuários das redes sociais. A partir de uma análise das diferentes vertentes de interpretação da liberdade de expressão, busca-se, com base na doutrina e jurisprudência comparada, chegar a conceitos-chave que permitam avaliar o caso concreto. Ao estabelecer o marco de interpretação jurídica, verificamos as formas de regulação da liberdade de expressão, analisando a questão dos crimes de ódio. Tais questões são extremamente relevantes considerando-se o atual contexto global, onde práticas de deplatforming vêm assumindo cada vez mais destaque no debate internacional e considerando que no Brasil ainda carecemos de delimitações semânticas importantes para a discussão. O discurso de ódio, por exemplo, ainda não foi definido por lei nem pelo Supremo Tribunal Federal. Ao final, a partir dos fatos analisados, concluímos que a decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes que determinou o bloqueio universal de usuários é medida desproporcional, autoritária e extrapola as competências do Judiciário brasileiro. A referida medida representa um perigoso precedente para a liberdade de expressão no Brasil e no mundo.

1.Introdução

“Determino o bloqueio de contas em redes sociais, tais como Facebook, Twitter e Instagram, dos investigados, necessário para a interrupção dos discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática.” (INQ. 4781/DF, 2020). Assim o Ministro Alexandre de Moraes fundamentou sua decisão determinando o bloqueio das contas de uma dezena de usuários em plataformas digitais no âmbito do Inquérito 4781, conhecido como Inquérito das Fake News, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF). A medida pode ser considerada uma das diferentes formas de “deplatforming” – remoção, bloqueio, suspensão ou banimento definitivo de contas de redes sociais, impedindo que o usuário publique conteúdos e mensagens nas plataformas (Perlman, 2021).

No caso que tem como atores envolvidos as maiores plataformas de mídia social, usuários ligados à extrema direita, e o próprio Supremo e seus ministros, a discussão sobre os limites da liberdade de expressão, o discurso de ódio, as fake news e a proteção da institucionalidade democrática representam o grande caldo cultural e político em que estão inseridos os direitos digitais no nosso tempo. Definir quais os parâmetros da liberdade de expressão na internet e o papel do Estado nas interações desses espaços privados parece ser ainda um grande dilema das redes.

Sem prejuízo de outras análises, a questão tem alguns desdobramentos claros: o primeiro se refere ao valor e à interpretação dados à liberdade de expressão em cada sociedade; o segundo, como esse conceito se traduz no mundo digital; e o terceiro, qual seria o papel do Estado na regulação/moderação dos conteúdos digitais. Por razões de delimitação do tema, no presente artigo centraremos sobre este último ponto: quais os limites impostos ao Estado para proteção da liberdade de expressão no ambiente digital? A partir do escrutínio desta questão, verificaremos as hipóteses de interferência admissíveis, se a recente decisão do STF obedece tais limites e se, portanto, constitui uma interferência legal e proporcional com base em um juízo de ponderação.

Com este objetivo, o presente trabalho se dividirá em quatro partes: na primeira, analisaremos o contexto da aludida decisão e suas reverberações práticas; na segunda parte destrincharemos o conceito da liberdade de expressão, em suas distintas vertentes; na terceira, examinaremos os limites e tipos de regulação cabíveis, para ao final, respondermos à pergunta inicial deste artigo sobre se a recente decisão do STF obedece aos princípios da legalidade e proporcionalidade.

2.Por trás dos panos: o contexto da emblemática decisão no Inquérito das Fake News

Em março de 2019, por decisão do Ministro Dias Toffoli, o STF instaurou o Inquérito das Fake News (INQ. 4781), com o objetivo de investigar a existência de uma rede virtual de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas e ameaças contra o STF, seus ministros e familiares. As investigações apontam para uma possível rede de desinformação formada por apoiadores da extrema direita, ligados ao atual Presidente da República, Jair Bolsonaro.

A abertura do inquérito suscitou diversas discussões acerca da sua constitucionalidade, tendo o partido REDE Sustentabilidade apresentado Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental  (ADPF 572) defendendo que o referido inquérito seria inconstitucional, por violação do princípio constitucional do sistema penal acusatório.1 Em 18 de junho de 2020, o Plenário do STF, por dez votos a um, concluiu o julgamento da Ação para declarar a legalidade e a constitucionalidade da investigação, determinando assim o seu prosseguimento. Nas palavras do Ministro Dias Toffoli, a instauração do inquérito tratava-se de uma “prerrogativa de reação institucional que se tornou necessária em razão da escalada das agressões cometidas contra o Tribunal”, declarando que tomou a iniciativa depois de constatar a “inércia ou a complacência daqueles que deveriam adotar medidas para evitar o aumento do número e da intensidade de tais ataques” (ADPF 572/DF, 2020).

A despeito das frutíferas discussões relativas à constitucionalidade do inquérito2, no presente artigo nos debruçaremos sobre uma das suas questões de fundo, não menos polêmica: a determinação do bloqueio de contas em redes sociais de usuários investigados. Em 26 maio de 2020, o Ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática determinou o bloqueio das contas de dezesseis usuários suspeitos de ataques contra o STF e seus ministros. (INQ 4781/DF, 2020)3. Em 28 de julho daquele ano, sem que ainda houvesse sido cumprida, o Ministro reiterou a decisão, determinando às plataformas o imediato bloqueio das contas, sob pena de multa. (INQ. 4781/DF, 2020).

Logo após a nova ordem as plataformas Facebook, Twitter e Instagram bloquearam o acesso no Brasil das contas indicadas no inquérito. A partir do bloqueio, as contas apareceram com a seguinte mensagem: “suspensa no Brasil devido a uma ordem judicial” (Ribeiro, 2020). Apesar de terem tido o acesso inviabilizado no Brasil, as contas não foram bloqueadas no exterior, o que possibilitava subterfúgios de geolocalização, permitindo que os perfis fossem acessados através de endereços IP fora do Brasil. Isso permitia que os usuários utilizassem, por exemplo, serviços de roteamento de conexão, como VPNs, contornando o bloqueio e acessando os perfis em território nacional, como se estivessem em outros países. O laudo pericial do inquérito apontou ainda que:

no caso da rede social Twitter, o bloqueio dos perfis no Brasil foi efetuado de forma ineficaz. O Twitter continua permitindo que os perfis sejam acessados através de endereços IP do Brasil, desde que o nome do país configurado na conta do usuário seja diferente de ‘Brasil’, por exemplo, ‘Estados Unidos’. (INQ 4781, 2020, p.3)

Com base nessas informações, o Ministro Alexandre de Moraes julgou a ordem parcialmente cumprida, e determinou nova intimação das plataformas para o cumprimento integral da decisão, por meio do bloqueio global das contas, sob pena de multa diária de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), por cada perfil identificado e não bloqueado dentro do prazo fixado.

Nos dias que se seguiram, o Facebook, por meio da sua assessoria de imprensa, informou que não iria cumprir de forma voluntária a determinação judicial por considerá-la ilegal, sob o argumento de que extrapolaria os limites da jurisdição brasileira. Em 31 de julho de 2020, em comunicado à imprensa, o Facebook afirmou: “respeitamos as leis dos países em que atuamos. Estamos recorrendo ao STF contra a decisão de bloqueio global de contas, considerando que a lei brasileira reconhece limites à sua jurisdição e a legitimidade de outras jurisdições” (CNN, 2020). No mesmo dia, com posse dessas informações, Moraes emitiu nova decisão, arbitrando a multa de R$ 1.920.000,00 (Hum milhão, novecentos e vinte mil reais) ao Facebook, e elevou a multa diária para o valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) por perfil indicado e não bloqueado (INQ 4781/DF, 2020).

Em 01 de agosto de 2020, notadamente contrariados, o Facebook e Twitter anunciaram o bloqueio global das contas indicadas pelo STF. Em nota, o Facebook declarou que: “a mais recente ordem judicial é extrema, representando riscos à liberdade de expressão fora da jurisdição brasileira e em conflito com leis e jurisdições ao redor do mundo” (Mercier, 2020).

A decisão suscita uma série de questões, mas, por uma questão de extensão deste artigo, centraremos na análise da decisão internamente, verificando se esta obedece aos limites constitucionais e os parâmetros de legalidade para intervenção do Estado no discurso.

3.Liberdade de Expressão: correntes teóricas e regime de interpretação no Brasil

Como é sabido, a internet revolucionou a comunicação, criando formas sem precedentes de profusão e circulação de informações e ideias. Criou igualmente inúmeros desafios e dilemas, uma vez que o mundo digital conectou de maneira instantânea sociedades heterogêneas. A partir do caso em análise, veremos como essa colisão de conceitos e práticas se dá e como chegamos a um dos principais dilemas do nosso tempo: como regular a liberdade de expressão no mundo digital?

Um dos grandes desafios sobre a liberdade de expressão na internet se dá justamente na definição do próprio conceito, e como cada sociedade interpreta e valoriza esse direito. Para analisar as implicações práticas, devemos de antemão delimitar nosso marco teórico. Com isso, iniciamos por diferenciar as duas principais correntes sobre a liberdade de expressão: a corrente libertária e a democrática.

A corrente libertária, preconizada sobretudo pela teoria e jurisprudência estadunidense, entende a liberdade de expressão de forma extensiva, como um direito de defesa do indivíduo contra a intervenção do Estado no discurso e o direito de livre informação, ou seja, de vedação à censura. A doutrina e a teoria jurídico-política dos Estados Unidos se desenvolveram no sentido liberal, vendo o Estado como um potencial obstáculo ao desenvolvimento dos direitos individuais.  Há uma visão no direito constitucional americano de que o Estado é inimigo dos direitos, e não uma entidade promotora de direitos (Sarmento, 2006).

Isto não quer dizer que a teoria liberal não admita possíveis interferências do Estado no discurso. No entanto, para esta corrente, tais interferências do Estado devem ser mínimas. A doutrina liberal desenvolveu o princípio do “clear and present danger”, admitindo pontuais intervenções do Estado nos casos de dano iminente. Nesta interpretação, se uma informação ou opinião causa danos significativos, esse discurso pode ser regulado pelo Estado, da maneira menos restritiva possível (Wedy & Horbach, 2019). No entanto, para esta corrente, o discurso de ódio não se enquadra na classe de restrições legítimas da liberdade fundamental, por entender que meras ofensas não constituem dano a outrem (Brink, 2016).

Há, no entanto, autores americanos que refutam essa ideia libertária, indicando uma inadequação desta interpretação às demandas do mundo real, propondo o que se convencionou chamar de “New Deal for Speech” (Napolitano & Stroppa, 2017). Nesta proposta, defendem a atuação positiva do Estado consistente em prestações normativas (aprovação de leis sobre o direito de informar) ou prestações materiais (meios ou instrumentos para o exercício da liberdade de informar), ou seja, o Estado deveria estar imbuído do dever de “fornecer as estruturas necessárias para que o direito fundamental de informar seja realmente desfrutado por todos os cidadãos, e assim não fique reduzido a um mero enfeite jurídico ou a um alçapão verbal judicialmente formulado” (Farias, 2004, p. 87).

De outro lado, temos a chamada corrente democrática, que vê o Estado não como um inimigo dos direitos individuais, mas como um agente garantidor de direitos e mediador de conflitos para a garantia da pluralidade e equilíbrio democrático. Nesta visão, mitiga-se a interpretação quase absoluta dada à liberdade de expressão da corrente libertária, e busca-se reafirmar hipóteses mais extensivas de ingerência do Estado, a fim de garantir a harmonização social, coibindo práticas de discurso discriminatórias, violentas e ofensivas (Sarmento, 2006).

Esta tem sido a tese adotada há longo tempo no Brasil. Entende-se que a redação garantista da Constituição brasileira legitima a pretensão estatal de coibir as manifestações discriminatórias contra as minorias, ou vítimas do discurso de ódio. Ao longo dos anos, o Supremo tem reafirmado o seu precedente no leading case Caso Ellwanger, de 2003, onde o Tribunal, por maioria, estabeleceu que o direito à liberdade de expressão não é um direito absoluto, observando que “o preceito fundamental da liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra” (HC 82.424/RS, 2003, p. 526).

Com efeito, esta foi a tese adotada e reafirmada pelo Ministro Alexandre de Moraes para justificar sua ordem de bloqueio das contas na internet para impedir a divulgação de discursos com conteúdo de ódio e notícias falsas:

A liberdade de expressão é consagrada constitucionalmente e balizada pelo binômio “LIBERDADE E RESPONSABILIDADE”, ou seja, o exercício desse direito não pode ser utilizado como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas. Não se confunde LIBERDADE DE EXPRESSÃO com IMPUNIDADE PARA AGRESSÃO. Dessa maneira, uma vez desvirtuado criminosamente o exercício da liberdade de expressão, a Constituição Federal e a legislação autorizam medidas repressivas civis e penais, tanto de natureza cautelar quanto definitivas. (INQ. 4781/DF, 2020, p.2).

Numa perspectiva democrática, a liberdade de expressão assume um papel fundamental para garantir não apenas o controle do poder político, mas também para garantir a pluralidade e harmonia social. Nesse sentido, demandaria uma dimensão negativa e uma positiva de pretensões estatais. A dimensão negativa configura-se em um dever de não fazer por parte do Estado, consubstanciado na ideia de “não censurar, não cercear a liberdade de expressão e opinião, não impor excessivas obrigações positivas às empresas difusoras de informação” (Napolitano & Stroppa, 2017, p. 318). Por outro lado, a dimensão positiva engloba o dever de agir do Estado, materializado na tarefa de implementar as condições fáticas para o efetivo exercício das liberdades fundamentais. Isso se traduz no dever de “ordenar, de forma equilibrada, a tutela da liberdade de expressão e comunicação e a proteção dos cidadãos contra violações de seus direitos fundamentais causadas por essa liberdade” (Farias, 2004, p. 18).

Daniel Sarmento (2007) destaca que dentro da perspectiva democrática “os poderes públicos têm não apenas o dever de absterem-se de violar esses direitos, mas também a obrigação de promovê-los concretamente, e de garanti-los diante de ameaças decorrentes da ação de particulares e de grupos privados.” (p.71). Sendo assim, o Estado deve atuar positivamente para garantir a pluralidade de vozes na arena pública e assegurar a possibilidade real de expressão aos integrantes das camadas menos ouvidas da sociedade. Nas palavras de André Bezerra (2012), tais ações estatais devem estar “aptas a fomentar o pluralismo de opiniões, sob o amparo de ordenamentos jurídicos que impõem ao Estado o dever de agir na efetivação dos direitos fundamentais, no que se inclui a liberdade de expressão.” (p. 139).

Além desta dupla demanda exigida por parte do ente estatal, a liberdade de expressão também engloba uma função dual: uma função subjetiva, protetora da dignidade humana e dos direitos da personalidade, e uma função objetiva, como protetora do regime democrático e garantidora da participação dos cidadãos no debate público e na vida pública (Farias, 2004). Neste contexto, entendemos que numa ótica democrática estariam admitidas intervenções legítimas do Estado no discurso, como a proibição do discurso de ódio, como veremos a seguir.

No âmbito público, a liberdade de expressão cumpre um papel informativo, pelo qual o livre fluxo das informações possibilita o melhor conhecimento e a melhor avaliação dos assuntos de relevância pública, permitindo aos cidadãos estarem mais preparados para tomarem decisões mais informadas e inteligentes, e um papel crítico que assegura aos cidadãos a faculdade de criticar o poder político, as instituições estabelecidas e os agentes públicos, favorecendo a mudança e alternância democrática (Farias, 2004).

Diante do exposto, concluímos que dentro da teoria democrática adotada no Brasil e mesmo no âmbito da teoria libertária – mesmo que de forma mais reduzida –, a liberdade de expressão admite interferências legítimas por parte do Estado, sendo, portanto, um direito não absoluto. Na seguinte seção analisaremos as hipóteses legítimas de interferência pelo Estado e limites impostos à liberdade de expressão.

4.Limites e possibilidades de regulação da liberdade de expressão

Garantir o papel fundamental da liberdade de expressão na consolidação da sociedade democrática não significa dar-lhe um caráter absoluto mas, pelo contrário, exercer um equilibrado juízo de ponderação em colisão com demais direitos fundamentais, a fim de coibir o uso abusivo da expressão. Em outras palavras, a liberdade de expressão não pode ser escudo para a violação de direitos, para a prática de crimes e discriminação. Como analisa observa Bernardo Fernandes:

“Nesses termos, para a doutrina dominante, falar em direito de expressão ou de pensamento não é falar em direito absoluto de dizer tudo aquilo ou fazer tudo aquilo que se quer. De modo lógico-implícito a proteção constitucional não se estende à ação violenta. Nesse sentido, para a corrente majoritária de viés axiológico, a liberdade de manifestação é limitada por outros direitos e garantias fundamentais como a vida, a integridade física, a liberdade de locomoção. Assim sendo, embora haja liberdade de manifestação, essa não pode ser usada para manifestação que venham a desenvolver atividades ou práticas ilícitas (antissemitismo, apologia ao crime etc.) (Fernandes, 2013, pp. 61-80).

Neste sentido, em uma sociedade democrática os limites impostos à liberdade de expressão podem decorrer em virtude da ponderação – em grande medida realizada pelo Poder Judiciário quando há colisão com demais direitos fundamentais -, ou de regulação, quando tais limites advêm de parâmetros previamente estipulados em lei como hipóteses legítimas de intervenção. É importante ressaltar que, por se tratar de uma exceção, tais hipóteses de limitação devem ser bem definidas e fundamentadas, tanto nas decisões judiciais quanto nas legislações aplicáveis. (Torres, 2013).

Como indicamos previamente, a ponderação se dá no âmbito do Poder Judiciário, em casos de colisão de direitos, como no precedente citado (Caso Ellwanger). Quando falamos em regulação, além de limites, inclui-se o conceito de condicionamento do exercício. Tais condicionamentos “viabilizam o exercício do direito, ou seja, são normas materiais, organizatórias e procedimentais que estruturam e disciplinam”. (Torres, 2013, p.71)

Neste contexto, deve-se diferenciar o que a doutrina passou a denominar regulação de meio e regulação de conteúdo. A regulação de meio se refere às normas impostas às formas de expressão sem levar em consideração a substância ou o conteúdo da mensagem. Tais normas em geral se referem ao tempo, local e meio pelo qual se dá a comunicação. Por outro lado, a regulação de conteúdo se inserta no âmbito da substância do discurso, analisa o teor da mensagem (Hudson, 2021). As regulações de meio são presumidamente constitucionais, enquanto as regulações de conteúdo exigem um maior escrutínio a respeito de sua constitucionalidade. Segundo Jónatas Machado (2002):

De um modo geral, qualificam-se como condicionamentos às liberdades comunicativas constitucionalmente admissíveis as normas relativas ao lugar, tempo e modo do seu exercício. Já as normas que de alguma forma limitem a atividade comunicativa com base na natureza dos assuntos ou conteúdos ou dos pontos de vista comunicados são geralmente reconduzidas automaticamente para categoria das restrições e colocada sobre uma forte presunção de inconstitucionalidade, na medida em que têm a capacidade de alvejar e excluir, com maior precisão, pontos de vista determinados, considerados indesejáveis pela maioria política. (p. 712).

Em outras palavras, em um regime democrático, o Estado deve manter uma neutralidade ideológica, não adentrando no mérito do discurso. Como ressalta Fernanda Torres (2013):

Tais condicionamentos [à liberdade de expressão] devem manter uma posição de neutralidade quanto ao conteúdo dos discursos comunicativos, visto que limitações ao conteúdo da liberdade de expressão podem acarretar aos destinatários a privação do conhecimento de ideias diversas e também impedi-los de construir livremente sua própria opinião e as razões que a fundamentam. (p. 72).

A Constituição da República Federativa do Brasil (1988) prevê expressamente uma margem de regulação de meio no âmbito federal:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 3o Compete à lei federal:

I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

No que tange à regulação de conteúdo, para a consolidação de uma esfera pública plural e formação democrática da opinião, a regra deve ser de não interferência por parte do Estado nos conteúdos comunicativos mas que, pelo contrário, o ente estatal seja um agente propulsor e efetivador da diversidade de ideias, garantindo seu pleno exercício e circulação. Isso demanda, por exemplo, um aparato regulatório que garanta a pluralidade dos meios de comunicação, ampliando-se os canais comunicativos e viabilizando a expressão das minorias (Torres, 2013). Neste sentido, sobre a formação de uma esfera deliberativa democrática, Habermas (2003) destaca:

Quando se garante a pluralidade de participação na esfera pública, caminha-se em direção à igualdade de oportunidades comunicativas, vivenciada apenas por uma democracia avançada, desenvolvida no pilar do interesse público e não no domínio das forças econômicas. Para tanto, é preciso ter direito de acesso aos meios de comunicação, favorecendo aqueles grupos de pouca expressão, mas que enriquecem o cenário comunicativo com posições divergentes, ampliando as informações e possibilitando a problematização recíproca dos argumentos apresentados.

Como destacamos, a liberdade deve ser a regra, e a restrição, sua exceção. Sendo assim, é imperioso que as formas de restrição do discurso, seja por leis ou ponderações do Judiciário, devem obedecer critérios estritos estabelecidos previamente. A Corte Europeia de Direitos Humanos estabeleceu um rigoroso teste divido em três partes para qualquer restrição de conteúdo com base no direito internacional dos direitos humanos. A Corte observa que o primeiro e mais importante requisito do artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) é que qualquer interferência de uma autoridade pública no exercício da liberdade de expressão deve ser legal (La Rue, 2011).  O segundo parágrafo do artigo 10 estipula claramente que qualquer restrição à expressão deve ser “prescrita por lei” (CEDH, 1953). Se a interferência estiver de acordo com a lei, o objetivo da restrição deve ser legítimo – com base no Artigo 10 (2) – justificado com base no interesse da segurança nacional, bem-estar social, para prevenção de desordem ou crime, ou para a proteção dos direitos e liberdades individuais. Além disso, qualquer restrição deve ser aquela necessária em uma sociedade democrática e a interferência estatal deve corresponder a uma “demanda social urgente”4. Portanto, a resposta do Estado e as limitações previstas em lei devem ser “proporcionais ao objetivo legítimo perseguido”5. Desta forma, a necessidade das restrições de conteúdo deve ser estabelecida de forma convincente pelo Estado.

5.Liberdade de expressão na internet: o papel do Estado na moderação de conteúdos

As disputas sobre liberdade de expressão na internet são antigas. Em maio de 2000, em decisão histórica, um Tribunal Superior da França determinou que o até então gigante da internet Yahoo! bloqueasse usuários franceses de terem acesso a sites de venda de mobiliária nazista (UEJF & LICRA v. Yahoo!, 2000). Embora a Yahoo! não vendesse os bens diretamente, a plataforma disponibilizava acesso a tais serviços de forma global. A decisão do Tribunal se baseou nas leis e tradição jurídica francesa que proíbem a comercialização de objetos e manifestações racistas, impondo à empresa baseada na Califórnia uma multa diária pelo não cumprimento.

À época, a Yahoo! alegou impossibilidade técnica para executar a sentença que pretendia blindar o acesso de usuários na França aos produtos disponibilizados pelo site internacional. Após a sentença condenatória, a empresa ajuizou ação nos EUA para obter remédio judicial no seu país de origem, logrando assim uma decisão favorável de uma Corte Distrital nos EUA que considerou a sentença francesa não executável, com base na garantia constitucional da liberdade de expressão da Primeira Emenda da Constituição Americana (Okoniewski, 2002).

Este caso emblemático é apenas um exemplo de como as disputas internacionais sobre liberdade de expressão na internet podem ser complexas e, de fato, muitos outros casos surgiram nos últimos 20 anos, desde a resolução do Caso Yahoo!6 .Essas disputas jogaram os provedores de internet e plataformas em um limbo entre o paraíso e o inferno de jurisdições e leis aplicáveis em cada caso.

É importante observar que nem todo discurso nocivo ou ofensivo na internet cai dentro do espectro da ilegalidade. Em geral, a diferença entre um discurso ilegal e o nocivo é que o primeiro é criminalizado por leis internas, enquanto o segundo é considerado ofensivo, objetável ou indesejável, mas em geral não configura crime. Há de se considerar que a internet amplia de maneira exponencial as possibilidades de discurso que causem dano. Como já destacado pela Corte Europeia de Direitos Humanos (2011):

a Internet é uma ferramenta de informação e comunicação particularmente distinta da mídia impressa, em particular no que diz respeito à capacidade de armazenar e transmitir informações. A rede eletrônica que serve bilhões de usuários no mundo inteiro não está e potencialmente não pode estar sujeita à mesma regulamentação e controle. O risco de danos causados pelo conteúdo e pelas comunicações na Internet ao exercício e gozo dos direitos humanos e das liberdades, […] é certamente maior do que o representado pela imprensa. (para. 63).

Tal desafio é agravado pela complexidade apresentada pelas diferenças de legislação e contornos jurídicos dados em cada país na categorização e classificação de conteúdos como ilegais ou “danosos”. Estas diferenças a nível estatal sem dúvida complexificam a tarefa de harmonização de leis e abordagens no cenário internacional.

A recente decisão do STF toca justamente nesse tema: qual o regime de interpretação deve ser aplicado à liberdade de expressão e quais os limites possíveis de intervenção do Estado? Sem prejuízo das discussões sobre os limites de jurisdição e impacto global, analisaremos o caso sob uma perspectiva interna.

Como salientado acima, em sua decisão, o Ministro Alexandre de Moraes faz um juízo de ponderação entre normas constitucionais e, ao reafirmar que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, considera que neste caso o bloqueio de dezesseis contas de usuários de grandes plataformas digitais era medida razoável para interromper ataques de ódio e coibir futuros delitos.

As questões que se impõem na disputa podem ser analisadas no pronunciamento do próprio Facebook: a decisão viola a liberdade de expressão dos usuários? Há um poder legítimo por parte do Estado em bloquear diversas contas com base na proteção da ordem e estabilidade democrática? Embora tais indagações não sejam novas no âmbito do debate digital, sem sombra de dúvida o caso abre precedentes inéditos no Brasil sobre parâmetros de liberdade de expressão na internet.    Uma das perguntas plausíveis é se a decisão monocrática de um ministro, bloqueando acesso universal de contas a uma dezena de usuários é medida proporcional e alinhada com os parâmetros democráticos de proteção da liberdade de expressão. Considerado o acima exposto, analisaremos o teor da decisão em seu duplo alcance restritivo: quanto ao meio e quanto ao conteúdo.

5.a.Restrição quanto ao meio

No que tange à restrição de meio, temos ao menos três problemas: i) determinar o bloqueio universal das contas (deplatforming) e não a mera remoção de conteúdo ofensivo seria uma medida proporcional? ii) podemos considerar contas de usuários identificados como meros instrumentos de prática criminal? iii) tal interpretação não violaria o princípio da presunção de inocência destes usuários?

Em primeiro lugar, devemos avaliar se o bloqueio de acesso às contas é medida proporcional. O Marco Civil da Internet estabelece um regime de responsabilidade das plataformas baseado no crivo judicial, ou seja, as plataformas só podem ser responsabilizadas pelo descumprimento de ordem judicial. O artigo 19 declara expressamente que a lógica da lei visa assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura. Neste sentido, o próprio caput delimita a questão para estabelecer a responsabilidade dos provedores se “não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente” (Lei n. 12.965, 2014).

O artigo vai além ao definir no parágrafo 1º que “a ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.” (Lei n. 12.965, 2014). Pela exegese da lei, podemos inferir que o regime adotado no Brasil é o que preconiza a liberdade de expressão, em detrimento da censura. Ao dar poder regulador restritivo ao Poder Judiciário, a lei exige em contrapartida que as decisões judiciais sejam delimitadas ao conteúdo infringente. Isso significa que no âmbito do seu poder regulador, o Judiciário deve ser específico, delimitado e objetivo, evitando medidas generalizantes, sob pena de extrapolar suas competências. A lei cria um sistema de contrapesos interessantes entre o Estado e as plataformas, ao impor uma ratio onde a restrição é a exceção, e a liberdade, a regra.

No caso em análise, foram adicionadas diversas postagens ao inquérito como fins de instrução penal. As postagens variam entre ataques, xingamentos e críticas ao STF e seus ministros, o que na opinião de Moraes, revelavam um complexo esquema de notícias falsas por intermédio das redes sociais, “expondo a perigo de lesão, com suas notícias ofensivas e fraudulentas, a independência dos poderes e o Estado de Direito.” (INQ. 4781/DF, 2020, p. 11). Com base nessas informações, o Ministro decidiu não remover os conteúdos que considerou ofensivos da internet, mas bloquear as contas dos usuários como um todo. Ressalte-se que não apenas as contas dos usuários responsáveis diretamente pelas postagens, mas a decisão foi além ao determinar também o bloqueio de usuários potencialmente envolvidos no financiamento das atividades criminosas, mas que não eram responsáveis diretamente pelas postagens.7

Em segundo lugar, remover as contas como um todo significaria dizer que toda a conta era ilícita ou que estas eram usadas unicamente como ferramentas para os crimes? Não admitir isso significaria que o Judiciário determinou a remoção de conteúdos lícitos o que, na prática, representaria censura. Carlos Affonso Silva (2020) aponta que há um problema de proporcionalidade com uma ordem generalizante como esta, ao considerar que toda a conta do usuário é uma ferramenta para praticar ilícitos, podendo gerar um efeito de dissuasão na internet, fomentando mais ordens judiciais generalizantes.

Em terceiro lugar, considerar que tais contas seriam meros instrumentos de prática criminal, permite inferir que os usuários continuariam realizando postagens criminosas no futuro? Se a resposta for sim, corremos aqui o grave risco de criar um perigoso precedente de violação da presunção da inocência na internet.  Nesse sentido, Carlos Affonso (2020) aponta o problema em enunciar genericamente que o bloqueio visa a prevenir ilícitos futuros: estamos assumindo que as postagens são crimes, presumimos que os usuários seguirão cometendo crimes, e mais, que seguirão utilizando tais contas para isso? A nosso ver, tal inferência colide frontalmente com o princípio constitucional da presunção de inocência.

5.b.Restrição quanto ao conteúdo

Quanto à extensão da medida no que tange ao conteúdo das postagens temos as seguintes indagações: i) as postagens indicadas nos autos do Inquérito qualificam discurso de ódio? ii) haveria crime nas postagens? iii) tal conteúdo admite restrições ponderadas? Como indicado anteriormente, no Brasil, o STF adotou desde 2003, no Caso Ellwanger, a corrente democrática da liberdade de expressão para determinar que este direito não abarca manifestações de cunho racista ou que promovam o ódio (HC 82.424/RS, 2003). No entanto, o maior desafio reside justamente em definir o que de fato pode ser classificado como discurso de ódio para fins legítimos de limitação.

Para vislumbrar tais questões no caso concreto, vejamos o teor de algum dos trechos publicados pelos usuários bloqueados nas redes sociais questionados então pelo Ministro Moraes:

Mais que isso. Querem o caos. Estão querendo repetir 1968, onde o STF da época soltou a escumalha terrorista (não é mera coincidência), levando o governo da época a endurecer com o AI -5 para preservar a segurança nacional e institucional. Querem o mesmo agora pra nos acusar de golpe (@oofaka, 8 de novembro de 2019).

Não é só pela questão da 2ª instância nem pela soltura de Lula. É por tudo que Gilmar já fez e poderá fazer contra o Brasil. Ele é um dos homens mais poderosos do Brasil e crê ser imune à voz do povo. Não o é. Qnd o Sapão cair, iremos ao próximo: Toffoli (@bernardopkuster, 11 de novembro de 2019).

O STF, via Marco Aurélio Mello, acaba de rasgar mais uma vez a Constituição, dando a governadores e prefeitos o poder de restringir o direito de ir e vir de cidadão brasileiros. Temos então, com autorização da JUSTIÇA, DITADORES governando estados e cidades. Art. 142 Já (@oofaka, 24 de março de 2020). Governadores, prefeitos, ministros do STF, e líderes do Poder Legislativo são todos co-autores desses crimes de genocídio e lesa pátria ! Não sairão ilesos. Pagarão caro por isso nessa vida (@opropriofaka, 1o de abril de 2020).

Eu não tenho a menor dúvida que a cabeça da serpente do establishment brasileiro é o Gilmar Mendes e tudo é feito a partir da anuência dele. Não tem sujeito mais perigoso no Brasil que ele. O caso dele é julgamento por tribunal militar sob a acusação de traição a pátria (@Leitadas_Loen, 19 de abril de 2020).

Eu expliquei que ESTE tipo de interferência jurídica no Governo Federal iria ocorrer por causa da ação midiáticopolítica de Sérgio Moro, que ganhou força mediante a decisão monocrática de Alexandre de Moraes para suspender a nomeação do diretor da PF. Isto só vai aumentar. (@bernardopkuster, 1 de maio de 2020).

O STF hoje é o maior fator de instabilidade e insegurança jurídica no país. Está claramente a serviço da bandidagem e ignora a Constituição ao inventar interpretação contra a lei. Primeiro criou um crime sem lei e agora inventa teses para anular sentenças da Lavajato (Perfil BiaKicis, 5 de maio de 2020).

Recado aos Ministros do STF: não brinquem com a Lava Jato, ou nós vamos derrubar CADA UM DOS SENHORES (Perfil @ZambelliOficial, 14 de março de 2019).

O Ministro Toffoli tinha a grande chance de tentar recuperar a imagem já desgastada do STF. Preferiu terminar de jogar a imagem da Corte na Lama. #STFVergonhaNacional (Perfil @filipebarrost, 8 de novembro de 2019).

(…)

Fui treinada na Ucrânia e digo: chegou a hora de ucranizar! (Perfil @_Sarawinter, 20 de abril de 2020).

Já passou da hora de contarmos com as forças armadas. Passou ! (Perfil @DanielPMERJ, 19 de abril de 2020).

Hoje foi o dia que mais vi vagabundo falando de constituição. Para eles só não vale a parte em que todo poder emana do povo (Perfil @cabojunioamaral, 19 de abril de 2020). (…) (INQ 4781/DF, 2020, pp. 7-9)

Com base nestas informações, passemos à análise jurídica de tais fragmentos. A literatura jurídica clássica define o discurso de ódio como palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas. (Zimmer, 2007). Tradicionalmente, o conceito se desenvolveu para classificar formas de expressão abusivas que incitem a violência contra indivíduos ou a um grupo de indivíduos baseado em sua condição social, geralmente inferiorizada. (Coliver, 1992).

Alguns autores defendem que o discurso de ódio se compõe de dois elementos básicos: discriminação e externalidade, ou seja, ademais da explícita manifestação, para caracterizar-se como tal, o discurso de ódio deve manifestar discriminação, marcado pelo desprezo por pessoas que compartilham de alguma característica que as torna componentes de um grupo social (Silva, 2011) ou de determinada coletividade marcada por semelhanças próprias, em desvantagem frente à ordem social dominante. Nessa interpretação, o foco central do discurso de ódio é a desvalorização do outro como sujeito de direitos, por isso alguns autores defendem que, para que se caracterize, é necessário que haja o desrespeito e o desejo de marginalizar o diferente ou sua condição, e não um mero desagrado quanto a sua existência. (Paixão, 2018).

Embora o STF já tenha decidido que certos limites são oponíveis à liberdade de expressão, o Tribunal até hoje não esmiuçou o conceito e a definição do que chamamos “discurso de ódio”. Com efeito, recentemente, a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pedindo que o Supremo estabeleça os parâmetros de diferença entre discurso de ódio e liberdade de expressão.8 No entanto, enquanto não temos a conceitualização expressa do Supremo, valemo-nos da hermenêutica jurídica, utilizando fontes do direito comparado para vislumbrar esta questão.

Na tradição jurídica alemã – responsável pelo desenvolvimento de grande parte dos conceitos da teoria democrática da liberdade de expressão – o discurso de ódio se traduz na difamação de grupos ou no insulto coletivo, e no incitamento ao ódio. No Código Penal Alemão, para qualificação da difamação de grupos são necessários quatro requisitos:  1) o grupo que é atacado deve ser um grupo pequeno, em vez de grande; 2) as características do grupo devem diferir das do público em geral; 3) a declaração difamatória deve atacar a todos os membros do grupo, em vez de membros individualmente ou típicos, e 4) a crítica derrogatória deve ser fundada em critérios inalteráveis ou em critérios que são atribuídos ao grupo pela sociedade maior que o rodeia, em vez de pelo próprio grupo, especialmente características étnicas, raciais, físicas ou mentais.(Brugger, 2007).

Na tradição jurídica dos Estados Unidos – cânone da tradição libertária – as hipóteses que permitem a regulação do Estado sobre discurso de ódio são nos casos em que este esteja imbuído de conteúdo ameaçador ou intimidatório, incitando o interlocutor à violência ou ato ilegal. Para ser qualificado como ameaçador, o discurso deve ter como objetivo “infligir punição, perda ou dor a outrem ou gerar dano a outrem pela comissão de algum ato ilegal” (Breckheimer, 2001, p. 1507). Ademais, para ser punível, o discurso deve ser considerado como uma ameaça “real”, ou seja, aquela na qual uma pessoa razoável anteveria uma intenção crível e séria de prejudicar ou agredir (Breckheimer, 2001).

Nesta linha, o discurso intimidador seria o discurso persistente e pernicioso, que inflige danos emocionais ou físicos significativos, e é dirigido a um indivíduo específico. Para qualificar incitamento à violência na tradição libertária, o critério de aplicação é bastante alto, tendo a Suprema Corte dos EUA definido que tal intervenção só é possível nos casos de iminência da ilegalidade, ou seja, nos casos em que haja uma indução imediata ao ato de violência. (Breckheimer, 2001).

Embora o Brasil siga a corrente democrática, o caso tem nítidas conexões com a teoria libertária, uma vez que as plataformas demandadas têm origem e maior parte de seus servidores nos EUA. Deste modo, a partir das referidas postagens, caberiam as seguintes indagações: podem os ministros do STF ou o próprio Supremo serem considerados grupo social passível de discriminaçao ou ódio? Teriam as referidas postagens o condão de ameaçar, intimidar ou incitar a violência concreta contra o Supremo?

Quanto ao primeiro quesito, no que se refere à conformação do grupo social, parece haver um consenso na doutrina e jurisprudência internacionais de que a limitação ao discurso de ódio visa proteger grupos vulneráveis socialmente, ou melhor, aqueles que não se enquadram dentro do modelo dominante de sujeito social: homem, branco, heterossexual, burguês e proprietário. (Rios, 2008). Alguns autores têm adotado uma interpretação abrangente para qualificar o discurso do ódio como a manifestação de ideias intolerantes, preconceituosas e discriminatórias contra indivíduos ou grupos vulneráveis, em razão dos seguintes critérios: idade, sexo, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idioma, religião, identidade cultural, opinião política ou de outra natureza física e mental que defina uma exclusão social. (Schafer, 2015).

Neste sentido, a partir da revisão de literatura realizada, não encontramos elementos que permitissem classificar pessoas públicas, tais como ministros de Estado, políticos ou demais personalidades do alto escalão do governo como um grupo socialmente identificado por questões imanentes, unido por características pessoais compartilháveis para além de seus cargos ou funções públicas, que possam classificá-los como sujeitos passíveis de discurso de ódio enquanto grupo social. Tampouco foram encontrados argumentos que permitissem classificar as instituições políticas democráticas em si como sujeitos passivos de tal discurso.

O jurista e professor Lênio Streck (2020), em recente artigo defendeu a constitucionalidade da referida decisão, argumentando que em nome da liberdade de expressão, não se pode defender acabar com ela, vedando-se como condição de possibilidade que em nome de uma suposta liberdade de expressão alguém se volte exatamente contra as próprias bases do Estado Democrático de Direito. No entanto, apesar da tese de autoproteção defendida pelo autor, não encontramos ali elementos necessários que permitissem identificar as instituições de Estado como sujeitos passivos de discurso de ódio.

Quanto ao segundo quesito, sobre a potencialidade da ameaça, concordamos com a professora Clarissa Gross, coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia da FGV Direito SP, segundo a qual as postagens indicadas no inquérito não têm o condão de representar uma ameaça real aos ministros ou ao Supremo. Segundo a professora, no discurso de ódio “a ameaça tem que ser crível. Ela tem que ser feita por alguém num contexto que traga indícios que de fato a pessoa terá condições de tomar medidas para impedir o exercício da magistratura pelos ministros do STF”. (Galf, 2020)

Ao contrário de Lenio Streck, Gross defende que os discursos que defendem o fechamento do Supremo deveriam ser protegidos pela liberdade de expressão. Na visão da professora, a ameaça punível pelo direito é a ameaça crível – ou seja, que tem condições de se materializar – não simplesmente esbravejar em rede social. Ela vai além, ao defender que o discurso que reivindica o fechamento do STF está amparado pelo livre exercício da liberdade de expressão e afirma que:

a defesa de convicções que contrariam a tese de base do Estado Democrático de Direito não viola por si só esse Estado Democrático de Direito e o seu funcionamento. A proteção da liberdade de advogar por essas ideias faz parte da liberdade de expressão em um Estado Democrático de Direito. (Galf, 2020).

A título de exemplo, Gross indica que estariam abrangidos pela liberdade de expressão dentro do debate democrático a defesa de teses comunistas e anarquistas, que pregam desde a ditadura do proletariado ao fim do Estado como entidade autônoma e supranacional – ideais as quais dignamente protegemos. Sendo assim, a decisão do Supremo extrapolaria os limites de ambas as vertentes, seja democrática ou libertária.

6.Conclusão

A partir dos parâmetros universais analisados e os limites constitucionais impostos ao próprio Supremo, concluímos que a decisão que determinou o bloqueio global das contas de usuários nas mídias sociais viola a liberdade de expressão de tais usuários e pode gerar efeitos deletérios para a liberdade de expressão no Brasil.  Entendemos que pessoas públicas como ministros de Estado, nestas funções, não qualificam grupo social passível de discurso de ódio. Por outro lado, entendemos também que postagens que meramente esbravejam insatisfações políticas na internet não configuram uma ameaça crível e plausível de ilegalidade e, portanto, não constituem discurso de ódio. Os posts transcritos na decisão do Ministro não revelam qualquer estratégia ou crítica estrutural que permita inferir uma tentativa concreta de desmantelamento do Estado Democrático, além de esdrúxulas vociferações raivosas contra os ministros e instituições do Estado.

Embora não concordemos com tais comentários, postagens e práticas virtuais, e acreditemos que tais atitudes não contribuem para um ambiente digital saudável, entendemos que estes comportamentos – infelizmente – fazem parte da dinâmica das redes e constituem o complexo ambiente dialético das sociedades contemporâneas conectadas. Embora a falta de cordialidade digital seja uma mazela, permitir críticas ao Estado, seus funcionários e propor outras formas de organização e política fazem parte do extenso leque democrático.

Diante de tais argumentos, entendemos que a aludida decisão adotada pelo Ministro Moraes é medida que extrapola as competências do Poder Judiciário, imbuída de viés autoritário que viola a liberdade de expressão dos usuários e pode gerar um efeito de dissuasão nas redes. Isso porque não encontramos ali ameaça crível passível de punição, e tampouco ideias que pudessem violar direitos de minorias ou ferir outros direitos subjetivos a serem constitucionalmente tutelados.

Por fim, ainda que dentro de um juízo de ponderação se inferisse que tais discursos devem ser regulados – hipótese que acreditamos não estar configurada neste caso – o controle deveria se ater de forma explícita e delimitada ao discurso com potencial lesivo, mas jamais permitir uma decisão difusa e generalizada para bloquear o acesso de uma dezena de contas digitais universalmente. Tal decisão é desproporcional, extrapola a competência da justiça brasileira e representa uma ameaça aos direitos de liberdade de expressão na internet no Brasil e no mundo.

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Erick Curvelo

Advogado internacional de direitos humanos, graduado em Direito UFRJ, mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade das Nações Unidas, Pós graduando em Direitos Digitais pelo ITS e UERJ.