Resumo
Obra literária do coletivo ¿uai, por qué no?, trata-se de crônica e de colagem digital que refletem a respeito da função do perfil digital como um modo de ser e de se viver no mundo contemporâneo. O que acontece quando parte da nossa convivência no mundo é condicionada à interação via telas? E quais as consequências imaginárias de quando uma pessoa resolve eliminar sua existência no mundo digital?
non-digito, ergo non-sum
Um dia, finalmente! Jean disse dane-se.
Jogou o aparelho celular contra a parede como seu primeiro ato de rebelião.
Não demorou pra perceber que caiu no clichê das rebeliões espontâneas: a maldição da falta de eficácia.
Se quisesse completar seu ato de irreverência contra o Século XXI, precisaria de agir de maneira um pouco mais programada.
Abriu o computador – ainda intacto – e manipulou os botões com cautela.
Configurações.
Deletar perfil.
Você tem certeza?
Sim.
Quer mesmo fazer isso?
Sim.
Prove que você não é um robô.
Placas de trânsito devidamente selecionadas.
Comprove sua identidade.
Análise biométrica afirmativa.
Atenção: esse ato é irreversível.
É isso que eu espero.
Estava livre.
A ausência voluntária foi como inexistir.
Não recebia convites para cinema, boteco, nem festa de aniversário – afinal, como poderia? O endereço do apartamento da família de Jean não possuía dado geográfico vinculado ao seu nome em nenhum mapa virtual disponível para acesso público. Se os eletrônicos diziam que o 3º andar do Edifício Solar se encontrava totalmente desocupado, era porque o 3º andar do Edifício Solar se encontrava totalmente desocupado.
Para todos os efeitos, Jean não existia mais em nenhuma forma verbal disponível: não estava; logo, não era.
No começo. esperou que alguém aparecesse – esperou de verdade, mesmo que mentisse pra si mesmo dizendo que aquilo era bobagem, que vivia bem sozinho. Alma orgulhosa.
Fantasiava.
Que algum amigo antigo lhe batesse na porta, dizendo mas é claro que sei onde você mora, você me recebeu aqui há três semanas no máximo, vim checar como você está! que bom que está bem, de verdade, que bom te ver vivo.
Passou uma semana, Jean disse que era cedo demais.
Passaram duas, Jean quebrou um prato antigo e praguejou baixinho contra si, enquanto limpava os cacos com as mãos.
Passaram três, Jean-que-queria-desistir tentou convencer Jean-que-queria-provar-um-ponto a restabelecer sua conexão com a Internet. O Jean-que-queria-desistir acabou desistindo ele próprio, depois de quarenta minutos de música de espera infernal na chamada para a operadora.
Passaram quatro, Jean decidiu ler um pouco toda vez que ficasse triste. Ler foi uma boa maneira de conversar com gente do passado.
Passaram cinco, Jean percebeu, finalmente!, que ninguém dava a mínima.
A realização foi reconfortante: o Jean-que-queria-provar-um-ponto finalmente encontrou o ponto que queria provar: de que liberdade tinha algo a ver com a possibilidade de escolha das suas próprias motivações.
Havia tirado dos ombros os olhinhos espiões de milhares de curiosos e, dali, nasceu uma solidão podre. O podre se transmutou em raiva, se alterou em tristeza e se dissolveu, finalmente!, em vontade de conviver consigo mesmo.
Voltou a sorrir depois disso.
Liliane escolhia os tomates com o cuidado de quem lida com uma obra de arte antiga. Aquele era um dos seus prazeres particulares – sair de casa, respirar a rua, ir à feira de domingo e escolher tomates. A feira, pouco agitada, subsistia apenas pelo saudosismo de outros como ela – um acontecimento exótico no Centro de Belo Horizonte, resquícios de um tempo que já não era mais presente.
A infância no interior tornou difícil para a garota se acostumar com o hábito de pedidos de frutas pelo telefone celular. Frutas descascadas, cortadas e embaladas hermeticamente, entregues bem na porta de sua casa. Frutas que ela não poderia ter certeza se nasceram de uma horta ou se produzidas por uma máquina de clonagem – sempre na mesma embalagem, sempre do mesmo tamanho, sempre cortadas igual. A cidade grande parecia um ambiente hostil à natureza, confinada em alguns parques e praças que faziam o terror do mercado imobiliário pela sua localização central. Se pudessem, cimentavam tudo. Às vezes se perguntava se não podiam, não queriam ou se somente não havia chegado a hora.
Liliane apertou o tomate fresco entre os dedos, com gosto e o que viu. logo em seguida. fez com que apertasse o tomate tão forte que o mesmo se desfez em suco na sua mão. Assustada, caminhou para fora da feira, passos rápidos, sem olhar para trás. Respira, respira, não pira. Contava a respiração para se acalmar, 1 inspira, 2 expira, a frase que a irmã mais velha costumava dizer ressoando em sua cabeça, respira, respira, não pira.
Foi só dentro do carro que Liliane notou os destroços de tomate escorrendo entre seus dedos.
Com sete relatos das aparições de Jean Machado, produzidos por fontes independentes que não conheciam umas às outras, um drama narrativo muito peculiar da contação de histórias da usuária @sloudownanna, e um depoimento emocionado de Lena Machado, prima1 de Jean que dizia que o rapaz teria vindo a ela em sonho pedir ajuda para passar desse plano para o outro, a thread foi um completo sucesso. De particular sucesso foi a história sobre a explosão em massa de tomates causadas pela simples aparição de Jean em uma das feiras orgânicas da cidade. As redes sociais da Prefeitura de Belo Horizonte chegaram a postar um alerta de segurança no Dia Das Bruxas, que dava informações práticas sobre como se proceder ao se deparar com o fantasma de Jean Machado – decisão de marketing motivada pelo perfil engraçadinho do estagiário responsável por administrar a comunicação.
Em vocabulário mais adequado, podemos resumir da seguinte forma:
Jean viralizou.
1 Não havia qualquer comprovação que Lena fosse prima de Jean, ou que existisse qualquer ligação entre essas duas pessoas, fora esse tal sobrenome Machado compartilhado pelos dois. Se tivessem perguntado a Jean², ele diria que não conhecia Lena, que tinha pouquíssimos primos, todos do interior, e que o sobrenome Machado era comum demais para que tantas pessoas tivessem caído naquela conversinha boba.
2 Ninguém perguntou à Jean.
Pode ser que Jean tenha, de fato, optado pela conversão de sua existência em pó – tudo depende da sua definição pessoal para a palavra existência, substantivo controverso.
O que se pode dizer com certeza: mesmo depois que Jean Machado concretizou “A Partida”, a janelinha do 3º andar do Edifício Solar continuava a se acender religiosamente, às 19h, todos os dias.
O mesmo ritual de antes, dos tempos em que Jean ainda existia.
Quem subir a Rua dos Guajajaras, dobrar o pescoço para trás e erguer os olhos para se permitir inspecionar o cair da noite sobre o Edifício Solar, verá, logo ali, no terceiro andar – tão perto da rua! – a sombra de Jean sentado à janela. Vai perceber olhos lentos que contemplam o passear do mundo e o ritmo compassado dos lábios que bebiscam seu café.
Se for do tipo corajoso e experimentar a vontade de caçar o fantasma, talvez se admire: não porque emite luzes roxas, tem cara pálida ou flutua a alguns centímetros do chão, como tão frequentemente se diz por aí.
Talvez te admire o fato de Jean, esse homem-fantasma-espectro-que-seja, parecer, envolto no silêncio que aprendeu a chamar de seu, o único proprietário de todo o tempo do mundo.