<span class="sans"></span>Governança da internet, sociedade da informação e afrocentricidade

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Bianca Kremer

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volume 4 / número 2 / dez 2023 ↘ Artigo

Governança da internet, sociedade da informação e afrocentricidade

Bianca Kremer

Resumo

O artigo propõe uma análise afrocentrada sobre o que se entende por sociedade da informação e governança da internet. Falar em sociedade da informação e seus alegados benefícios conglobantes e civilizatórios, perpassa reconhecer a internet como território em disputa e espaço de poder. De modo que a qualidade de ser ou não “globalizado” e “conectado” só faz sentido dentro de uma gramática, percebida e mobilizada de modos distintos a partir das experiências vividas dos sujeitos que disputam esses espaços e suas narrativas. Reconhecer os fatores de poder pelos quais a racialidade exerce influência, pertencimento e capacidade de articulação na governança da internet. Utilizando um processo metodológico de revisão bibliográfica, a pesquisa traz a categoria teórica da afrocentricidade, cunhada por Molefi Asante, como lente de análise e proposta epistemológica. Levando a sério os desafios da autoinscrição do negro na sociedade da informação e nos debates sobre governança da internet nos cenários brasileiro e internacional.

1. Governança da internet, sociedade da informação e afrocentricidade

Transformações geopolíticas e econômicas têm modificado o papel da tecnologia no contexto social das últimas décadas. A informação tem sido considerada um ponto central da sociedade contemporânea que, atravessada por mudanças significativas, levou alguns autores2 a defender a existência de uma nova ordem: a Sociedade da Informação.
Esse modelo de sociedade se apoia em novos quadros de desenvolvimento econômico, social e cultural decorrentes do processo de globalização, tendo as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como definição de um novo paradigma. Dentro dele, indivíduos estariam em um estado contínuo de hiperconectividade, i.e., em absoluta disponibilidade e aptidão para se comunicarem a qualquer momento. Além de as pessoas estarem conectadas todo o tempo (always-on), também se mostram prontamente acessíveis (readily accessible), produzem riqueza de informações, e promovem interatividade e armazenamento ininterrupto de dados (always recording)3 .

A sociedade da informação se mostra um modelo apoiado no processo de globalização: a rede global das redes globais4 , que funciona como um espaço de uniformização de conteúdo dentro do qual se articulam as atividades estruturantes das sociedades em termos sociais, econômicos, jurídicos e tecnológicos. A sociedade da informação define as TICs como um novo paradigma para a irrupção de diferentes cenários do que se convencionou denominar desenvolvimento tecnológico.

Ao longo da trilogia A Era da Informação: economia, sociedade e cultura (1996-2000), Manuel Castells apresenta uma tendência que entende decisiva para a configuração do mundo como o conhecemos: a contradição entre globalização e identidade. Para ele, a globalização consiste em uma rede global de redes globais nas quais se integra o essencial das finanças, da economia, da comunicação, do poder, da ciência e da tecnologia. Ao passo que a identidade diz respeito às subjetividades dos cidadãos: raízes históricas, geográficas, culturais, valores, etc.

Para Castells, não é por acaso que as elites dominantes no planeta se intitulam cidadãos do mundo5 , pois qualquer atividade relevante no mundo gravita em direção a essas redes, e nelas se concentra toda uma estrutura de poder. Por outro lado, os sistemas culturais são construídos a partir de territórios, idiomas, religião e outros referenciais cotidianos. Isso significa que a lógica das redes penetra nas comunas culturais sem chegar a dissolvê-las, mas as pessoas não detêm capacidade de agir institucionalmente sobre o processo de governabilidade dessas redes dominantes.

Por sua força gravitacional dominante, as redes globais acabam por (re)definir o destino dos povos, atravessando as subjetividades dos cidadãos (raízes históricas, geográficas, culturais e morais) pela organização política do mundo neoliberal – agora hiperconectado. A tecnologia da informação, segundo Castells, seria definida como o novo grande paradigma moderno no contexto da Sociedade da Informação.

As contribuições de Castells possuem grande relevância para compreendermos o mundo em termos informacionais e comunicacionais, em perspectiva crítica. De modo que as dinâmicas de poder em jogo demonstram as razões pelas quais o binômio conectividade-coletividade, tão celebrado pela cultura do Vale do Silício nos anos 1990, não se concretizou para os sujeitos moídos pela colonialidade. A primeira delas relaciona-se ao horizonte normativo neoliberal dos Estados Unidos para a sociedade da informação durante a década de 1990, que vingou como orientação político-ideológica para o tratamento da informação e comunicação, desaguando na Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação nos anos 20006 . Já a segunda, diz respeito às cumplicidades do discurso multissetorial com o pacto da branquitude na reprodução dessas violências no seio do sistema internacional.

Em 2003 e 2005 a Organização das Nações Unidas (ONU) patrocinou dois eventos em Genebra e Túnis, que foram a Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação (the World Summit on the Information Society – WSIS). Uma cúpula para abordar questões de TICs, liderada pela União Internacional de Telecomunicações (UIT) e relacionada com a UNESCO, com o objetivo de discutir os objetivos da sociedade da informação e da rede mundial de computadores. Tendo as autoridades presentes sido chamadas a decidir se a internet e sua infraestrutura seriam consideradas elementos de uma esfera pública mundial ou se prevaleceria, nas palavras de Sergio Amadeu, “a visão de que a sociedade da informação é e sempre será um hipermercado mundial”7 .

Isto porque, à época, a agenda neoliberal marcada pelo determinismo tecnológico e o viés economicista para explicar a revolução informacional ganhava forte expressão no setor de telecomunicações8 . Da década de 1970 até o final da década de 1990, a governança da internet se mostrava restrita a atividades conduzidas por militares e cientistas de universidades estadunidenses. No início dos anos 1980, a internet ainda estava sob controle militar, e consistia em redes operacionais e de pesquisa ainda bastante experimentais9 . Sua popularização se deu a partir da década de 1990, quando a governança da internet passou por um processo de institucionalização complexo existente, paralelamente, nos planos doméstico, regional e internacional. Em que se determinava a forma de organização e controle dos recursos críticos de internet, bem como os direitos e deveres dos diferentes atores conectados à Rede10 .

Dos encontros da Cúpula resultou a criação do anual e multissetorial Fórum de Governança da Internet (Internet Governance Forum – IGF), que viabiliza discussões globais de políticas públicas digitais e, atualmente, está em seu 18º ano. O IGF não produz resultados negociados e, entre essa e outras razões de competência jurídica e de soberania, não possui poder de enforcement. Mas tem por objetivo informar e inspirar atores-chave com poder de decisão política, nos setores público e privado, na promulgação de políticas substanciais e norteadoras para administração e design das tecnologias necessárias para manter a internet operacional em todo o mundo.

Um dos principais pontos da agenda da Cúpula era a diminuição da denominada “exclusão digital”, que separava países ricos e pobres, e a ampliação do acesso à internet no que se entendia por “mundo em desenvolvimento”11 . Para tanto, contou-se com a participação de 175 países na primeira fase, adotando uma declaração de princípios12 e um plano de ação, que consistia na meta de que ao menos 50% da população mundial teria acesso à internet em 201513 . Figuraram entre as principais divergências nas negociações multilaterais a criação de um fundo de solidariedade digital; o exercício de privacidade e liberdade na rede; bem como questões relativas à gestão da internet14 .

O fundo de solidariedade digital exigia um compromisso financeiro por parte dos países mais ricos, mas foi negado de pronto. Questões relativas à liberdade e privacidade não avançaram sob o pretexto de cibersegurança no contexto pós 11 de setembro de 2001 e luta contra o terrorismo. Quanto ao modo de governança e gestão da internet, todo o debate foi circunscrito ao chamado G815 , sem concessões16 , e a ICANN17 foi transformada em órgão global, com completa autoridade sobre o gerenciamento de DNS18 .

Quando falamos de governança da internet, existe hoje uma ampla discussão sobre as assimetrias que residem nos espaços participativos deste campo de conhecimento e atuação. Seja em contexto global ou local, desigualdades estruturais nas atividades de governança por território19, gênero20 , raça21 e sexualidade22 vêm sendo amplamente denunciadas nos últimos 15 anos.

Sobre arquitetura da internet e seus conflitos: nenhuma entidade “administra” a Internet sozinha. Há vários sujeitos que afetam e são afetados pelo seu desenvolvimento e manutenção, são os chamados “atores da governança da internet”. Termo adotado pelo Working Group on Internet Governance (WGIG) entre 2003 e 2005 para designar pessoas e entidades que delineiam a evolução e o uso da internet. Sendo considerados atores principais: o governo, as empresas, o meio acadêmico, a comunidade técnica, a sociedade civil e também agências internacionais. Cada um deles desempenha um papel diferente nas esferas nacional, regional e global da governança da internet. De modo que a prática do multissetorialismo propõe a realização de discussões horizontalizadas entre diferentes partes interessadas, visando a tomada de decisão e a construção de políticas públicas para a evolução da internet em benefício da sociedade23 .

Atualmente a governança da internet é entendida como um conjunto de processos multidisciplinares e de participação multissetorial para discutir, não apenas as dimensões tecnopolíticas24 da rede, mas também desenvolver e executar princípios, normas, regras e procedimentos decisórios25 . Refere-se à formulação de políticas, padrões e práticas que coordenam e moldam o ciberespaço global, em um processo no qual seus participantes solucionam conflitos sobre problemas que dele advenham.

Há relação direta a assimetria de participação e a infraestrutura de funcionamento da governança pois ela carrega consigo disputas políticas e econômicas, sobretudo com as discrepâncias entre os países do norte e sul global na capacidade de incidência direta em processos de tomada de decisão26 . Trazendo severas implicações no acesso ao conhecimento, na inovação e na garantia de direitos individuais e coletivos em diferentes territórios.

A Cúpula Mundial de 2003 e 2005 colocou oficialmente a questão da governança da internet na agenda diplomática. E a internet, que começou como um projeto de governo em 1970 e enfrentou disputas sobre sua abordagem descentralizada até 1998 (com a criação da ICANN para administração do sistema de nomes de domínio – DNS), finalmente trazia promessas de uma verdadeira cooperação digital global. Com a visão de construir sociedades da informação e do conhecimento centradas nas pessoas, inclusivas e orientadas para o desenvolvimento. O que poderia dar errado?

As próprias fragilidades do sistema internacional para dar conta dessa agenda. O direito internacional, enquanto estrutura normativa, possui graves problemas a serem resolvidos em relação ao racismo e ao debate racial, o que resvala nos debates sobre governança da internet. Em especial, a lógica de subordinação e hierarquização racial que constitui elemento estrutural do sistema-mundo moderno-colonial27 .

No espectro da colonialidade, se produziu um binômio que divide o mundo entre civilização e barbárie. As TICs se formaram como paradigma da Sociedade da Informação e alguns compromissos vem sendo timidamente assumidos na ordem do sistema internacional em prol do combate à exclusão digital nos países mais pobres. Mas o sistema internacional traz como pressuposto de sua existência a produção de uma cisão. De um lado, os Estados eurocêntricos, detentores de soberania, controle de mercado e cujos nacionais gozam do status de sujeito. Do outro, os territórios que sofreram os impactos do colonialismo, alijados de humanidade, de capacidade de expansão econômica e da sua própria história”2829 .

Sob o manto do barbarismo e da codificação de diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça30 , o sistema internacional e seu aparato institucional operam para construção de suas agendas. Os Estados-Nação se estruturaram no modelo colonial em seu processo de construção, de modo a reforçar a humanidade de uns em detrimento de outros, e hierarquizá-la em termos étnico-raciais . De um lado, os civilizados e racionais, notadamente os europeus; de outro, os bárbaros e selvagens indígenas e negros31, em um processo cruel de hierarquização de humanidades que estruturou o sistema-mundo moderno.

As declarações de direitos humanos, no geral, não se propõem ao mundo herdado com o projeto colonial de modernidade, e sim a um mundo idealizado. No Brasil, a situação se agrava ao que a convicção na universalidade e neutralidade dos direitos humanos se associa ao compartilhamento do mito da democracia racial. O resultado é o esvaziamento desses mecanismos jurídicos na promoção do enfrentamento das desigualdades raciais32 . Thula Pires sustenta que a crença nas ideias de universalidade e neutralidade dos direitos humanos produziram uma apropriação dessa agenda de forma hierarquizada e violenta para grupos sociais minorizados e alijados dos bens materiais e simbólicos para o bem viver33 .

Nesse sentido, sob a ótica de disputa por uma decolonialidade de perspectiva negra na governança da internet, traço um paralelo entre o que Castells entende como crise do Estado-Nação e Globalização, e a lógica desses conceitos à luz da colonialidade do poder, desenvolvida por Aníbal Quijano, e da afrocentricidade, de Molefi Asante.

Os estudos decoloniais partem do questionamento das estruturas de dominação coloniais que moldaram essas sociedades, e representam um importante empreendimento para refundar as relações de poder nas Américas, colocando em questão três dimensões consolidadas34 : a colonialidade do poder35 , a colonialidade do ser36 e a colonialidade do saber37 . Trata-se de uma abordagem que trabalha a origem e a continuidade das estruturas de dominação econômicas, políticas e culturais fundadas no período colonial, e reproduzidas na contemporaneidade38 .

A concentração de capital e a distribuição dos recursos para efetivação do que outrora fora idealizado na declaração de princípios da Cúpula Mundial estão de lados opostos – e não por acaso. Em aspectos materiais, a construção de uma Sociedade da Informação inclusiva e orientada ao desenvolvimento não é acessível a todos os sujeitos. Algo que ilustra bem o argumento e traz materialidade é a diminuição de participantes africanos no IGF de 2023, realizado no Japão, em -36% em comparação ao ano anterior, realizado na Ethiopia39 . Muito além da mera distância física e indisposição para viagens longas, não são consideradas para políticas de isonomia participativa as limitações de recursos e aspectos migratórios em fronteiras. Processo no qual uma série de participantes têm inviabilizada a concessão de visto ou a sua entrada no país em virtude de sua nacionalidade.

A globalização em curso culmina em um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado, um novo padrão de poder mundial40 que tem como um de seus eixos fundamentais a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça. E a colonialidade do poder, que se estrutura a partir da ideia de raça, segue estabelecendo divisões raciais em diversas frentes: na organização do trabalho, na organização do Estado, nas relações intersubjetivas e na produção do conhecimento41. Trata-se de uma construção mental que permeia as dimensões mais importantes do poder mundial até os dias atuais, e estende seus efeitos ao que herdamos como desenvolvimentismo e produção de tecnologia.

Não há como se falar em aproveitamento do potencial das TICs para promoção de metas de desenvolvimento nas Declarações de princípios sem reconhecer os fatores de poder pelos quais o eurocentrismo exerce influência, bem como que a qualidade de ser ou não “globalizado” só faz sentido dentro de uma gramática. Da lógica de Redes é esperado que produza efeitos universalizantes, e que as atividades “relevantes” no mundo gravitem em sua direção, justamente à medida que a esse padrão eurocêntrico não é questionado, pois tomado como referência universal.

Por essas e outras razões, muitas das críticas endereçadas aos debates e discussões conduzidas nos fóruns internacionais de governança da internet sobre a ausência da pauta racial, ano a ano, se mostram esvaziadas. Os IGFs replicam as dinâmicas de direito internacional. De um lado, quando a pauta é silenciada, se baseia na ideia de um sujeito de direito universal no contexto da sociedade da informação, e portanto, não racializado. De outro lado, ao abordar o racismo e a discriminação racial42, “não o fazem buscando combatê-los em sua dimensão estrutural e nem com o objetivo de pôr fim às desigualdades raciais que dão base às relações de exploração-desumanização dentro dos Estados e na esfera política global”43. É um processo de dupla perda da pauta: apagamento ou esvaziamento. Por absoluto descompromisso real em enfrentar o estado de coisas que o legado da colonialidade nos deixou, também no contexto das TICs.

É importante considerar os processos de assimilação e aculturação violentos empreendidos pelo colonialismo44 para a formação da sociedade da informação que herdamos. A suposta indiferença face à identidade racial dos indivíduos na Rede das redes produz a naturalização da subcidadania e a perversa utilização de características étnico-raciais como mecanismo de exclusão45 na produção, desenvolvimento e adoção das novas tecnologias. Como resistir ao esvaziamento da pauta racial na construção de uma governança da internet verdadeiramente inclusiva, se a força motriz da colonialidade inscrita nesses processos políticos e espaços de poder sempre foi (e ainda é) a cisão?

Para que a governança da internet e a sociedade da informação façam algum sentido na experiência colonial, bens como conexão, cidadania global, identidade, raízes históricas e humanidade precisam ser pensados a partir de um lugar de crítica ao eurocentrismo e à sua adoção como modelo de universalidade. A população negra dita por ela mesma nesses espaços, fazendo uma oposição de resistência às cumplicidades do discurso da integração e da conectividade na reprodução de violências que recaem sobre ela.

A esse lugar de crítica sugeri como farol de investigação a afrocentricidade, categoria que foi desenvolvida na década de 80 com a publicação do livro Afrocentricidade, de Molefi Asante, seguido pela obra A Ideia Afrocêntrica, de 1987, e Kemet, Afrocentricidade e Conhecimento, de 1990. Sua essência está na afirmativa de que africanos devem operar como agentes autoconscientes, rejeitando a definição e manipulação externa, ao mesmo tempo em que controlam, cada vez mais, o próprio destino por meio de uma definição positiva e assertiva extraída da cultura africana46.

O significado de “africano” para Asante não se trata de um termo essencialista, i.e., não se baseia no sangue ou nos genes. Trata-se de um construto de conhecimento, que abarca a experiência dos negros em diáspora, como no caso brasileiro e sul-americano:

Um africano é uma pessoa que participou dos quinhentos anos de resistência à dominação europeia. Por vezes pode ter participado sem saber que o fazia, mas é aí que entra a conscientização. Só quem é conscientemente africano – que valoriza a necessidade de resistir à aniquilação cultural, política e econômica – está corretamente na arena da afrocentricidade47.

Para Asante existe uma diferença entre ser africano e ser afrocêntrico, pois existem dois tipos de conexão com o continente africano: uma interna e outra externa. Aqueles que hoje lá vivem constituem a conexão interna, enquanto os que vivem fora dele, a conexão externa – estes, indivíduos que sustentam o fato de seus ancestrais terem vindo da África para as Américas, o Caribe e outras partes do mundo nos últimos quinhentos anos. Da mesma forma, os brancos do continente africano que nunca participaram desse processo de resistência seriam, com efeito, não-africanos.

Na afrocentricidade todas as experiências africanas são dignas de estudo, inclusive as perspectivas da América. Em Asante: “somos parte da humanidade e, portanto, onde quer que as pessoas se declarem africanas, estamos envolvidos na produção de conhecimento”48. Os africanos vêm atuando à margem da experiência eurocêntrica de modo que, muito do que é estudado a título de história, geografia, política ou arte, o posiciona como periférico em relação à atividade tida como “real”.

A expressão café-com-leite, utilizada em muitas regiões do Brasil, contribui para ilustrar esse sentimento. Ela se destina a interações infantis nas quais, quando crianças estão participando de um jogo ou de uma brincadeira, mas algumas delas não apresenta condições de acompanhar as regras ou se envolver do mesmo modo que as outras (por desenvolvimento ou mobilidade reduzida, ou mesmo em função da reprodução de desigualdade de gênero fruto de uma sociedade patriarcal, como a participação de meninas em jogos de futebol majoritariamente compostos por meninos, por exemplo), ela é admitida em caráter especial. O café-com-leite pode ser entendido também como menor, mais fraco, ou que não participa efetivamente das atividades. De toda forma, trata-se de uma expressão com conotação pejorativa e com diminuição do valor ou capacidade para determinada empreitada.

Fazemos desta alegoria uma forma de introduzir a periferização do africano, trazida por Asante, no contexto da Sociedade da Informação, a partir do exemplo do florescimento da comunidade africana de aprendizado de máquina nos últimos anos. Em 2013, um grupo local de profissionais e pesquisadores da indústria deu início a um workshop anual para compartilhamento de recursos e ideias: o Data Science Africa. Em 2017, outro grupo formou a organização Deep Learning Indaba, que conta atualmente com departamentos em 27 dos 54 países do continente. Em resposta a tais práticas, diversos cursos universitários e outros programas educacionais dedicados ao ensino de aprendizado de máquina surgiram em resposta a essa crescente demanda49.

Fato é que a comunidade internacional esteve atenta a esse fenômeno e, no final de 2013, a IBM Research abriu escritórios no continente, em Nairobi e África do Sul. Em 2019, a Google também abriu um novo laboratório de IA em Accra, Gana50. Em 2016, o Facebook declarou estar criando um mapa da densidade populacional da maior parte do continente, utilizando técnicas de visão computacional, dados populacionais e imagens de satélite de alta resolução51. Dentre as declarações da empresa para tal projeto, constavam a criação de conhecimento sobre a distribuição da população da África, o fornecimento de ajuda humanitária e até mesmo auxiliar na conexão dos desconectados.

Acontece que boa parte do ecossistema e da infraestrutura digital da África é controlada e gerenciada por conglomerados ocidentais norte-atlânticos, como Google, Uber, Netflix e o próprio Facebook52. Abeba Birhane, nesse sentido, traz preocupações em relação à relevância e adequação do software de IA desenvolvido com valores e contexto da sociedade ocidental ao dos usuários do continente africano, pois “a invasão algorítmica do Ocidente empobrece o desenvolvimento de produtos locais e, ao mesmo tempo, deixa o continente dependente de seu software e infraestrutura”53.

Desse modo, não apenas as importações de ferramentas de IA feitas a partir da lógica político-social-econômica do Vale do Silício pode se apresentar irrelevante no contexto africano, como também se mostrar um obstáculo ao desenvolvimento de produtos locais. Trata-se o africano como incapaz de produzir tecnologia e promover sua integração nos próprios termos: um café-com-leite tecnológico, do qual não se poderia esperar produção de conhecimento do mundo “real”: a sociedade da informação, na qual “qualquer atividade relevante, em qualquer lugar do mundo, gravita em direção a essas redes nas quais se concentram o poder, a riqueza, a cultura e a capacidade comunicativa”54.

Esta é uma pretensão eurocêntrica: ser a produtora e protagonista exclusiva da modernidade55. À luz da colonialidade do poder, toda a modernização de populações não-europeias teria uma pretensão etnocentrista e provinciana. Ocultando-se, assim, que a constituição da Europa como nova entidade, ou identidade histórica, somente se fez possível com o trabalho de indígenas, negros e mestiços da América, com sua avançada tecnologia na seara de agricultura e mineração, e os seus produtos respectivos: ouro, prata, tabaco, batata, etc56.

Asante destaca, ainda, o conceito de agência para tratar do processo de periferização do africano. Agência seria “a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana”57. Em termos práticos, quando africanos são participantes em algum contexto econômico, cultural, político ou social, é importante observar o conceito de agência em oposição à desagência: “qualquer situação na qual o africano seja descartado como ator ou protagonista em seu próprio mundo”58.

Para tanto, traz algumas características mínimas para que um projeto seja considerado, de fato, afrocêntrico. São elas: (i) interesse pela localização psicológica; (ii) compromisso com a descoberta do lugar do africano como sujeito; (iii) defesa dos elementos culturais africanos; (iv) compromisso com o refinamento léxico; e (v) compromisso com uma nova narrativa da história da África59.

A “localização” se refere ao lugar psicológico, cultural, histórico ou individual ocupado por uma pessoa em dado momento da história. É estar fincado em um determinado espaço, temporária ou permanentemente. “Quando o afrocentrista afirma ser necessário descobrir a localização de alguém, refere-se a saber se essa pessoa está em um lugar central ou marginal com respeito à sua cultura60.” Por o colonizado estar “fora do quadro”, ele não seria mais sujeito da própria história61. Quando um sujeito opera atividades centradas na experiência do opressor, diz-se dele estar “deslocado”. E o objetivo afrocentrista é manter o africano dentro, e no centro, da própria história.

No que diz respeito à descoberta do lugar do africano como sujeito, a afrocentricidade demonstra um forte compromisso de encontrá-lo perante eventos, textos e ideias. Isto porque, a discussão sobre os fenômenos africanos tem se baseado em uma perspectiva eurocêntrica há muito, e não necessariamente no que os próprios africanos pensam, dizem e fazem. Esta é uma tarefa bastante complexa. Em primeiro lugar, porque as populações colonizadas foram expropriadas de seus descobrimentos culturais e tecnológicos, em benefício daquilo que resultaria no desenvolvimento mais rápido do capitalismo para o centro europeu. Em segundo lugar, porque as formas de produção de conhecimento dos colonizados foram reprimidas tanto nos seus padrões de produção de sentido, quanto no seu universo simbólico e expressão/ objetivação de suas subjetividades. Em terceiro lugar, porque os colonizados foram forçados a aprender a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução dessa dominação em diversos campos. Não apenas nas atividades materiais e tecnológicas, como das subjetivas – especialmente as religiosas, com a imposição da religião, cultura e valores judaico-cristãos62. Saliente-se que essa repressão foi ainda mais violenta, profunda e duradoura entre os índios da América Ibérica, cuja cultura foi condenada às categorias de subcultura camponesa e iletrada, despojando-os de sua herança intelectual.

A afrocentricidade também se dedica a proteger e defender os valores culturais africanos como parte do projeto humano. Em outras palavras, busca-se respeitar a dimensão criativa da personalidade africana, e dar um lugar a ela. Nesse sentido, destaque-se as alteridades invisibilizadas e a ausência do corpo negro na história da ciência no século XX, sobretudo nas ciências exatas63. Cheikh Anta Diop elaborou profundos estudos historiográficos no sentido de demonstrar que o pensamento negro-africano não seria apenas original, como também anterior a tudo o que se conhece como fonte da cultura ocidental, majoritariamente ocupada pelos gregos no plano histórico e matricial. Foi a partir das contribuições da civilização egípcia – para ele, a expressão mais bem acabada dos fundamentais do que se entende por cultura e tecnologia64 – que gregos e romanos beberam profundamente dos fundamentos para o desenvolvimento do pensamento crítico e da ciência65.

No que tange ao compromisso com o refinamento léxico, o afrocentrista é atento à linguagem utilizada em discursos e à compreensão do emissor da natureza da realidade africana. Um exemplo trazido por Asante é a palavra “choupana”:

Quando um inglês ou norte-americano chama uma casa africana de choupana, está deturpando a realidade. O afrocentrista aborda a questão do espaço de moradia dos africanos do ponto de vista da realidade africana. A ideia de casa na língua inglesa faz presumir um prédio moderno, com cozinha, banheiros e áreas de recreação, mas o conceito africano é diferente. Assim, a casa deve ser concebida como um conjunto de estruturas em que uma é usada para dormir, outra para armazenar bens e objetos de uso doméstico, e outra, ainda, para receber convidados. (…) No caso dos domicílios africanos, deve-se primeiro perguntar o nome que eles próprios atribuem ao lugar em que dormem. Essa é a única forma de evitar o uso de termos negativos como “choupana” para se referir aos lugares em que vivem os africanos66.

No mesmo sentido, o léxico sobre o que significa produção tecnológica pode configurar a invisibilização de potências e da criatividade dos povos marginalizados. É o caso da palavra “gambiarra”, comumente utilizada para se referir a improvisação tecnológica com teor pejorativo. Algo que seria precariamente construído e/ou desprovido de infraestrutura. No entanto, as “gambiarras” muitas vezes demonstram processos de resistência e de produção de conhecimento em contextos de escassez. No contexto urbano, não raro as “gambiarras” são reprimidas como forma de reproduzirem aspectos estéticos referenciados à pobreza e comunidades carentes, razão pela qual são duramente reprimidos no contexto social.
Por fim, o projeto afrocêntrico também tem como característica mínima uma nova narrativa da história da África. A marginalização da África, não apenas na literatura mas em todo o ideário social, foi um dos pilares do que Asante denomina cânone do conhecimento ocidental, que se presume universal. Isso impactou sobremaneira a resistência intelectual na denominada América Latina à perspectiva histórica do novo padrão de poder mundial, incutida pela Europa nos povos colonizados.

O debate sobre desenvolvimento-subdesenvolvimento foi muito influenciado por essa vertente: a teoria da modernização. Segundo ela, a modernidade seria um fenômeno de todas as culturas, não apenas a Europa e o Ocidente. O conceito de modernidade diz respeito às ideias de novidade, do avançado, do racional-científico. A perspectiva afrocêntrica permite um questionamento acerca desse léxico, pois a modernização não implica necessariamente na ocidentalização das sociedades e das culturas não-europeias67, mas sim é um fenômeno possível em todas as culturas e todas as épocas, nos seus próprios termos.

O próprio conceito de “disruptivo”, desenvolvido para se referir à cultura de Inovação tecnológica produzida pelo Vale do Silício na década de 90, invisibiliza e menospreza bastante o que já foi produzido como científico por civilizações ancestrais – com especial destaque para os povos originários e toda o conhecimento de povos africanos. Tudo deve ser novo para ser valoroso. As tecnologias e ideologias amplamente adotadas no mundo, e as ideologias que elas promovem, são em grande medida norte-americanas e um instrumento de dominação68.

Essa é a proposta de Asante: a afrocentricidade como redefinição radical. Trata-se de uma proposta epistemológica do lugar que nos auxilia a mobilizar a gramática da sociedade da informação e da governança da internet em termos que façam sentido para a população afrodiaspórica. A afrocentricidade se dedica fundamentalmente ao eu coletivo, e é engajada na criação e recriação da pessoa em larga escala. Ela oferece a possibilidade de redefinir a gramática do “mundo de Redes” a partir de tensões radicadas na própria experiência desses povos.

A perspectiva afrocêntrica, portanto, permite (i) o entendimento do panorama político-cultural da Sociedade da Informação em perspectiva ampla; (ii) perceber o negro como o sujeito ativo, consciente e atuante na produção de conhecimento e ciência, da antiguidade aos dias atuais; (iii) a proteção e defesa dos valores culturais do negro como inerentes à humanidade a partir da perspectiva do eu coletivo; e (iv) refina o léxico e possibilita a construção de novas narrativas para futuros possíveis no mundo herdado com a colonialidade.

Para tanto, é importante que os denominados africanos por Asante estejam reorientados a uma posição centrada. À pessoa não-africana que busca fazer uma análise afrocêntrica, é importante que observe sua capacidade de observar os fenômenos do ponto de vista dos africanos – a localização psicológica ou cultural. Não no intuito de perpetuar formas veladas de protagonismo mas, como traz Asante, contribuir para a superação de “visões distorcidas e brutalizadas da nossa própria libertação”.

Afrocentremos a governança da internet e a nossa visão comum da sociedade da informação, rumo a uma sociedade verdadeiramente igualitária e comprometida com a criação, o acesso, a utilização e o compartilhamento de informações por todos os indivíduos, comunidades e povos. Uma proposta generosa que compreende disputa e acolhimento. Permite remodelar a farsa da universalização de direitos digitais no âmbito internacional, e desvela o pacto narcísico da branquitude respaldado nas falências do multissetorialismo. Levando a sério os desafios da autoinscrição do negro nos espaços de decisão em governança da internet, em uma sociedade cada vez mais hiperconectada e movida a dados. Conquistando a visibilidade com o compromisso real de convertê-la em dinâmica de poder. Permitindo à população negra pautar o debate sobre em todas as três camadas de governança (infraestrutura, lógica e conteúdo) em termos que fazem sentido às nossas próprias realidades vividas. Pautando nossas próprias demandas, ditando os rumos das conversas sem sermos “ditos por”. Nas palavras de Thula Pires: nada sobre nós sem nós. Rumo a uma governança da internet e uma sociedade da informação afrocentrada.

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Bianca Kremer kremerbia@gmail.com

Pesquisadora de pós-doutorado no Geneva Graduate Institute – IHEID (2024). Doutora em Direito pela PUC-Rio (Ph.D) (2021). Foi pesquisadora visitante no Instituto Weizenbaum (2024) e no Center for Law and Digital Technologies (eLaw) da Universidade de Leiden (Bolsista Grupo Coimbra) (2016). Professora visitante e líder de pesquisa no Centro de Tecnologia e Sociedade – CTS FGV Direito Rio (2023-2024). Pesquisadora associada ao Centro de Pesquisa Legalite – PUC-Rio (desde 2018). Tem experiência nas áreas de Direito Civil, Teoria Geral do Direito Privado e Direito Digital, atuando principalmente nos seguintes temas: privacidade e proteção de dados, inteligência artificial, vieses algorítmicos, governança da internet, pensamento afrodiaspórico e decolonialidade. Atualmente é conselheira titular do Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br, representante do terceiro setor (mandato 2024-2026).