<span class="sans"></span>Conectividade e capacidades locais nos pequenos municípios brasileiros

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Manuella Maia Ribeiro
Luciana Portilho
Catarina Ianni Segatto
Leonardo Melo Lins

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volume4 ⁄ número 1 ⁄ set 2023 ↘ Artigo

Conectividade e capacidades locais nos pequenos municípios brasileiros

Manuella Maia Ribeiro & Catarina Ianni Segatto & Daniela Costa & Luciana Portilho & Leonardo Melo Lins

Resumo

Este artigo busca aprofundar a compreensão das interseções entre conectividade e capacidades de diferentes atores locais, particularmente na ampliação do acesso à Internet pela população. A literatura mostra que provedores de serviços de acesso à Internet, governos locais e organizações da sociedade civil têm um papel importante na conectividade e, consequentemente, no combate à exclusão digital.

Nesse contexto, este estudo busca compreender se e como as capacidades locais, especialmente relacionadas aos provedores, governos locais e organizações da sociedade civil, implicam em ações voltadas para conectividade nos pequenos municípios brasileiros. A análise se baseia em dados quantitativos de pesquisas que medem o acesso e uso de tecnologias de informação e comunicação (TIC) em diferentes setores e dados relacionados ao acesso à Internet no Brasil. Essa análise permitiu a seleção de 20 municípios em todas as regiões do país, que Conectividade e capacidades locais nos pequenos municípios brasileiros foram divididos em quatro grupos.

A partir disso, uma análise qualitativa foi realizada com base em entrevistas semi-estruturadas e grupos de discussão, mostrando que as lacunas no acesso às TIC e à Internet persistem em alguns contextos. No entanto, as capacidades dos provedores afetam o serviço e as tecnologias oferecidas por eles, o que explica as diferenças nos níveis de conectividade entre os quatro grupos, considerando que há uma ausência ou fragilidade nas políticas de inclusão digital nos municípios analisados, bem como na atuação das organizações da sociedade civil.

1.Introdução

Estudos têm demonstrado que a exclusão digital, ou seja, a falta ou disponibilidade limitada de acesso às tecnologias, principalmente à Internet, persiste em diversos países e regiões, especialmente entre aqueles em desenvolvimento (União Internacional de Telecomunicações [UIT], 2020; van Deursen & Helsper, 2015; Madon et al., 2009). No caso do Brasil, houve um avanço na expansão da infraestrutura da Internet por meio de investimentos de empresas locais e multinacionais em todo o território. O desenvolvimento do mercado de provedores de Internet seguiu um caminho semelhante ao dos países europeus (Bauer, 2008): a Internet era inicialmente um meio restrito de comunicação entre universidades, coexistindo com grandes monopólios estatais de telefonia que dominavam as redes de comunicação. Na década de 1990, após uma onda de privatizações, empresas privadas começaram a operar, contando com a infraestrutura construída durante o período de monopólio. Na última década, a diminuição das políticas regulatórias e a eliminação das barreiras de entrada resultaram na expansão de pequenas empresas provedoras de Internet, responsáveis por expandir a infraestrutura de Internet e a prestação de serviços em pequenos municípios (Comitê Gestor da Internet no Brasil [CGI.br], 2021a).

Ainda que a infraestrutura de Internet tenha sido ampliada, lacunas de acesso e diferentes níveis de uso persistem em todo o país. A literatura aponta que os contextos territoriais e socioeconômicos dos indivíduos influenciam o acesso e o uso de tecnologias (Helsper,2019). Estudos também destacam que iniciativas de governo digital e políticas de inclusão digital seriam fundamentais para diminuir as lacunas de acesso e de uso, além de possibilitar a influência dos cidadãos nos processos de formulação de políticas por meio da participação online e promover o desenvolvimento urbano sustentável por meio de iniciativas como as cidades inteligentes (Janowski, 2016; Medaglia et al., 2021). Além disso, organizações da sociedade civil também podem atuar para promover a conectividade no contexto local por meio de iniciativas de inclusão digital, como os telecentros geridos por entidades não governamentais (CGI.br, 2021d).

Este estudo busca contribuir para essa discussão analisando a influência das capacidades locais, em particular dos pequenos provedores de serviços de Internet (ISP), dos governos locais e da sociedade civil, na conectividade em municípios brasileiros. O foco de análise envolve os pequenos municípios, devido às lacunas de acesso e aos diferentes níveis de conectividade existentes nessas localidades. Os municípios com menos de 20 mil habitantes englobam aproximadamente 70% das cidades e 15% da população brasileira (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2011). Além disso, os governos locais desempenham um papel central na prestação de serviços e na implementação de políticas nas mais diversas áreas, como saúde e educação, e, portanto, são cruciais para a adoção e uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC) para diferentes atividades (Przeybilovicz et al., 2018). No entanto, há poucos estudos com foco na conectividade nessas localidades (Chen & Kim, 2019; Gao & Lee, 2017).

Buscando compreender a relação entre os diferentes níveis de capacidades locais e a conectividade em municípios com menos de 20 mil habitantes no Brasil, primeiramente, foi realizada uma análise quantitativa dos dados das pesquisas TIC Domicílios 2019, TIC Governo Eletrônico 2019, TIC Provedores 2020, TIC Saúde 2021 e TIC Educação 2020, todos coletados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Essa análise permitiu a descrição dos contextos desses municípios em relação à conectividade. Em seguida, foram analisados dados relacionados ao acesso à Internet, coletados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), aos serviços prestados por ISP a partir da pesquisa TIC Provedores 2020 e às iniciativas de governo digital e políticas de inclusão digital investigadas pela pesquisa TIC Governo Eletrônico 2019. Esta análise levou à criação de quatro grupos de municípios cujos níveis de conectividade e capacidades locais variavam, o que permitiu a seleção de 20 municípios, em que foi realizada uma análise qualitativa a partir de dados coletados em entrevistas em profundidade com gestores de ISP, servidores públicos de governos locais e atores locais ligados à sociedade civil, e em grupos de discussão com residentes dos municípios analisados.

A análise da relação entre capacidades dos diferentes atores locais e a implementação de ações voltadas para a conectividade da população apontam que alguns desafios relacionados ao acesso e ao uso das TIC persistem em pequenos municípios no Brasil. Esses desafios envolvem não apenas a falta de infraestrutura, mas também fragilidades quanto à estabilidade e à velocidade da Internet, aos dispositivos utilizados e às habilidades digitais, que afetam principalmente os indivíduos que vivem em áreas rurais e remotas, os mais vulneráveis e os idosos. Além disso, no contexto de ausência ou fragilidade de políticas de inclusão digital por parte dos governos locais e da sociedade civil, as capacidades dos ISP apresentam maior influência nos serviços e tecnologias oferecidos e, consequentemente, nos diferentes níveis de conectividade entre os municípios. Este artigo está dividido em cinco seções, além desta Introdução. A primeira seção apresenta uma sistematização dos estudos que discutem a relação entre conectividade e desenvolvimento no contexto local. A segunda seção apresenta o delineamento e a metodologia da pesquisa. A terceira seção discute a análise quantitativa dos dados relativos ao acesso e ao uso das TIC nos pequenos municípios brasileiros, bem como aos serviços de Internet, iniciativas de governo digital e políticas de inclusão digital. A terceira seção discute a análise qualitativa dos dados coletados por meio das entrevistas e dos grupos de discussão. Por fim, a quinta seção trata das considerações finais.

2.Conectividade e desenvolvimento no nível local

Diversos estudos destacam que ainda existe uma brecha digital nos países em desenvolvimento, separando os indivíduos entre aqueles que estão “conectados” e “incluídos” e os “não conectados” e “excluídos”. Essa exclusão restringe os “não conectados” e “excluídos” das oportunidades sociais e econômicas proporcionadas pelas tecnologias, impondo mais barreiras ao seu acesso a serviços e políticas públicas e a atividades culturais e educativas, por exemplo (Avgerou, 2008; Thapa & Sæbø, 2014). Tais disparidades desafiam a universalização do acesso às TIC e os avanços no desenvolvimento socioeconômico por meio do uso das tecnologias.

Apesar da falta de consenso em relação às dimensões que compõem a inclusão digital, a literatura a associa a uma série de dimensões voltadas para o acesso e o uso da Internet pelos indivíduos, incluindo desde a disponibilidade de dispositivos e de conexão à rede até a presença de habilidades digitais e o alcance de benefícios pela sociedade, por meio das oportunidades advindas da adoção das tecnologias (van Deursen & Helsper, 2015; Helbig et al., 2009). Além da falta de acesso às TIC e à Internet em alguns contextos, especialmente nos países em desenvolvimento, existem diferenças na conectividade mesmo em locais com infraestrutura.

Thapa e Sæbø (2014) argumentam que os estudos devem aprofundar a compreensão da exclusão digital, explorando as interações entre as TIC e os fatores sociais, organizacionais e econômicos. Nesse sentido, surgiu uma nova agenda de pesquisa para discutir os efeitos de questões relacionadas aos contextos socioeconômicos – incluindo taxa de alfabetização, gênero, áreas rurais versus urbanas e renda – na estabilidade e qualidade da Internet, no acesso a dispositivos adequados e no desenvolvimento de competências digitais, buscando explicar as desigualdades sociodigitais e os diferentes níveis de conectividade entre os grupos da sociedade (Helsper, 2019).

Os estudos também se concentram no papel de diferentes atores locais na ampliação da conectividade da população, como a atuação e as políticas dos governos voltadas para o acesso e o uso das TIC (Kanssen, 2016). Em relação ao setor público, a discussão sobre governo digital tem ainda como foco o entendimento da adoção das TIC pelos governos em suas atividades, como o uso de sistemas de informação para a construção de cadastros de políticas sociais, a exemplo do Cadastro Único do governo federal brasileiro (Ribeiro et al., 2018), e, principalmente, a oferta de informações e serviços aos cidadãos por meio digital (Chun et al., 2010; Gerpott & Ahmadi, 2016; Organização das Nações Unidas [ONU], 2020). Cunha e Miranda (2013) mostram que a adoção de TIC pelos governos pode melhorar os processos administrativos, ampliar a prestação de serviços, incluindo a publicação de informações sobre serviços públicos e a sua oferta pelos meios digitais, além de facilitar interações e a participação da sociedade em processos democráticos, a exemplo de iniciativas como os portais de transparência e o orçamento participativo digital. Outros estudos destacam ainda a importância dos governos locais na implementação de políticas de inclusão digital que buscam garantir um acesso mais equitativo às TIC (Bélanger & Carter, 2009; Helbig et al., 2009; Van Deursen & Helsper, 2015) e na adoção de estratégias voltadas para os municípios, como as cidades inteligentes, para solucionar problemas locais relacionados à mobilidade e ao transporte, à segurança e ao meio ambiente, entre outros, e promover o desenvolvimento local com apoio das tecnologias (Cunha et al., 2016; Ribeiro et al., 2021).

Alguns autores argumentam que, apesar dos potenciais efeitos positivos da tecnologia no setor público, o acesso e o uso desses recursos são influenciados pelas capacidades administrativas e financeiras municipais (Ribeiro et al., 2021), o que também é fundamental para entender os serviços e políticas implementadas pelos governos locais, especialmente no caso de pequenos municípios, que apresentam, geralmente, níveis mais baixos de capacidades administrativas e financeiras, incluindo capacidades de TI (Ribeiro et al., 2021; Przeybilovicz et al., 2018). A literatura também aponta que, embora a análise do papel do governo digital e das políticas de inclusão digital no acesso e uso das TIC seja fundamental para entender a conectividade, os efeitos das desigualdades sociais, econômicas e digitais no acesso às po-
líticas sociais e à informação governamental no ambiente digital seria igualmente importante (Bélanger & Carter, 2009; Helbig et al., 2009; Macaya et al., 2021).

Além das capacidades, dos serviços e das políticas presentes nos governos locais, os ISP e outras organizações influenciam a conectividade no nível local. Os ISP são atores críticos na expansão da infraestrutura da Internet, afetando o acesso e o uso das TIC. No Brasil, a maioria dos grandes ISP foi fundada até 1999, após o processo de privatização desse serviço, enquanto a maioria dos médios e pequenos ISP foram fundados com a diminuição das barreiras de entrada nos anos 2000 (CGI.br, 2018). É importante mencionar que os pequenos ISP têm um papel fundamental em cidades pequenas, especialmente aquelas distantes dos grandes centros urbanos, considerados menos atraentes para ISP de médio e grande porte.

Isso mostra a grande diversidade no tamanho dos ISP e nas estruturas organizacionais. Essa diversidade também caracteriza a oferta de serviços de Internet, principalmente no que diz respeito à estabilidade, à velocidade e à segurança da conexão comercializada (CGI.br, 2021a). Nesse contexto, vale a pena destacar a importância da implantação do 5G. Entre os impactos da disseminação do 5G nas cidades, inclusive em regiões de baixa e média densidade populacional, podem ser destacados a alta velocidade de transporte de dados, os menores custos para implantação do que redes de fibra ótica e a capacidade para suportar um grande número de dispositivos e aplicações a partir de uma mesma base de rádio (León, 2022). No contexto do Brasil, estão em andamento leilões para implantação do 5G, sendo o país na América Latina e Caribe com mais redes desse tipo disponíveis em abril de 2022 (León, 2022).

Já a sociedade civil tem o potencial de afetar a conectividade no nível local (CGI.br, 2021d). O financiamento de governos, agências de ajuda humanitária e organizações não governamentais (ONG) permite que a sociedade civil implemente estratégias para promover a inclusão digital, como telecentros e redes comunitárias da Internet, garantindo o acesso à Internet a grupos vulneráveis. No entanto, estudos mostram que essas iniciativas enfrentam desafios significativos de institucionalização ao longo do tempo devido à descontinuidade do financiamento ou mesmo à falta de aceitação simbólica pelas comunidades (Madon et al., 2009; CGI.br, 2021d).

Com base nesse contexto, este estudo busca entender se e como as capacidades locais, especialmente aquelas relacionadas aos governos locais, ISP e sociedade civil, implicam em ações voltadas para a conectividade em pequenos municípios brasileiros. O objetivo é aprofundar a discussão sobre o acesso e o uso das TIC, indo além do debate sobre a expansão da infraestrutura de Internet, entendendo melhor se níveis mais altos de capacidades locais explicam iniciativas dos diferentes atores locais voltadas para a conectividade nesses municípios no país.

3. Metodologia

Este estudo foi dividido em duas etapas: uma quantitativa e outra qualitativa. Na primeira parte da análise quantitativa, foram utilizados dados das pesquisas TIC Domicílios 2019, TIC Governo Eletrônico 2019, TIC Provedores 2020, TIC Saúde 2021 e TIC Educação 2020, todos coletados pelo CGI.br, mostrando o contexto e o panorama da conectividade em pequenos municípios. O CGI.br tem entre suas atribuições estabelecer diretrizes estratégicas para o uso e desenvolvimento da Internet no Brasil e um dos serviços prestados é a realização de pesquisas periódicas sobre o acesso e uso das TIC em diversas áreas para produção de dados estatísticos que auxiliem o entendimento sobre o tema e a elaboração de políticas públicas. As pesquisas utilizadas nessa etapa são amostrais, têm abrangência nacional e as entrevistas foram realizadas por telefone ou presencialmente, por meio de questionários estruturados aplicados aos diferentes grupos de interesse de cada estudo1. Essas edições das pesquisas TIC Domicílios, TIC Governo Eletrônico, TIC Provedores, TIC Saúde e TIC Educação foram utilizadas porque eram as mais recentes no momento em que o estudo foi realizado.

A segunda parte da análise quantitativa orientou a seleção dos municípios para a etapa qualitativa e incluiu os dados relativos ao acesso à Internet no Brasil coletados pela Anatel, aos serviços prestados por ISP e dados provenientes da pesquisa TIC Provedores 2020, e às iniciativas de governo digital e políticas de inclusão digital, medidas pela pesquisa TIC Governo Eletrônico 2019. Inicialmente, dois índices foram estabelecidos: 1) conectividade, a partir de dados sobre banda larga e densidade móvel; e 2) capacidades locais, baseado em dados sobre a participação em Sistema Autônomo (AS) e Intercâmbio de Internet (IX)2 e a oferta de IPv63 (serviços de ISP) e implementação de serviços públicos online e políticas de inclusão digital (serviços e políticas de governos locais).

Os municípios com menos de 20 mil habitantes – aproximadamente 70% das cidades e 15% da população brasileira (IBGE, 2011) – foram divididos em quatro grupos que variam em relação aos resultados nos índices de conectividade e capacidades locais. Como resultado, foram criados os seguintes grupos: Grupo 1, caracterizado por municípios com baixa conectividade e baixa capacidade local; Grupo 2, que reuniu municípios com alta conectividade e baixa capacidade local; Grupo 3, que contou com municípios com baixa conectividade e altas capacidades locais; e Grupo 4, que abrangeu os municípios com alta conectividade e altas capacidades locais, conforme Quadro 1.

Grupos Conectividade Capacidade local
Grupo 1 Baixa Baixa
Grupo 2 Alta Baixa
Grupo 3 Baixa Alta
Grupo 4 Alta Alta

Quadro 1. Classificação dos grupos de municípios analisados

A partir dessa classificação, foram selecionados 20 municípios, cinco em cada grupo distribuídos nas cinco regiões brasileiras (Centro-Oeste, Norte, Nordeste, Sul e Sudeste). Considerando as cidades de cada grupo e região, foram analisados os municípios com base no aceite dos participantes. Caso os participantes não aceitassem, outro município era escolhido, até que se finalizasse todas as entrevistas e os grupos de discussão em 20 cidades. A análise qualitativa incluiu a coleta de dados por meio de entrevistas em profundidade com gestores de ISP, servidores públicos de governos locais e atores locais ligados

à sociedade civil, especialmente aqueles relacionados aos grupos vulneráveis que historicamente enfrentam barreiras de acesso à Internet, e grupos de discussão com indivíduos com mais de 18 anos residentes nos municípios analisados. Nos grupos de discussão, os indivíduos foram divididos por idade e escolaridade, buscando também garantir o equilíbrio de gênero. Todas as entrevistas e os grupos de discussão foram realizados no segundo semestre de 2021 e aconteceram por meio de plataformas online devido ao distanciamento social exigido pela Covid-19 no momento de realização do estudo. Isso restringiu os grupos de discussão à indivíduos que já eram usuários de Internet, limitando os achados quanto aos não-usuários.

Foram realizadas 60 entrevistas e conduzidos 20 grupos de discussão (com participação de 161 pessoas no total). As entrevistas e os grupos focais foram realizadas por seis pesquisadores, contratados e treinados para a realização dessas atividades. Diferentes estratégias para o contato inicial com os entrevistados foram empregadas, incluindo atualização dos contatos já existentes nas bases de dados utilizadas e busca de novos contatos em websites e redes sociais das empresas, governos locais e organizações não governamentais. No caso das organizações da sociedade civil foi utilizado o cadastro do Mapa das Organizações da Sociedade Civil do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e indicações de outros entrevistados no município. Inúmeras tentativas foram realizadas para convencer e sensibilizar os entrevistados em relação à importância da pesquisa para compreender os desafios da conectividade no país. As entrevistas objetivaram coletar dados sobre as trajetórias e capacidades administrativas das ISP e das prefeituras (nesse caso, as capacidades na área de TI), as atividades e os serviços das ISP, as atividades, serviços e políticas das prefeituras relacionados aos serviços online e políticas de inclusão digital, as atividades e atuação das organizações não governamentais e os principais avanços e desafios em relação à conectividade no município.

Os grupos focais aprofundaram a compreensão desse último aspecto, ou seja, os avanços e desafios em relação à conectividade no município, bem como as formas de acesso e de uso das TIC pelos participantes. No caso dos grupos focais, foram estimulados relatos sobre familiares e conhecidos dos participantes que não têm acesso à Internet, buscando reduzir as limitações da realização dos grupos por plataformas online.

Os dados coletados foram transcritos e analisados de maneira qualitativa, utilizando a análise de conteúdo como técnica de análise das entrevistas, com base na presença de conectividade e nas capacidades locais, segundo dados extraídos da etapa quantitativa, e na implementação de iniciativas voltadas para a conectividade da população entre os atores locais de interesse para o estudo. As categorias de análise adotadas foram as seguintes: capacidades locais em TI, políticas de inclusão digital, uso das TIC e barreiras à conectividade. Cabe destacar que este artigo não menciona os nomes ou filiações dos entrevistados para manter a confidencialidade dos participantes.

4.Conectividade e capacidades locais nos pequenos municípios brasileiros

O acesso à Internet foi ampliado em todo o país ao longo dos últimos anos, atingindo 133,8 milhões de internautas em 2019 (CGI.br, 2020a). Ainda que essa expansão tenha afetado municípios, inclusive aqueles com menos de 20 mil habitantes, persistem desafios relacionados à continuidade dessa expansão, principalmente da fibra ótica, e ao aumento da conectividade entre os cidadãos (CGI.br, 2020a). De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2019, 66% dos indivíduos que viviam em municípios com menos de 20 mil habitantes acessavam a Internet, enquanto, no caso de cidades com mais de 100 mil habitantes, 79% dos indivíduos acessavam a rede. Em relação ao tipo de conexão, entre os domicílios com acesso à Internet em municípios com até 20 mil habitantes, apenas 36% utilizavam conexão via cabo ou fibra ótica, enquanto nos municípios com mais de 100 mil habitantes era 47%. A maioria dos internautas utilizavam dispositivos móveis para acessar a Internet, sendo que nos municípios pequenos 69% acessavam via 3G ou 4G, e nos municípios grandes era 80% (CGI.br, 2020a).

Municípios pequenos seguem o padrão dos demais municípios brasileiros nos quais o uso de computadores vem diminuindo nos domicílios desde 2005. Em 2019, no caso dos municípios com população inferior a 20 mil habitantes, apenas 31% dos usuários de Internet utilizavam computador, 99% usavam celular e 69% acessavam a Internet exclusivamente por dispositivos móveis (CGI.br, 2020a).

Além disso, essas cidades com menor população geralmente apresentam fragilidades quanto às capacidades dos ISP: 62% dos ISP são pequenas empresas, com menos de três mil conexões e de nove funcionários, além de operar em um pequeno número de cidades. Essas características afetam os serviços e tecnologias oferecidos por essas pequenas empresas, incluindo fibra ótica e IPv6, bem como sua participação em AS e IX. Os ISP estão mais desenvolvidos na oferta de fibra ótica e participação de AS do que na participação em IX e oferta de IPv6 (Gráfico 1), ambos considerados críticos para a melhoria da qualidade e segurança da rede (CGI.br, 2021a).

De acordo com a pesquisa TIC Provedores 2020, os ISP enfrentam alguns desafios na adoção dessas novas tecnologias. No caso do IPv6, as pequenas empresas provedoras mencionaram problemas relacionados a custos e à qualificação, o que impõe limites na capacidade dessas empresas de mobilizar dimensões técnicas e organizacionais para alavancar a ativação do IPv6. Os ISP de pequeno porte não participam do IX.br devido ao alto custo de contratação de infraestrutura de transporte das operadoras. Parcela relevante de pequenos provedores afirmou não estar em nenhum IX porque a empresa que oferece a conexão já estava em um Ponto de Troca de Tráfego (CGI. br, 2021a).

Gráfico 1. Participação em AS e IX e oferta IPv6 por região, número médio de conexões e tamanho da população (2020)

Fonte: Dados do CGI.br (2021a). Elaborado pelos autores.

 

Já os governos locais não são apenas usuários da Internet, mas também atores críticos na promoção da inclusão digital e no aumento da conectividade. A pesquisa TIC Governo Eletrônico 2019 mostrou um aumento no acesso à fibra ótica pelas prefeituras ao longo do tempo, alcançando 66% das cidades com menos de 20 mil habitantes em 2019 (CGI. br, 2020b). No entanto, apenas 22% dos municípios com menos de cinco mil habitantes possuíam departamento de informática, 29% dos municípios com mais de cinco e menos de dez mil habitantes possuíam esse departamento e 38% dos municípios com mais de dez e menos de vinte mil habitantes tinham este tipo de setor. Isso também se reflete nos serviços online e nas políticas de inclusão digital por eles implementadas. Entre os serviços oferecidos pelos municípios com até 20 mil habitantes, era mais comum encontrar serviços informativos, como download de formulários ou documentos, do que transacionais, como agendamento de consultas e exames (Gráfico 2). A única exceção são os serviços tributários, mais presentes nesses municípios em patamares próximos aos dos municípios mais populosos. Em relação às políticas de inclusão digital, aproximadamente metade das prefeituras possuíam centros públicos com acesso gratuito à Internet e computadores, como telecentros, e conexão Wi-Fi gratuita em espaços públicos (Gráfico 3).

 

Gráfico 2. Tipo de serviço oferecido nos sites das prefeituras, por tamanho da população (2019)

Fonte: Dados do CGI.br (2020b). Elaborado pelos autores.

 

Gráfico 3. Tipo de política de inclusão digital nas prefeituras, por tamanho da população (2019)

Fonte: Dados do CGI.br (2020b). Elaborado pelos autores.

A presença de conectividade nas escolas de ensino fundamental e médio, principalmente nas escolas públicas, está relacionada, entre outros fatores, às condições de oferta de serviços e tecnologias de acesso à Internet por parte dos ISP. Escolas localizadas em cidades do interior e áreas rurais, remotas ou distantes de grandes centros urbanos podem depender de pequenos provedores de acesso à Internet. De acordo com os dados da pesquisa TIC Educação 2020 (CGI.br, 2021b), 82% das escolas do ensino básico e secundário possuíam acesso à Internet. No entanto, a desagregação dos dados por determinadas variáveis revela desigualdades na oferta de Internet entre as escolas. Nas escolas da zona urbana, 98% tinham acesso à Internet, enquanto na zona rural esse percentual era de 52%. Tais diferenças também são observadas entre escolas localizadas em capitais (98%) e municípios no interior (79%) e entre aquelas localizadas em municípios com mais de 20 mil habitantes (84%) e aquelas localizadas em municípios com menos de 20 mil habitantes (77%) (Gráfico 4). Os principais motivos pelos quais as escolas não tinham acesso à Internet foram a falta de infraestrutura de acesso na região onde a escola está localizada (74%) e o alto custo de conexão (48%).

O fato de 71% dos gestores escolares também se referirem à falta de infraestrutura escolar como uma das principais razões para a falta de conexão à Internet na escola revela que, para além da disponibilização de tecnologias pelo ISP, a capacidade dos órgãos da administração pública para investirem e gerenciarem a implementação e manutenção de políticas relacionadas às tecnologias também é um fator que impacta a qualidade da conectividade nas instituições escolares. De acordo com a pesquisa TIC Educação 2020, enquanto 94% das escolas públicas estaduais tinham acesso à Internet, esse percentual era de 74% entre as escolas públicas municipais. As diferenças entre escolas geridas por órgãos estaduais e municipais também foram observadas em outros aspectos relevantes do uso de tecnologias no setor educacional, como a presença de computadores – 79% nas escolas municipais e 95% nas estaduais – e a oferta aos professores de capacitação para uso de recursos digitais em atividades de ensino e de aprendizagem – 62% em escolas municipais e 83% em escolas estaduais. Essas desigualdades também podem se refletir nas oportunidades de aprendizagem disponíveis para os alunos.

 

Gráfico 4. Escolas com acesso à Internet, por área, localização, jurisdição administrativa e tamanho da população (2020)

Fonte: Dados do CGI.br (2021b). Elaborado pelos autores.

 

Em relação ao sistema de saúde no Brasil, nos últimos anos, a disponibilidade de infraestrutura de TIC nos estabelecimentos de saúde vem aumentando, permitindo maior conectividade e transformação tecnológica dos processos de gestão e prestação de serviços na área. Em 2021, observou-se que, em um universo de 112.075 estabelecimentos de saúde, 97% possuíam computador e 96% acesso à Internet, refletindo um aumento de 17 pontos percentuais desde 2013. Além disso, 88% possuíam sistema eletrônico para registro de informação do paciente. Cidades com menos de 20 mil habitantes possuem cerca de um quarto do total de estabelecimentos de saúde. Destes, 95% utilizavam computadores e 96% utilizavam a Internet em 2021, o que significa que cerca de 24 mil estabelecimentos de saúde ainda não tinham acesso à infraestrutura de TIC em municípios com esse tamanho populacional (Gráfico 5).

Gráfico 5. Estabelecimentos de saúde com computadores, Internet e sistema eletrônico para registro de dados de pacientes por tamanho populacional (2021)

Fonte: Dados do CGI.br (2021c). Elaborado pelos autores.

Entre os que tinham acesso à Internet, a conexão mais utilizada era a via cabo ou fibra ótica, correspondendo, respectivamente, a 92% dos estabelecimentos de saúde em cidades com menos de 20 mil habitantes e 95% daqueles em cidades com mais de 20 mil habitantes. A conexão móvel via modem ou chip 3G ou 4G estava presente em 24% dos estabeleci- mentos nas pequenas cidades e 40% nas grandes cidades. Um ponto a se destacar é que 20% dos estabelecimentos de saúde em cidades com menos de 20 mil habitantes possuíam conexão via rádio (10% em cidades com mais de 20 mil habitantes). Outro fato que pode impactar os serviços de saúde prestados, principalmente no caso da telessaúde, é a velocidade de conexão à Internet: dados da pesquisa TIC Saúde 2021 mostram que 37% dos estabelecimentos de saúde em pequenos municípios tinham velocidade abaixo de 10 Mbps e apenas 9% acima de 100 Mbps (ante 27% nas grandes cidades).

Esses dados evidenciam que ainda existe um número considerável de estabelecimentos de saúde brasileiros em cidades com menos de 20 mil habitantes sem infraestrutura básica de TIC e que apenas um baixo percentual possui uma faixa maior de velocidade de download. A disponibilidade de infraestrutura de TIC adequada nos estabelecimentos de saúde, principalmente em municípios de pequeno porte, tem grande potencial para ampliar a cobertura de saúde por meio do acesso a especialistas e diagnósticos por telessaúde, quando o caso permite a teleconsulta. A utilização de um sistema eletrônico em estabelecimentos de saúde possibilita o acesso rápido e coordenado ao estado de saúde de uma determinada população e o compartilhamento seguro e rápido de informações aos governos em casos de risco. Com dados de saúde, é possível planejar ações que reduzam as desigualdades no acesso à saúde em todos os níveis de atenção e facilitem a implementação de estratégias de saúde (Organização Pan-Americana da Saúde [OPAS], 2021). Além disso, permite uma melhor integração entre todos os níveis de atenção à saúde, fortalecendo a coordenação das políticas nos níveis local, regional e federal.

Esses dados mostram que desafios relacionados ao acesso à Internet, que incluem falta de acesso em áreas específicas e velocidades não adequadas, ainda prevalecem em pequenos municípios do país. Há também desafios em relação aos baixos níveis de capacidades locais de TI que caracterizam pequenos ISP, afetando os serviços e as tecnologias por eles oferecidos, bem como governos locais, unidades de saúde e escolas.

5.As interseções entre capacidades locais e conectividade em 20 pequenos municípios brasileiros

A análise dos quatro grupos de municípios mostra que, apesar das variações em seus níveis de conectividade e capacidades locais, há mais semelhanças do que diferenças entre eles, principalmente no que tange à implementação de ações voltadas para a conectividade. Em todos os municípios os entrevistados mencionaram que houve um aumento significativo do acesso à Internet nos últimos anos, o que envolveu a expansão da adoção da fibra ótica, com a substituição do rádio pela fibra ótica nas áreas urbanas e a expansão da conexão via rádio nas áreas rurais. Segundo os entrevistados, essas mudanças resultaram na intensificação e diversificação do uso das TIC pela população dessas cidades, incluindo atividades que exigem alta velocidade de Internet, como videoconferências, transações financeiras e serviços online. Essa intensificação também afetou as atividades realizadas pelos funcionários públicos das prefeituras, aumentando o uso de sistemas de informação, principalmente para acesso a recursos de políticas do governo federal e a publicação de dados públicos em portais de transparência. Apesar desses avanços, ainda existem barreiras ao acesso à Internet, principalmente em municípios com áreas rurais, remotas ou de difícil acesso. Os entrevistados relataram as grandes distâncias entre estas e as áreas urbanas como um desafio crítico na expansão da infraestrutura de Internet na maioria dos municípios analisados. Além disso, em um quarto dos municípios, características territoriais e geográficas, como a presença de rios e montanhas, também dificultam a expansão da infraestrutura da Internet e afetam a estabilidade e a qualidade da Internet, principalmente no caso da conexão via rádio. Os entrevista- dos também mencionaram desafios relacionados à falta de postes – seu alto custo de aluguel e instalação – e à manutenção de torres de rádio em áreas rurais, remotas e de difícil acesso, tornando a expansão da Internet muito cara para os pequenos ISP que atuam nessas cidades. Alguns entrevistados relataram que há casos em que os indivíduos pagaram pela instalação de torres em suas propriedades.

Os entrevistados também mencionaram outros desafios, como, a falta ou instabilidade de energia em algumas áreas, principalmente nos municípios dos Grupos 1, 2 e 3, devido às fortes chuvas, aumentando as barreiras para garantir uma conectividade estável e regular. Grupos específicos da sociedade enfrentam mais desafios no acesso e uso das TIC, o que é mais relevante entre os idosos, que não necessariamente desenvolveram habilidades digitais para diversificar as atividades online, e grupos socioeconômicos mais vulneráveis, que enfrentam desafios para adquirir dispositivos adequados e pagar por Internet de alta velocidade. Relacionado a isso, os entrevistados relataram que é comum o compartilhamento da Internet entre os vizinhos nas regiões mais vulneráveis.

5.1.ISP e serviços de Internet

Os quatro grupos variam em suas capacidades locais, o que era esperado considerando a divisão baseada nas variações de conectividade e capacidades locais. Num dos extremos, o Grupo 1 inclui os ISP com níveis de profissionalização mais baixos. Era comum encontrar nesse grupo empresas familiares, em que os proprietários tinham experiências anteriores com lan houses ou outras empresas, com poucos funcionários e sem nenhuma organização interna em áreas ou departamentos. No outro extremo, o Grupo 4 inclui os ISP com maiores níveis de profissionalização. Neste caso, os ISP são caracterizados por uma organização in- terna em áreas ou departamentos, possuem um maior número de colaboradores com formação ou experiência anterior nesta área (alguns colaboradores trabalharam em outros ISP), e alguns estão formalmente ligados a ISP médios que trabalham regionalmente. O Grupo 2 é caracterizado por um nível mais alto de capacidades locais, mas níveis mais baixos de conectividade. Os ISP analisados nesse grupo tinham um maior número de colaboradores com formação ou experiência anterior nesta área e são caracterizados por uma organização interna em áreas ou departamentos devido a uma expansão da sua atividade nos últimos anos. O Grupo 3 inclui os ISP com menor nível de profissionalização, sendo mais semelhante ao Grupo 1.

Em relação ao financiamento, nos Grupos 1, 2 e 3, os entrevistados de ISP relataram que preferem investir recursos próprios na expansão da infraestrutura de Internet e na melhoria da qualidade e segurança da rede. Aqueles que acessaram fundos privados apontaram que não há linhas de crédito adequadas para eles e que os juros são muito altos. No Grupo 4, os entrevistados apontaram que acessaram recursos públicos de um banco nacional (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES), o que foi fundamental para expandir a fibra ótica e adquirir equipamentos adequados. Geralmente, estas fragilidades, presentes principalmente nos Grupos 1 e 3, são superadas por uma parceria formal ou informal com outros ISP. Os entrevistados disseram que costumam fazer compras conjuntas, compartilhar equipamentos e torres de rádio, trocar equipamentos e informações, entre outros. As diferenças em sua profissionalização repercutem no serviço prestado por eles. Enquanto no Grupo 1 os ISP não participam do IX, não oferecem IPv6 e não conhecem seus benefícios, nos demais grupos os ISP conhecem seus benefícios, sendo que alguns deles participam do IX e oferecem IPv6. É fundamental mencionar que a participação no IX é indireta, ou seja, pequenos ISP não estão presentes diretamente no IX, mas compram links de ISP regionais que estão presentes no IX. Em relação à oferta de IPv6, os entrevistados reconheceram que isso é fundamental para a qualidade e segurança da rede. Ainda assim, eles enfrentaram desafios, pois equipamentos e dispositivos são ainda inadequados para essa nova tecnologia.

5.2.Políticas públicas e governos locais

A capacidade de TI dos 20 governos locais analisados é frágil e mal institucionalizada em todos os grupos. Os entrevistados relataram que os municípios não possuem um departamento específico responsável pela TI. Há um ou poucos funcionários responsáveis por diversas atividades, como suporte na aquisição de equipamentos e dispositivos, acompanhamento de contratos, incluindo acesso à Internet, manutenção e assistência a outros funcionários públicos. Os entrevistados destacaram que muitas vezes estão sobrecarregados de trabalho, pois poucos funcionários auxiliam os servidores públicos de outros departamentos, que não necessariamente possuem as habilidades digitais para suas atividades.

A expansão da infraestrutura de Internet nesses municípios, principalmente a fibra ótica, levou ao aumento do uso das TIC de acordo com os entrevistados. Conforme mencionado, os governos locais intensificaram o uso de sistemas de informação, como o CadÚnico e o DataSUS, principalmente para acessar subsídios de projetos federais, reforçando os resultados encontrados por Ribeiro et al. (2018). Além disso, os governos locais avançaram na prestação de contas ao publicar dados públicos online por meio de sites específicos denominados portais da transparência. Nesse caso, o papel dos órgãos de controle externo e do Judiciário foi fundamental para induzir a adoção desses portais e outras formas de divulgação online pelas prefeituras.

No entanto, a fragilidade nas capacidades de TIC dos governos locais resultou na falta de estratégias e políticas mais institucionalizadas para fortalecer o uso de TIC nos governos e nas habilidades digitais dos funcionários públicos, bem como para expandir a oferta de serviços online e implementar políticas de inclusão digital, especialmente focadas nos grupos mais vulneráveis da sociedade. Em relação à prestação de serviços online, foi comum encontrar serviços mais informacionais, ou seja, disponibilização de informações e dados públicos, do que transacionais, como agendamento de consultas médicas. A única exceção é o pagamento de impostos e a emissão de notas fiscais eletrônicas, reforçando os resultados da pesquisa TIC Governo Eletrônico 2019.

No que diz respeito às políticas de inclusão digital, a solução anterior adotada pelos governos brasileiros era o desenvolvimento de telecentros, com acesso gratuito à Internet e computadores, onde os funcionários muitas vezes ensinavam os usuários a desenvolver habilidades digitais. A maioria dos municípios analisados implantaram telecentros induzidos por transferências federais (CGI.br, 2021d). Porém, com a descontinuidade desse financiamento, os telecentros fecharam. Nos últimos anos, as prefeituras passaram a oferecer mais frequen- temente Wi-Fi gratuito em prédios públicos e praças, encontrados em menos de um terço dos municípios analisados. Em alguns prédios públicos, como bibliotecas, equipamentos públicos de assistência social e escolas, estão disponíveis computadores para uso dos cidadãos. No entanto, são iniciativas pontuais e não contemplam o desenvolvimento de competências digitais dos indivíduos em suas atividades.

As entrevistas mostram que há ausência de financiamento federal ou estadual para induzir políticas de inclusão digital dos governos locais, bem como políticas federais e estaduais com esses objetivos. Como resultado, não foram identificadas políticas relevantes que buscas- sem aumentar o acesso à Internet e o uso de TIC pela população nos municípios analisados. Todos os grupos não apresentam diferenças significativas que expliquem as variações relevantes nos níveis de capacidade local.

Apesar disso, encontramos diferenças nas políticas implementadas durante a pandemia para garantir o acesso às políticas sociais por meio do uso das TIC. A maioria das cidades não adotou aulas remotas, pois os entrevistados mencionaram que um número significativo de alunos não possuía Internet adequada e dispositivos para atividades remotas, como videoconferências, que exigem acesso regular à Internet, conexões rápidas, pacote de dados suficientes e equipamentos adequados. Nesse sentido, os professores utilizaram as TIC para desenvolver e imprimir atividades e contataram os alunos e suas famílias principalmente por
meio das redes sociais. Os professores usaram chamadas de vídeos em algumas cidades para atender aos alunos, e apenas em uma cidade a prefeitura ofertou chips aos alunos para as aulas online. Foi relatado que o governo de um estado também deu chips aos alunos.

O acesso a outras políticas sociais também foi mediado pelas TIC. Um quarto das cidades adotaram o agendamento online de consultas médicas e videoconferências para monitorar os beneficiários assistenciais (especialmente do Programa Bolsa Família). Também houve casos em que servidores públicos de prefeituras auxiliaram os cidadãos no download e no uso do aplicativo para acessar o Auxílio Emergencial, benefício social oferecido durante a pandemia pelo governo federal. No entanto, essas foram iniciativas fragmentadas de alguns poucos governos locais e não foram observadas na maio-
ria dos municípios.

5.3.Sociedade civil

Entre as entidades entrevistadas, não foi identificada nenhuma iniciativa implementada por organizações da sociedade civil para expandir o acesso à Internet e o uso das TIC pela população com foco prioritário no acesso de grupos vulneráveis. Embora a maioria das organizações não governamentais analisadas representasse grupos que historicamente enfrentam mais barreiras para acessar a Internet, apenas uma organização não governamental informou ter Wi-Fi gratuito disponível para a comunidade. Os entrevistados mencionaram que, mesmo não implementando iniciativas de inclusão digital de forma institucionalizada, adotaram atividades que intensificaram a realização de atividades online, como participar de videoconferências para treinamentos e reuniões online, utilizar as redes sociais para compartilhar informações, vender produtos e serviços, contatar a população e pesquisar informações na Internet, como preços de produtos agrícolas, alguns deles decorrentes das necessidades impostas pela pandemia de COVID-19.

A ausência de iniciativas de inclusão digital nas organizações da sociedade civil é distinta do que a literatura relata sobre o papel da sociedade civil em promover maior inclusão digital. Essa diferença pode ser explicada porque a literatura analisa experiências que implementam iniciativas e, neste estudo, a seleção dos municípios não foi orientada por essa premissa. Isso mostra que, ainda que haja experiências relevantes, essa não é a realidade de todo país.

6.Considerações finais

Este estudo mostra que existem áreas, principalmente rurais e remotas, que carecem de infraestrutura. No entanto, os desafios relacionados ao acesso à Internet vão além da expansão da infraestrutura. A análise dos quatro grupos mostra que ainda há barreiras quanto à garantia de conexões estáveis e de alta velocidade, de dispositivos adequados para todos e o desenvolvimento de habilidades digitais para a diversificação do uso das TIC em pequenos municípios, aspectos críticos para o desenvolvimento socioeconômico, a democratização e a participação política. Em municípios pequenos prevalecem ISP de pequeno porte, com poucos funcionários.

No entanto, suas capacidades administrativas e organizacionais variam entre os grupos.

Enquanto o Grupo 1 possui ISP mais frágeis, com baixos níveis de capacidades, o Grupo 4 possuía ISP mais profissionalizados e, em alguns casos, vinculados a empresas de médio porte, o que afetava o serviço e as tecnologias ofertadas. Alguns ISP buscaram superar essas fragilidades estabelecendo parcerias com outras pequenas empresas, se restringindo à troca de informações e equipamentos e compras conjuntas. Além disso, a maioria deles não contava com financiamento público ou privado para apoiar futuros investimentos, pelo que a ampliação de suas capacidades resulta sobretudo das suas próprias estratégias.

A análise mostra que as capacidades e serviços dos ISP explicam as diferenças nos níveis de conectividade entre os quatro grupos.

É o caso da ausência ou fragilidade das políticas de inclusão digital nos municípios analisados. Embora o aumento do uso de TIC pelos governos locais tenha resultado na intensificação dos sistemas de informação, na expansão da oferta de serviços online e no aumento da responsabilidade pela publicação de dados públicos online, apenas uma pequena parcela dos municípios implementou iniciativas de inclusão digital para a população e estas se caracterizaram por um alto grau de descontinuidade e fragmentação.

Este estudo destaca ainda a importância de analisar as variações de conectividade no nível local, aprofundando a discussão sobre acesso e uso de tecnologia e considerando as interseções entre conectividade e capacidades locais. Futuros estudos comparativos e de caso são fundamentais para melhor compreender as desigualdades sociodigitais intramunicipais e os fatores relacionados às capacidades locais que afetam a conectividade, especialmente em municípios com diferentes níveis de conectividade e capacidades locais, semelhantes aos dos Grupos 2 e 3.

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Luciana Portilho lportilho@nic.br

Doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp. Pesquisadora no Cetic.br | NIC.br.

Leonardo Melo Lins leonardomelo@nic.br

Doutor em Sociologia pela USP. Pesquisador no Cetic.br | NIC.br.