volume 5 / número 1 / jul 2024

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Carta do Editores

A inteligência artificial (IA) enquanto campo de estudos e aplicações, possui uma trajetória de várias décadas, mas ganhou notoriedade com o lançamento de ferramentas como ChatGPT e Midjourney no ano de 2022. Esses sistemas de IA possuem a capacidade de gerar textos, imagens, sons e vídeos comparáveis à produção humana. E, de forma inédita, tal capacidade de produção tornou-se pública de forma fácil e acessível para boa parte dos usuários de internet.
Essas aplicações fomentaram discussões sobre os impactos diretos de IAs em diversas profissões e sobre as possíveis transformações estruturais em diversos setores da sociedade. Além disso, reacenderam o debate acerca de sistemas de IAs que já estavam em pleno uso, como aqueles presentes em plataformas de redes sociais digitais, bem como na formulação e implementação de políticas públicas.

No contexto dos impactos da IA, torna-se imprescindível discutir o que caracteriza um sistema de IA, dado que é um conceito em evolução e ainda desprovido de consenso. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) define sistema de IA como: “[…] um sistema baseado em máquina que, para fins explícitos ou implícitos, deduz, a partir da entrada que recebe, como gerar saídas como previsões, conteúdo, recomendações ou decisões que podem influenciar ambientes físicos ou virtuais” (OCDE, 2024).

Archegas e Maia (2020) sugerem a análise de subconceitos que delimitam e compõem a complexidade do conceito de IA, como estratégia para sua compreensão. Os autores identificam dois subcampos principais. O primeiro é machine learning, que se concentra no emprego de dados e algoritmos para simular o processo de aprendizagem humano, permitindo que os sistemas aprimorem, de forma contínua, sua precisão ao responder questões ou solucionar problemas. O segundo subcampo é o deep learning, no qual sistemas de IA aprendem a realizar tarefas mais complexas por meio de redes neurais (Archegas y Maia, 2020).

Embora essas abordagens apresentam distinções, é relevante ressaltar que esses sistemas não são autônomos nem dotados de racionalidade para operar sem um treinamento prévio. Conforme argumenta Crawford (2022), os sistemas de IA dependem de contextos políticos e sociais e são desenvolvidos a partir de recursos naturais, logística, infraestrutura e materiais. Assim, estão relacionados a dinâmicas de poder. Dessa forma, discute-se a ideia de que as tecnologias não são neutras, nem podem ser reduzidas a meros instrumentos técnicos. Como defende Hui (2020), “[…] a tecnologia não é antropologicamente universal; seu funcionamento é assegurado e limitado por cosmologias particulares que vão além da mera funcionalidade e da utilidade” (Hui, 2020, p. 15). Assim, não se pode falar de uma tecnologia única, mas de uma pluralidade de cosmotécnicas.

Por sua vez, na pesquisa, já é possível visualizar as potenciais transformações que acontecerão pela influência da inteligência artificial generativa, como a forma como procuramos material acadêmico e também como lemos, resumimos e lidamos com esses e outros conteúdos pela rede. Igualmente, os chamados grandes modelos de linguagem, como ChatGPT, são treinados em diferentes linguagens de programação, capacitando ainda mais o movimento de ter habilidades em linguagens como R e Python para a análise de dados. Eles ainda são equipados para serem competentes analistas de dados sejam eles quantitativos sejam qualitativos, podendo inclusive responder a comandos diretos sem a necessidade de nenhum conhecimento na área. Consequentemente, também são capazes de gerar inúmeras visualizações de dados, como quadros, tabelas e diversos tipos de gráficos e grafos. E como modelos de linguagem, eles são especialmente aptos para escrever ou revisar os nossos próprios textos. As consequências podem ser diversas, como problemas com plágio, restrições metodológicas, limite à inovação e originalidade, assim como possíveis efeitos negativos na integridade da pesquisa, já que tais modelos são proprietários, fechados. Paradoxalmente, poderemos fazer tarefas mais complexas usando tais modelos ou outras soluções baseadas nos mesmos (SAMPAIO et al, 2024). Algumas dessas questões acabam em maior ou menor medida sendo discutidas pelos artigos presentes neste dossiê.

Pela grande oferta de artigos apresentados, este dossiê será dividido em duas edições. Após a análise editorial e da avaliação dos(as) pareceristas, XX artigos são publicados neste dossiê, o que confere a excelente qualidade das submissões realizadas. São artigos que propiciam a reflexão sobre sistemas de IA e regulação, governança, riscos e desafios nas mais diversas áreas, como o mercado do trabalho e as campanhas eleitorais. Bem como convidam à imperiosa discussão sobre a necessidade de uma perspectiva interdisciplinar para compreender os usos e impactos de sistemas de IA na sociedade.

Neste contexto, o que estamos assistindo é um momento histórico no qual organizações e corporações estão acumulando e estruturando dados de todos os tipos, sobre todas as coisas e fenômenos sociais, naturais ou sintéticos. Esta coleta silenciosa e onipresente culminará, nos próximos anos, em modelos automatizados cada vez mais robustos e mais conectados ao comportamento humano. Ao mesmo tempo, o avanço na computação quântica, ainda em fase experimental, representará uma guinada na capacidade desses sistemas, estabelecendo um novo patamar. Tudo isso está intimamente conectado a novas estruturas de poder tendo em vista a tendência de enraizamento dessas ferramentas na cultura, política, economia e nos diversos outros campos de ação humana. Diante disso, o Estado tem o papel fundamental de estabelecer normatizações e políticas públicas capazes de dar conta de dois movimentos concomitantes: por um lado, fomentar infraestrutura e know how para viabilizar esses sistemas do ponto de vista operacional com foco em seu caráter inclusivo. Países que não investirem em infraestrutura de transporte de dados (backbones, backhauls, 5G e 6G), armazenamento e processamento (especialmente datacenters) enfrentarão gargalos técnicos e sofrerão com forte dependência geopolítica, acirrando disparidades. Por outro lado, garantir a proteção de direitos, combater violações e canalizar esses avanços na forma de benefícios coletivos é uma outra obrigação do Estado. Neste sentido, a regulação de IA se torna uma premissa obrigatória, não apenas uma opção facultativa. Requer leis e normatizações com sólidos princípios baseados no interesse público, com claras responsabilidades atribuídas e limites delimitados para grandes players, incluindo o próprio Estado. A busca deve ser por um ecossistema para IA que esteja atento aos riscos e aberto à inovação. Regulações genéricas e mal desenhadas podem ser extremamente danosas pois tendem a aumentar a concentração de poder, ampliar desigualdades, potencializando violações sob o respaldo da lei.

Francisco Brito Cruz

Mariana Valente

Rafael Sampaio

Os editores

 

Referências bibliográficas

Archegas, J. V., & Maia, G. (2022). O que é inteligência artificial (IA)? Análise em três atos de um conceito em desenvolvimento. Cadernos Adenauer, 23(2), 14-17.

Crawford, K. (2022). Atlas de inteligencia artificial: poder, política y costos planetarios. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica (FCE).

Hui, Y. (2020). Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora.

OCDE. (2024). Recommendation of the Council on Artificial Intelligence. OECD/LEGAL/0449. Disponible en: https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0449

Sampaio, R. C., Nicolás, M. A., Junquilho, T. A., Silva, L. R. L., Freitas, C. S. D., Telles, M., TEIXEIRA, J.; ESCÓSSIA, F.; & Santos, L. C. D. (2024). ChatGPT e outras IAs transformarão a pesquisa científica: reflexões sobre seus usos. Revista de Sociologia e Política, 32, e008.

Rafael C. Sampaio cardososampaio@gmail.com

Rafael é professor permanente do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFPR. Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD). Foi presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica) e editor da Revista da Compolítica. Já atuou como consultor do Banco Mundial, Bertelsmann Foundation (Alemanha), Adam Smith International (Reino Unido) e de pesquisas do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), Labhacker (Câmara dos Deputados), W3C Brasil e Centro de Estudos sobre Tecnologias Web, e Transparência

Maria Alejandra Nicolás maria.nicolas@unila.edu.br

Professora da área de Administração Pública e Políticas Públicas e do Mestrado em Políticas Públicas e Desenvolvimento da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Brasil.

Sivaldo Pereira da Silva https://orcid.org/0000-0001-8767-7679

Professor da Faculdade de Comunicação (FAC) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).