<span class="sans">Afinal, o que é privacidade? </span>Um panorama histórico do direito à privacidade no ordenamento constitucional brasileiro

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Isadora Valadares Assunção
Silvio Fernando Janson

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volume 5 / número 1 / jul 2024 ↘ Artigo

Afinal, o que é privacidade? Um panorama histórico do direito à privacidade no ordenamento constitucional brasileiro

Isadora Valadares Assunção & Silvio Fernando Janson

Resumo

A privacidade é um conceito jurídico cujas discussões remontam a invenções tecnológicas como a fotografia e as escutas ambientais. No Brasil, suas origens históricas recebem pouca atenção acadêmica, o que leva a imprecisões teóricas na interpretação atual dos dispositivos constitucionais e legislativos concernentes a ela. Nesse sentido, propõe-se uma revisão narrativa de literatura, junto à análise documental dos anais da Assembleia Constituinte, para evidenciar a evolução temática do direito à privacidade no ordenamento brasileiro. Para tal, foi analisado o contexto internacional a partir do qual se inseriu o tema na Assembleia Nacional Constituinte e as discussões sobre a privacidade durante esta. Por fim, examinou-se o panorama atual da privacidade a nível nacional a partir do texto promulgado da Constituição Federal de 1988.

1. Introdução

A hermenêutica de conceitos jurídicos inseridos em contextos de alto dinamismo revela elevada complexidade. Nesse sentido, a metáfora de um romance em cadeia ilustra que o jurista interpreta o direito a partir de um panorama – o conjunto de decisões, as elaborações legislativas, entre outros – que restringe seu espaço de criatividade, mas não o elimina. Pelo contrário, tal criatividade deve ser exercida em direção à melhor construção do romance, tida em seu caráter contínuo e evolutivo1. Um destes conceitos é a privacidade, cuja evolução interpretativa se destaca em suas nuances, avanços e retrocessos.

Nesse sentido, observa-se que as novas tecnologias aparentemente surgem para trazer mais satisfação, eficiência e tranquilidade para a humanidade. Porém, com o advento da revolução na informática, talvez o direito mais importante possuído pelo ser humano esteja sob ataque. Câmeras de vigilância, o rastreamento da navegação do usuário para criar perfis comportamentais e direcionar anúncios personalizados para ele2, sistemas computadorizados que armazenam dados pessoais eliminando o direito ao esquecimento3, tudo isso já são fatos.

No Brasil, com o argumento de proteger a sociedade (explorando o medo da população, semelhantemente ao que ocorre nos EUA justificando-se a vigilância estatal pelo suposto combate ao terrorismo4), proliferam os mecanismos de vigilância, a exemplo dos radares com câmeras espalhados por todas as principais cidades exigindo redução de velocidade e que, muitas vezes, são integrados com sistemas de IA relacionados ao monitoramento criminal, como o Detecta, em SP5. Outro exemplo na direção da ubiquidade da vigilância estatal vem da China, onde aparatos de vigilância, como câmeras de reconhecimento facial, monitoramento da atividade em redes sociais, etc., geram scores de avaliação social no melhor estilo ficção científica, sendo também usados para perseguições étnicas6. Os exemplos são diversos e não param de crescer. O Direito, como sempre, corre atrás da realidade tentando adequar-se.

É nesse contexto que o presente artigo visa, em caráter de análise documental, analisar os debates da Assembleia Nacional Constituinte sobre o direito à privacidade e, a partir de uma análise narrativa, evidenciar a evolução de tal direito no ordenamento brasileiro. Assim, não se busca apenas um exame detido das origens genéticas de tal conceito, mas destacar, de maneira historicamente informada, as finalidades de sua tutela, para que se possa, a partir disso, fazer face aos novos desafios advindos do impacto das novas tecnologias na sociedade.

2.O direito à privacidade no campo constitucional

2.1. O contexto internacional do direito à privacidade e a Constituinte

Ainda no século XIX, a discussão sobre o direito à privacidade surgiu nos Estados Unidos frente ao avanço dos meios de comunicação. Nesse contexto, Warren e Brandeis publicaram, em 1890, o texto “The Right to Privacy”, no qual estabeleceram o direito à privacidade como o “direito de ser deixado sozinho” (the right to be let alone). Tal direito teria uma dimensão negativa, já que ofereceria proteção contra intromissões não desejadas sobre pensamentos, sentimentos e emoções de um indivíduo7.

Apesar deste ser o marco inicial da discussão sobre o direito à privacidade, persistia, ainda, a necessidade de um maior aprofundamento e delimitação de tal direito, com sua diferenciação de outros, como o direito à liberdade8. Assim, durante o século XX, diversos autores empenharam-se no estabelecimento de um direito único, cujo centro gravitava, ora na informação ora no acesso, entre outros, como, respectivamente, em Westin e Gavison.

Em 1967, Alan Westin definiu a privacidade como “a reivindicação de indivíduos, grupos ou instituições para determinar por eles mesmos quando, como e até qual ponto informação sobre eles é comunicada com outros9”. Em 1980, Ruth Gavison propõe, por outro lado, que a privacidade é uma limitação do acesso de terceiros a um indivíduo, envolvendo a dimensão do conhecimento sobre alguém e do acesso físico a ele, além da medida em que alguém é objeto da atenção de outrem10.

Concomitantemente, na Europa, as discussões sobre o direito à privacidade eram permeadas por uma preocupação em evitar abusos estatais advindos da coleta de informações individuais, como os ocorridos na Segunda Guerra Mundial11. Na Holanda, por exemplo, em 1938, um sistema de registro populacional foi estabelecido para simplificar a administração pública, seguindo o cidadão “do berço ao túmulo”12 (from cradle to grave). Entretanto, com a invasão nazista em 1940, foi usado para identificar a população judia e cigana, levando ao extermínio dessas13.

Assim, enquanto nos Estados Unidos as discussões sobre a privacidade centravam-se na dimensão individual do direito à privacidade, na Europa o viés político-social estava em destaque, ainda mais com o desenvolvimento da informática possibilitando o processamento de dados em grande escala14. Nesse sentido, o modelo europeu de consideração da privacidade foi, em grande parte, direcionado por uma decisão do Tribunal Constitucional Alemão em 1983.

Em 1977, a Alemanha aprovou uma legislação nacional de proteção de dados15. Com a Lei do Censo Populacional em 1982, previa-se a realização de um censo cujos dados seriam compartilhados com os demais órgãos públicos para fins não estatísticos. Tal lei sofreu intenso escrutínio público, culminando na decisão do Tribunal Constitucional em 1983 que determinou, entre outras disposições, o direito à autodeterminação informativa como desdobramento do direito geral à personalidade. Estabeleceu também o direito de acesso e de retificação dos dados, além do princípio da finalidade. Adicionou-se, então, uma dimensão positiva à privacidade, tradicionalmente entendida como um direito à exclusão de terceiros16.

Com o reconhecimento da importância do direito à privacidade tanto na dimensão individual quanto coletiva, este passou a ser assegurado também constitucionalmente em países europeus, entre os quais destacam-se Portugal e a Espanha, sendo que aquele influenciou sobremaneira as discussões da Assembleia Nacional Constituinte brasileira sobre o assunto. Na Constituição Portuguesa de 1976, estabelece-se no art. 26 (1) que:

  1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. […]17 (grifos nossos)

Estabelece também, no art. 35, diretrizes para a utilização da informática, garantindo o direito de acesso a dados informatizados, a proibição de tratamento informatizado de dados concernentes a opiniões políticas e filosóficas ou à vida privada, entre outros, salvo se para fins estatísticos não individualmente identificáveis. Ainda, proíbe o estabelecimento de um número nacional único aos cidadãos e o acesso aos dados pessoais de terceiros, salvo disposição legal.

Verifica-se, então, uma progressiva ampliação do direito à privacidade, com sua constitucionalização em certos países europeus e a atribuição de uma perspectiva positiva e social ele, ainda que de forma pouco consolidada. Nesse contexto, surge o debate da questão na Assembleia Nacional Constituinte (ANC), contendo disposições sobre quatro eixos centrais da privacidade, como será evidenciado: a intimidade, o sigilo, a dimensão física e a informacional.

2.2.A Comissão Afonso Arinos e o direito à privacidade

O anteprojeto elaborado pela Comissão Afonso Arinos não foi adotado como base para os trabalhos da ANC, mas assumidamente foi utilizado pelos constituintes como inspiração18.

Apresentava, no seu art. 17, in verbis, uma série de determinações sobre a dimensão informacional da privacidade, indo ao encontro das discussões europeias sobre o tema:

Art. 17 – Todos têm direito de acesso às referências e informações a seu respeito, registradas por entidades públicas ou particulares, podendo exigir a retificação de dados, com sua atualização e supressão dos incorretos, mediante procedimento judicial sigiloso.

  • 1º – É vedado o registro informático sobre convicções pessoais, atividades políticas ou vida privada, ressalvado o processamento de dados não identificados para fins estatísticos.
  • 2º – A lesão decorrente do lançamento ou da utilização de registros falsos gera a responsabilidade civil, penal e administrativa19.

Englobava, então, tanto o direito de acesso quanto de retificação, assim como na decisão do Tribunal Constitucional Alemão. Refletia também, no § 1º, um receio sobre o processamento de dados pessoais privados armazenados em registros informáticos. Assim como na Constituição de Portugal, apenas se permitia tal registro para fins estatísticos nos quais os dados não fossem individualmente identificáveis. Previa-se, além disso, a responsabilização civil, penal e administrativa sobre registros falsos, além de se assegurar, no art. 48, um instrumento processual para a tutela dos direitos supracitados: o habeas data.

Ainda, abordava-se a dimensão física da privacidade, refletida na concepção tradicional norte-americana sobre o tema, com o direito à inviolabilidade da casa e o direito à moradia sendo assegurados, respectivamente, no art. 37 e no art. 368.

Por sua vez, o sigilo da correspondência e das comunicações é garantido pelo art. 38, com exceção para atividades de investigação criminal autorizadas judicialmente.

O texto do anteprojeto Afonso Arinos influenciou sobremaneira as discussões da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, tanto é que Cândido Mendes, o relator da comissão que discorreu sobre o tema na Comissão Afonso Arinos, fez extenso discurso na Assembleia Constituinte, como convidado, sobre a questão da privacidade.

2.3.Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais e o direito à privacidade

Na Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, as pontuações que dizem respeito ao direito à privacidade foram ensejadas, principalmente, pelo discurso de convidados da sociedade civil, em especial: Orlando Coutinho, Cândido Mendes e Arthur Pereira.

Em sua participação na 7º reunião da subcomissão, Orlando Coutinho, representante da Confederação Geral dos Trabalhadores, enfatizou a preocupação com “o direito à privacidade, à liberdade de opinião e consciência”20 frente a registros informáticos de informações pessoais. Exemplificou que estes poderiam ser utilizados por empresas para criar listas negras de trabalhadores que externassem certas opiniões políticas, impedindo-os de serem contratados. Ademais, afirmou que erros eram comuns em tais registros, levando a implicações práticas como a negação do crédito pessoal pelo Serviço de Proteção ao Crédito21.

Assim, apresentou como da mais alta relevância que a responsabilidade civil, penal e administrativa por informações falsas fosse estabelecida, além do direito de acesso e retificação aos bancos de dados. Refletia, então, nesse ponto, posição semelhante àquela presente no anteprojeto da Comissão Afonso Arinos.

Quanto ao sigilo, discordou da Comissão supracitada, defendendo que esse não deveria admitir violações nem mesmo sob ordem judicial, citando caso de escutas telefônicas pelas autoridades policiais de conversas entre advogados paulistas e seus clientes22.

Já na 8º reunião, Cândido Mendes, representante da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, fez explanação sobre os novos direitos humanos decorrentes do progresso social e tecnológico. Observou, nesse sentido, que: “estamos diante do rapto da alma, os registros eletrônicos e a informática permitem, na instalação desse crime moderno, a ditadura da versão e da ficha sobre a verdade da pessoa”23. Frente a isso, trouxe, como propostas, de forma alinhada à Constituição Portuguesa e ao anteprojeto Afonso Arinos: (i) o estabelecimento do habeas data, que será posteriormente detalhado; (ii) a inviolabilidade da casa, ameaçada pelas teleobjetivas e por sensores eletrônicos; (iii) a reserva da intimidade24.

Posteriormente, na 10º reunião, o representante da União Brasileira de Informática Pública, Arthur Pereira Nunes, retomou ao tema das garantias individuais frente à informática. Em relação ao direito à privacidade, defendeu: (i) o direito de acesso e de retificação, (ii) a proibição do tratamento de informações pessoais em registros informatizados, (iii) a responsabilidade dos administradores dos registros, (iv) a garantia do uso da informação apenas para a finalidade para a qual foi coletada e (v) a proibição da atribuição de um número único ao cidadão, nos moldes da Constituição Portuguesa. Justificou a necessidade da positivação desses direitos como advinda do progresso crescente da informática e dos efeitos danosos que este poderia trazer à sociedade, em especial no século XXI25.

A respeito da última pontuação de tal convidado, o Constituinte Eliel Rodrigues, do PMDB, observou que, apesar de já existirem no Brasil o CPF e o RG, havia uma tendência mundial de centralização das informações a respeito do cidadão, com o processamento por supercomputadores permitindo uma maior ingerência estatal, que implicaria na violação à privacidade do indivíduo26. Em resposta, Arthur Pereira pontuou que de fato o número único apresentava novos riscos frente ao avanço informático, fomentando a perseguição política nos moldes do que ocorreu na ditadura, além de que traria a possibilidade de erros em escala nos registros públicos centralizados27.

O presidente da Subcomissão, Antônio Mariz, do PMDB, reforçou os riscos políticos advindos do registro de dados individuais sobre os cidadãos, excluídas informações anonimizadas para fins estatísticos. Nesse sentido, afirmou que:

É evidente que esse arquivo de dados pessoais tem um sentido eminentemente político. Esse tipo de registro constitui uma ameaça permanente à sociedade. É claro que nos momentos de recrudescimento – praza aos céus não ocorra – do Estado autoritário esses elementos teriam extrema eficiência na repressão. É claro, se estamos elaborando uma Constituição democrática, não podemos admitir, em hipótese alguma, o registro de dados privados. Que interesse pode haver, do ponto de vista social, nesses dados, a menos que se admita essa discriminação em virtude das particularidades dos indivíduos?28

Percebe-se, então, que a tônica da Subcomissão girou em torno da preocupação com a possibilidade de limitações das garantias individuais em um cenário de desenvolvimento informático. Apesar do reconhecimento da possibilidade de interesses sociais como a realização de pesquisas estatísticas para a formulação de políticas públicas, havia um receio generalizado da perseguição política que poderia se originar do tratamento de dados.

Tais preocupações são expressas no anteprojeto da Subcomissão, inspirado na Constituição Portuguesa e no anteprojeto Afonso Arinos. No inciso VI, previa-se a proteção da dignidade da pessoa humana, de sua honra, privacidade, reputação e imagem pública, além de se assegurar o direito de resposta. Por sua vez, no inciso VIII, in verbis, previa-se a proteção da dimensão informacional da privacidade:

VIII – o conhecimento das informações e referências pessoais, e do fim a que elas se destinam, registradas por entidades públicas ou particulares; é vedado o registro de convicções pessoais, atividades político-partidárias, ou acerca da vida privada; é permitido, para fins estatísticos, o registro de dados não identificáveis individualmente; é assegurada a supressão ou retificação de dados incorretos, mediante procedimento administrativo ou judicial, de caráter sigiloso; responde civil, penal e administrativamente todo aquele que determine, realize ou se utilize de registro de dados pessoais incorretos ou falsos; dar-se-á habeas data ao legítimo interessado, para assegurar-lhe o direito de conhecer as informações e referências pessoais existentes a seu respeito;29 (grifos nossos)

Percebe-se, portanto, que, nos debates da Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais, a preocupação central remetia a que se fosse assegurada uma esfera de liberdade ao indivíduo frente à crescente capacidade estatal e particular de processamento de dados, inclusive por meio da previsão de mecanismos de acesso e retificação dos dados pessoais. Ademais, em algumas situações tidas como especialmente propícias a abusos, como o registro de convicções pessoais ou de atividades político-partidárias, previa-se uma vedação geral, pelo que se percebe um escalonamento das proteções constitucionais à privacidade, inclusive em sua dimensão informacional.

2.4.Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher e o direito à privacidade

Ao passar para o âmbito da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, as disposições sobre a privacidade assumiram novos contornos. Na nova redação do substitutivo, no inciso VII, intitulado “Da privacidade”, eram garantidas, nas alíneas “a” até “g”, a privacidade da vida particular e familiar, além da casa, tida como inviolável a menos que sob ordens judiciais. Protegia-se também o sigilo das correspondências e das comunicações, salvo autorização judicial segundo os casos previstos em lei e para fins de investigação criminal. Ainda, a imagem pessoal, a vida íntima e a familiar não poderiam ser divulgados sem autorização, não podendo haver atividades privadas de investigação e prestação de informações sobre esses temas, nem serviços estatais de informação sobre eles. No campo policial e militar, os serviços de informação eram permitidos apenas no que se referissem à delinquência ou a atividades violentas de subversão dos fundamentos constitucionais30.

Após a apresentação do parecer do relator, intensas discussões seguiram-se. O Constituinte João Menezes, do PMDB-PA, evidenciou a falta de garantia da norma que proibia a divulgação, publicação ou invasão da vida íntima e familiar ou da imagem pessoal sem autorização do interessado. Não haveria garantia uma vez que a norma não define o que é invasão nem estabelece uma consequência para ela. Percebe-se, então, uma forte preocupação com a auto-aplicabilidade da lei. Menezes pontua, como exemplo da falta de garantia, que os pobres têm sua miséria televisionada sem consentimento, não tendo garantido o direito à privacidade como os demais. Assim, afirma que “ou esse dispositivo tem uma sanção para que seja aplicada e cumprida, ou então ele está aqui como mera fantasia”31.

Em seguida, o relator José Paulo Bisol, do PMDB-RS, discordou da posição de que a ausência, no texto constitucional discutido, de sanções levaria a uma falta de aplicabilidade. Isto porque o dispositivo teria implicações penais, frente às tipificações já previstas no Código Penal e aquelas que porventura o legislador viesse a criar, além de poder ensejar a responsabilização civil frente à eventual violação. Sendo assim, teria aplicabilidade prática garantida32.

Ademais, outro centro de discussão sobre o mesmo dispositivo ocorreu devido à pontuação pelo Constituinte Samir Achôa, do PMDB-SP, de que a proibição da invasão da vida privada constituiria uma limitação à liberdade de imprensa, na medida em que noticiar um crime seria uma invasão à privacidade33.

Em resposta, o relator Bisol afirmou que a privacidade é vinculada à própria dignidade da pessoa humana, sendo essencial para o desenvolvimento da personalidade. Além disso, em sua opinião não haveria cerceamento da liberdade de imprensa, pois quem quisesse poderia consentir, por exemplo, a aparecer na revista “Playboy”34.

É notável que implícito à discordância dos parlamentares está a divergência sobre o caráter individual ou social da privacidade. A concepção de Achôa entende a privacidade como direito individual de menor peso frente a direitos com uma dimensão social evidente, como a liberdade de imprensa. Por outro lado, Bisol entende que a privacidade, ao se relacionar intrinsecamente com a personalidade, traz benefícios sociais, em visão semelhante à da norte-americana Ruth Gavison. Nessa linha, o relator afirma que “A privacidade é mais importante do que a propriedade, é muito mais importante que o status, vinculada à dignidade da pessoa. […] Esse texto é de uma importância humana, moral e jurídica extraordinária!”35.

O debate sobre o viés social e político da privacidade reaparece também na fala do Constituinte José Genoíno, do PT-SP, que observou que a permissão dos serviços de informação estatais referentes à delinquência e à subversão violenta das bases constitucionais consistiria em uma legitimação de aparatos de vigilância, como o SNI, que violentam os direitos individuais36. Evidencia-se, assim como nas reuniões da Subcomissão, forte influência dos temores em relação à perseguição política que poderia advir de uma ausência de proteção adequada da privacidade, em especial pelo ocorrido na ditadura militar e semelhante às preocupações europeias com o tema.

Após os debates, o anteprojeto da Comissão foi aprovado com alterações mínimas em relação ao novo substitutivo do relator Bisol, sendo consolidada a versão por ele defendida. Assim, apenas modificou-se a inviolabilidade da casa para inviolabilidade da moradia, sem que se realizassem mudanças quanto à auto aplicabilidade das disposições nem se alterando a permissão de serviços de informação sobre delinquência e subversão.

2.5.Comissão de Sistematização e Comissão de Redação: o direito à privacidade

Na Comissão de Sistematização – posteriormente alterada para ser denominada Comissão de Redação – reapareceu a discussão sobre a inviolabilidade do sigilo ser sujeita ou não ao controle jurisdicional, sendo que, na Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, o convidado Orlando Coutinho já havia defendido que não o fosse37. Tal posição foi defendida na Comissão de Sistematização com a Emenda Brandão Monteiro, proposta pelo constituinte do PDT-RJ de mesmo nome38.

Do lado discordante, o constituinte Gerson Peres do PDS-PA argumentou que o princípio da inviolabilidade do sigilo já era consagrado na tradição constitucional, mas deveria haver a possibilidade de quebra deste segundo ordem judicial, para possibilitar a adequada persecução penal a depender do caso39. As mesmas razões alegou o constituinte Oswaldo Lima Filho, do PMDB-PE, para reforçar a necessidade do controle jurisdicional, sendo esta a corrente vitoriosa no Projeto de Constituição votado pela Comissão40. Sobre a questão, o constituinte Adolfo Oliveira, do PFL-RJ, alinhado à corrente que defendia o controle jurisdicional, ressaltou ainda a completude do texto do relator no que tange à inclusão da inviolabilidade do processamento de dados, devido ao avanço tecnológico41.

Quanto aos demais temas, não houve discussões substanciais nem na Comissão de Sistematização nem na Comissão de Redação, optando-se, no projeto final desta última, por priorizar-se a sinteticidade42 e excluir-se a seção “Da privacidade”, reduzindo os dispositivos nela contidos a incisos esparsos do art. 5º da Constituição. Assim, foram fixados princípios genéricos a serem especificados por legislações infraconstitucionais posteriormente, em detrimento dos avanços e do tratamento abrangente que o tema havia recebido na Subcomissão dos Direitos e das Garantias Individuais, além da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. A privacidade foi, então, abordada nos seguintes incisos, in verbis, coincidindo os termos do projeto final promulgado com os do texto vigente atualmente:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal43;

Apesar da disparidade entre o texto final e os textos das anteriores subcomissões e comissões, resta saber como os dispositivos vigentes são interpretados atualmente para se assegurar o direito à privacidade no panorama constitucional no século XXI.

3.A privacidade como direito fundamental no século XXI

3.1.A proteção da intimidade e da vida privada como expressão de um direito maior à privacidade

Segundo Doneda, a opção pelo legislador constitucional por distinguir entre “intimidade” e “vida privada” no âmbito do art. 5º, X, CF/88, reflete uma indeterminação terminológica da época44. Ademais, reflete também a influência doutrinária da teoria dos círculos concêntricos de Hubmann, também chamada de teoria das esferas45.

Para tal teoria, elaborada em meados do século XX, haveria três níveis de proteção do direito geral à personalidade, no qual se incluiria a noção de privacidade. No núcleo mais interno, havia a esfera da intimidade ou do segredo, protegida com a maior intensidade, tanto contra o público quanto a outros indivíduos. Envolvendo-a, havia a esfera privada, a englobar relações cotidianas, e que deveria ser protegida do público em geral. Por fim, como esfera mais externa, havia a esfera pessoal, que se referiria à vida pública e cuja proteção se restringiria aos danos que adviessem das relações com os demais nesta esfera46.

Seguindo a distinção feita pelo constituinte, a doutrina brasileira encontrou-se imersa em uma dubiedade terminológica, com esforços infrutíferos de diferenciar a “vida privada” da “intimidade”. Por exemplo, Silva47 considera que a vida privada inclui a intimidade, assim como Lôbo48. Por outro lado, Ferraz Júnior as diferencia, estabelecendo que a intimidade é um estar sozinho sem implicações sociais e a vida privada envolve a proteção de formas de convivência nas quais se excluem terceiros de certas relações49.

Destarte, Doneda entende que tal distinção não é relevante já que, apesar de cada um dos termos ter um campo semântico diferente, não tem valoração diferente. Ademais, a binariedade dos conceitos não encerra a pluralidade e a complexidade dos problemas relacionados à privacidade50. Nesse sentido, é de se notar a pontuação feita pelo jurista norte-americano Daniel Solove de que não é possível conceituar a privacidade em torno de um núcleo único, uma vez que abrange uma ampla gama de situações relacionadas entre si por meio de suas diversas similaridades51.

Além da falta de utilidade de uma distinção entre ambos os conceitos para sua aplicação prática, é possível observar que, durante grande parte da Assembleia Nacional Constituinte, ambas as noções se situavam na categoria “Da privacidade”, evidenciando-se uma relação entre elas entrevista pelos constituintes. Assim, toma força a inclusão de ambos os conceitos dentro daquele da privacidade, como propõe Doneda52, posição também reconhecida jurisprudencialmente53.

Quanto à privacidade, cabe destacar que, com o desenvolvimento das tecnologias da informação, além de sistemas de inteligência artificial, junto à disseminação do uso da internet, houve uma verdadeira transformação no conteúdo de tal direito. Se, no contexto da Constituinte, evidenciava-se já uma preocupação com o aspecto informacional da privacidade, em especial devido ao temor da evolução tecnológica, esta era ainda predominantemente entendida como um direito que implicava na exclusão de terceiros – fossem eles agentes privados ou estatais – da esfera privada ou íntima, como na teoria de Hubmann54. No entanto, com o avanço interpretativo, tal dimensão positiva vem sendo reforçada, ao se entender que, no contexto atual, um dos principais vetores de proteção à privacidade é a proteção dos dados pessoais55.

A isto se soma um crescente posicionamento doutrinário que aponta a insuficiência de considerar a privacidade como um direito subjetivo para sua efetiva proteção, reconhecendo-se sua dimensão coletiva frente aos seus benefícios políticos e ao fomento às interações sociais que proporciona56.

Ademais, devido ao aumento da capacidade inferencial dos sistemas de inteligência artificial aliados à massiva quantidade de dados da indústria de Big Data, a privacidade de um depende de que a dos outros seja minimamente preservada57. Nesse sentido, Doneda pontua que a definição de Rodotà sobre o direito à privacidade reflete a evolução recente do tema, englobando tanto seu aspecto físico quanto o informacional e o coletivo58. Segundo Rodotà, a privacidade é “o direito de manter o controle sobre as próprias informações e de determinar as modalidades de construção da própria esfera privada”59.

3.2.O aspecto físico da privacidade: a inviolabilidade da casa

Ainda no século XX, o âmbito físico-espacial da privacidade já era reconhecido, nos EUA, pela doutrina do acesso de Gavison60. No Brasil, a proteção constitucional da inviolabilidade da casa se deu com o art. 5º, XI, CF/88, além de ser esta considerada pela jurisprudência como parte do direito à intimidade, como no REsp nº157568161.

Com a inviolabilidade da casa sendo a regra, as elaborações doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema giraram em torno do eixo das exceções constitucionais a ela, em especial o flagrante delito, que permite a entrada no domicílio do indivíduo sem o seu consentimento e sem a necessidade de determinação judicial. Frente à necessidade de delimitação do tema para evitar o esvaziamento do direito fundamental em questão, o STF considerou, no RE nº 603.616, de repercussão geral reconhecida, que:

Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. […] 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados […]62 .

Tal interpretação, com a exigência de fundadas razões indicativas de um flagrante delito, é essencial para a consideração deste nos chamados crimes permanentes, como o tráfico de drogas63. Em decisão monocrática em fevereiro de 2021, no Inq. nº 4781, novos contornos em relação ao flagrante delito por condutas cometidas nas redes sociais foram delineados, na medida em que o ministro Alexandre de Moraes considerou que, como o vídeo postado pelo deputado federal Daniel Silveira – no qual defendia o AI-5 e a substituição dos ministros do STF – permanecia online, caracterizava-se a perpetuação do delito e permitia-se sua prisão por crime inafiançável64.

A decisão abre espaço para interpretações que legitimem a utilização de postagens de conteúdo em redes sociais e no ambiente virtual como justificativas para a configuração do flagrante delito, o que permitiria, inclusive, a invasão do domicílio do indivíduo sem o seu consentimento ou mandado judicial65. Assim, considerando-se o enorme fluxo de informações contemporaneamente, isto pode gerar um esvaziamento da regra da inviolabilidade da casa, discutida já durante a Comissão Afonso Arinos e posteriormente na Assembleia Nacional Constituinte, ameaçando sua adequada proteção constitucional.

3.3. A inviolabilidade do sigilo de dados e o direito à privacidade

Com a positivação da inviolabilidade do sigilo de dados no art. 5º, XII, CF/88, uma inovação em relação às Constituições anteriores, novos desafios surgiram em relação aos impactos de tal proteção nos limites da atuação fiscalizadora do Estado66. Nesse contexto, Tércio Sampaio Ferraz Júnior que, na época, era Procurador-Geral da Fazenda, elaborou parecer sobre o tema, que foi posteriormente publicado sob o título de “Sigilo de dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado”.

Neste, Ferraz Júnior estabeleceu que a inviolabilidade do sigilo de dados tinha como conteúdo a faculdade de manter o sigilo para proteger interesses do Estado ou individuais, sendo que neste caso efetivar-se-ia o direito à privacidade, tido como uma “liberdade de negação”67, semelhante à definição de Warren e Brandeis. Destarte, “não há um direito fundamental ao sigilo, e sim circunstâncias nas quais o sigilo é instrumental à proteção de um direito fundamental (à privacidade)”68, como observam Queiroz e Ponce.

Ademais, além de notar a instrumentalidade do sigilo, o autor nota que há uma simetria no art. 5º, XII, e deduz que o objeto do direito à inviolabilidade do sigilo de dados era a comunicação destes, mas não os dados em si, enquanto estivessem apenas armazenados69. Por fim, quanto aos dados armazenados, o autor considera que, apesar de não serem protegidos pelo art. 5º, inciso XII, poderiam o ser sob o inciso X do mesmo artigo, quando a apreensão dos dados interferisse na privacidade do indivíduo e, consequentemente, na sua integridade moral70. Assim, seria necessário sopesar, no caso concreto, se a fiscalização estatal geraria uma ingerência na esfera privada ou íntima do cidadão, casos nos quais não deveria ocorrer71.

A tese de Ferraz Júnior foi seletivamente incorporada na jurisprudência do STF, em especial no que tange à proteção do sigilo da comunicação de dados e não deles em si72. No Recurso Extraordinário 418.416/SC, Luciano Hang impetrou recurso extraordinário visando anular sua condenação por crimes tributários, aduzindo que se baseava em prova ilícita que violava o sigilo de dados73. No julgamento de tal recurso, o STF considerou que:

EMENTA: […] 3. Não há violação do art. 5º. XII, da Constituição que, conforme se acentuou na sentença, não se aplica ao caso, pois não houve “quebra de sigilo das comunicações de dados (interceptação das comunicações), mas sim apreensão de base física na qual se encontravam os dados, mediante prévia e fundamentada decisão judicial”. 4. A proteção a que se refere o art. 5º, XII, da Constituição, é da comunicação ‘de dados’ e não dos ‘dados em si mesmos’, ainda quando armazenados em computador. […] (RE 418416, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2006, DJ 19-12-2006 PP-00037 EMENT VOL-02261-06 PP-01233) (grifos nossos)

É de se notar, primeiramente, que, apesar da distinção entre comunicação de dados e dados armazenados ser de fato realizada por Ferraz Júnior no supracitado artigo, o STF não considerou que o autor observou explicitamente que isso não significa uma ausência de proteção aos dados em si, o que ocorreria pelo art. 5º, X74.

Ademais, Queiroz e Ponce notam que, enquanto o reconhecimento da importante relação entre a proteção de dados e a privacidade individual feita pelo autor se mantém atual, alguns pontos do artigo “Sigilo de dados” se mostram já superados. Entre eles: (i) a necessidade de um entendimento da privacidade também como liberdade positiva, com, por exemplo, o acesso e retificação dos dados pessoais; (ii) a superação da distinção entre dados em trânsito e armazenados como vetor para quantizar uma maior ou menor proteção a eles, até porque atualmente, com o aumento da capacidade de armazenamento de dados, estes podem ser mais sensíveis à privacidade do que aqueles75.

A atualização doutrinária vem sendo seguida, também, pela jurisprudencial. No HC 168.052, o Relator, Min. Gilmar Mendes, considerou que com “o significativo desenvolvimento das tecnologias da comunicação, do tráfego de dados e dos aparelhos smartphones, houve uma mutação constitucional, estando também os dados armazenados protegidos pelo art. 5º, XII, além da proteção advinda do inciso X do mesmo artigo76. Assim, observa-se que, com o advento das novas tecnologias, o aspecto informacional da privacidade torna-se central.

3.4.

3.4.1.

Como visto anteriormente, a amplitude da discussão sobre o direito à privacidade durante a Constituinte encerrou-se nos incisos X, XI e XII do art. 5° da CF/88. Contudo, frente às novas tecnologias, a legislação estabelecida pelo Constituinte originário fica ameaçada por ares de não-concretude. Nesse sentido, o habeas data, como instrumento de proteção do aspecto informacional da privacidade, torna-se central no debate sobre o tema no Brasil.

3.4. O instituto do habeas data

O termo objeto desta seção está em latim e significa “que tu tenhas os dados; as informações”77. Aparece nas propostas apresentadas pelo jurista Márcio Thomaz Bastos ao falar na 10ª reunião em 28/04/87 no texto supra-referenciado: “Dar-se-á habeas data ao legítimo interessado para assegurar os direitos tutelados no art. […]”78. Vê-se que a ideia da proposta do jurisconsulto era propiciar aos cidadãos ciência dos dados que houvessem sido coletados sobre eles.

Neste momento, cabe reflexão. Tenha-se em mente que o volume de dados coletados pelas empresas de informática e pelos órgãos estatais são de tal monta que a administração desses bancos de dados precisa ficar nas mãos de profissionais de TI amparados por inteligência artificial. Os profissionais trabalham em período integral e as máquinas vinte e quatro horas por dia. Pessoas físicas não dispõem desse tempo para cuidar de seus dados, não tendo capacidade econômica nem técnica para gerenciá-los e acompanhar sua coleta, na maior parte das vezes79.

Outro aspecto é a insuficiência do consentimento do usuário para a coleta de dados, central na legislação de proteção de dados atualmente, tanto pela assimetria de informações e poder entre usuário e operadores de dados, quanto pelo fenômeno da fadiga do consentimento80 e de que, por muitas vezes, serviços cotidianos são condicionados à aceitação da política de privacidade e dos termos de uso81.

A questão pendente é: o habeas data é viável ou é apenas letra morta? Enquanto tratava-se de número de Registro Geral, Cadastro de Pessoa Física, Certificado de Reservista e congêneres era possível para a pessoa natural acompanhar. No entanto, quem tem condição de saber quais as informações coletadas por celulares, notebooks, câmeras onipresentes, gravações digitais de tudo, desde uma simples aula de Direito até sabe lá Deus o que? Atualmente, até os registros médicos são, muitas vezes, devido à profusão de dados e dos altos custos econômicos de mantê-los em arquivos físicos, armazenados em nuvem, havendo riscos para a segurança das informações82 e para a privacidade.

Novamente, o Direito é atropelado pela vida.

Na CF/1988, a abordagem da proteção de dados ficou difusa, como repisado, dependendo da proteção da intimidade e da vida privada assentada no art. 5º, X. No entanto, tal proteção indireta é insuficiente para garantir a adequada segurança e certeza jurídica, além de não englobar dados pessoais, ou seja, que identificam uma pessoa, mas que não são privados, como, por exemplo, o nome, além de dados de processos judiciais que não estão sob sigilo, entre outros83. No entanto, segundo Laura Mendes, pode-se inferir um direito à proteção dos dados pessoais na Constituição Brasileira a partir de uma releitura do habeas data a partir de uma dimensão material, com amparo no art. 5º, X84.

O habeas-data (sic) é previsto constitucionalmente no art. 5º, LXXII, in verbis:

LXXII – conceder-se-á “habeas-data”:

  1. a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
  2. b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;85

O instrumento foi uma inovação do Constituinte e inspirou diversos países latino-americanos, tendo o legislador optado por reconhecer garantias como o direito de acesso e retificação indiretamente, ao fixar um meio de ação processual para sua defesa86. Baseou-se na doutrina da liberdade informática de Victor Frosini87, caracterizada pelo direito de não tornar público informações de caráter pessoal e reservado (dimensão negativa), além da faculdade de exercitar um direito de acesso e controle sobre os dados pessoais (dimensão positiva)88. Tal faculdade implicaria no direito do habeas-data89. Como Tommaso Frosini pontua, o habeas data na sociedade contemporânea envolve não apenas uma defesa passiva da autonomia individual como uma participação ativa no circuito das informações90.

Sobre tal observação, Mendes nota que, com o julgamento do RE nº 673.707, que tratava do acesso a dados armazenados na Receita Federal, o STF avançou no sentido de reconhecer tal sentido positivo – da autodeterminação informativa – no instrumento do habeas data91. Neste recurso extraordinário, reconheceu-se que “registro de dados deve ser entendido em seu sentido mais amplo, abrangendo tudo que diga respeito ao interessado, seja de modo direto ou indireto, causando-lhe dano ao seu direito de privacidade”92. Ademais, o min. Gilmar Mendes fundamentou, em seu voto, que “deste julgado, que pode ser, talvez, o marco inicial de uma vitalização do habeas data, numa percepção mais ampla, […] há já uma reflexão, não no campo procedimental processual, mas também no campo do direito material.”93

Segundo a autora, tal instrumento é essencial para o ecossistema de proteção de dados brasileiro, já que permite a proteção do titular de dados contra abusos do legislador. É de se notar que uma das bases legais da LGPD é a obrigação legal (art. 7º, II e art. 11, II, a, Lei nº 13.709/2018). Portanto, se o Legislativo aprovar uma lei que viole a privacidade, o cidadão estaria desprotegido caso a proteção de dados não fosse garantida constitucionalmente94.

Por outro lado, Doneda constata que o habeas data é fruto de um contexto histórico específico, com a intenção de se reforçar as bases democráticas do país. Hoje, sua importância seria eminentemente simbólica, mas não é o instrumento efetivo pelas seguintes razões: (i) por ter escopo limitado ao acesso e à retificação; (ii) por exigir o esgotamento da via administrativa; (iii) por não abranger os riscos de tratamentos desconhecidos pelo usuário95. Por fim, como nota Dallari “verificamos que o legislador brasileiro, após a primazia da criação de um modelo que cativa por sua simplicidade, é hoje, em certa medida, seu prisioneiro”96. Percebe-se então, que, apesar da CF/88 reconhecer o instituto expressamente, não o incluiu na forma preconizada por Márcio Thomaz Bastos.

Justificar-se-ia, assim, a inclusão, da proteção de dados no rol dos direitos fundamentais, dando guarida constitucional para tal direito, já previsto pela LGPD. Nesse contexto, destacam-se as ações constitucionais que discutiram a proteção de dados pessoais no STF, as ações diretas de inconstitucionalidade nºs 6388, 6389, 6390 e 6393, com tramitação conjunta.

Nelas, impugnava-se a Medida Provisória nº 954/2020, que determinava o compartilhamento dos dados pessoais dos usuários da rede de telefonia com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para fins de realização de pesquisas durante a pandemia de Covid-1997. Em sede de medida cautelar posteriormente referendada, considerou-se que a autodeterminação informativa decorria da proteção às esferas de personalidade do indivíduo, pelo que o tratamento de dados pessoais deveria observar os limites das “cláusulas constitucionais assecuratórias da liberdade individual (art. 5º, caput), da privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade (art. 5º, X e XII), sob pena de lesão a esses direitos”98. Reconhecendo, assim, a partir do texto constitucional, um direito à proteção de dados pessoais, a Medida Provisória nº 954/2020 teve sua eficácia suspensa, já que não previa de forma adequada as condições e finalidades do tratamento, nem medidas técnicas ou administrativas de proteção dos dados pessoais.

Posteriormente a tal reconhecimento pelo STF, a proteção de dados pessoais foi positivada como direito fundamental pela Emenda nº 115/2022, com a inclusão do art. 5º, LXXIX, CF, que deu guarida constitucional a tal direito, inclusive nos meios digitais, nos termos da lei. Observa-se, portanto, que os moldes de um direito à privacidade e, em sua dimensão positiva, de um direito à proteção de dados pessoais, devem ser colmatados a partir de uma visão constitucionalizada, refletindo a evolução que o tema passou desde a Assembleia Nacional Constituinte até a contemporaneidade.

Considerações finais

O artigo explora a evolução da proteção ao direito à privacidade no Brasil, a partir de suas raízes históricas na Assembleia Nacional Constituinte. Percebe-se, a partir de uma revisão exploratória sobre o tema, que a constitucionalização do direito à privacidade no Brasil refletiu influências internacionais, em especial a ideia de privacidade como uma proteção contra intrusões indesejadas originada nos Estados Unidos e a dimensão informacional sedimentada na Europa.

Ademais, no contexto brasileiro, a introdução do habeas data reflete uma compreensão da necessidade de se assegurar ao indivíduo mecanismos efetivos para conhecer quais dados sobre si estavam sendo tratados e, a partir disso, tutelar efetivamente o direito à privacidade em uma era de crescente coleta e processamento de dados. Por fim, a positivação da proteção de dados pessoais como direito fundamental pela Emenda Constitucional nº 115/2022 consolida a trajetória evolutiva do direito à privacidade no Brasil.

A análise da trajetória do direito à privacidade no ordenamento constitucional brasileiro reforça a necessidade de um debate que considere os avanços internacionais sobre o tema, mas que assegure contribuições novas que se adequem à realidade social e tecnológica do Brasil. Dessa forma, evita-se a reprodução de fórmulas prontas, mas que pecam pela desconsideração das particularidades nacionais e pela baixa efetividade. Assim, uma visão constitucionalizada e informada historicamente a respeito da privacidade assegura que esta continue a ser uma prioridade no ordenamento brasileiro e que este consiga fazer face ao dinamismo tecnológico que, por vezes, avança a custo das esferas de individualidade e do interesse coletivo.

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Isadora Valadares Assunção isadoravaladares@usp.br

Bacharelanda em Direito pela FDUSP.

Silvio Fernando Janson sfjanson@usp.br

Bacharel e Mestre em Economia pela FEA/USP – Licenciado em Música e Doutor em Artes pelo Instituto de Artes da UNESP.