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Juliane Cintra de Oliveira

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volume 3 ⁄ número 2 ⁄ dez 2022 ↘ Artigo

A experiência das iniciativas Cyberxirê e AqualtuneLab: o pioneirismo da Movimento Negro na construção de Ações Afirmativas de Promoção da Igualdade Racial no campo dos direitos digitais

Juliane Cintra de Oliveira

Resumo

A proposta deste dossiê se dedica a incluir trabalhos que reúnam experiências e iniciativas sobre os dez anos da Lei de Cotas, aproximando tal debate do campo de defesa e promoção de direitos digitais. Considerando este contexto, o presente artigo busca responder, como, após dez anos da lei de cotas, pessoas negras e indígenas têm se apropriado das plataformas já existentes? De que modo isso contribui para a construção de novas epistemologias? Para isso, partiremos de uma abordagem qualitativa baseada numa pesquisa empírica e digital, na qual entrevistamos duas pesquisadoras e ativistas do Movimento Negro que integram os coletivos Cyberxirê e AqualtuneLab. Tais coletivos são iniciativas antirracistas, comprometidas com construção de políticas compensatórias e promotoras de direitos humanos no campo de direitos digitais.

1. Introdução

A proposta deste dossiê se dedica a incluir trabalhos que reúnam experiências e iniciativas sobre os dez anos da Lei de Cotas, aproximando tal debate do campo de defesa e promoção de direitos digitais. A lei 12.711 de 2012, conhecida como Lei de Cotas – que regulamenta a implementação das cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio – foi gestada no seio do Movimento Negro brasileiro, como veremos a seguir. Tal medida faz parte das inúmeras modalidades de políticas compensatórias de fomento à equidade racial implementadas por diferentes grupos, coletivos, agremiações, entre outras formas de articulações políticas que são parte desse agrupamento de pessoas negras comprometidas com o enfrentamento ao racismo. As ações afirmativas são programas públicos ou privados que têm por objetivo reparar e redistribuir recursos e oportunidades para comunidades historicamente marginalizadas (Feres et al, 2018).

Escolher refletir sobre ações afirmativas à luz dos direitos digitais aponta para caminhos de atualização desta análise reconhecendo o papel da internet e do universo da tecnologia na produção e disseminação do conhecimento – ação que desponta como fundamental ao ponderarmos a relevância da tecnologia em nosso cotidiano dominado por uma infinidade de aplicativos, softwares e equipamentos que passaram a fazer parte do nosso dia a dia nos últimos anos.

Na obra The platform society: Public values in a connective world, os autores definem “sociedade da plataforma como aquela na qual o tráfego social e econômico é cada vez mais canalizado por um ecossistema global de plataformas online (esmagadoramente corporativo) que é conduzido por algoritmos e alimentado por dados” (Pecini, 2019, p. 294). É por isso que tratar de justiça racial sem considerar o impacto e as conexões possíveis impostas pela tecnologia em nosso modo de se relacionar é desconsiderar significativas transformações em curso. Sintonizados com os desafios colocados pelo racismo nessa sociedade da plataforma, o Movimento Negro vem se destacando recentemente em denunciar as arbitrariedades cometidas em função do viés racista dos algoritmos, as desigualdades no acesso com qualidade à internet, o que implica pensar tanto em equipamentos, como conexão, entre outras situações nas quais racismo e tecnologia despontam como sistemas imbricados, capazes de aprofundar práticas discriminatórias.

Considerando este contexto, o presente artigo busca responder, como, após dez anos da lei de cotas, pessoas negras e indígenas têm se apropriado das plataformas já existentes? De que modo isso contribui para a construção de novas epistemologias?

Para isso, partiremos de uma abordagem qualitativa baseada numa pesquisa empírica e digital (Miller, 2020), na qual entrevistamos duas pesquisadoras e ativistas do Movimento Negro que integram os coletivos Cyberxirê e AqualtuneLab. Tais coletivos são iniciativas antirracistas, comprometidas com construção de políticas compensatórias e promotoras de direitos humanos no campo de direitos digitais –, são elas, respectivamente, a Professora Doutora Luzi Borges da Universidade Estadual de Santa Cruz, situada em Ilhéus, na região sul do estado da Bahia e a advogada, pesquisadora e ativista, Natane da Silva Santos, fundadora de diferentes iniciativas de promoção da equidade racial no campo do direito.

A escolha das entrevistadas está relacionada ao meu trabalho em uma organização de direitos humanos, a Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, na qual conduzo o projeto Tecnologia em Ação (TECLA), cujo foco é a promoção da justiça racial na intersecção com a defesa de direitos digitais. Ao realizar mapeamentos e diálogos com possíveis parceiros para o desenvolvimento da iniciativa, tive acesso às
propostas das entrevistadas e pude perceber a relevância de sua atuação. O principal critério foi identificar iniciativas desenvolvidas por ativistas do movimento negro que se ocupassem em abordar a agenda de enfrentamento ao racismo vinculada ao debate sobre direitos nas redes e plataformas, adotando como forma de atuação a formação política e a educação popular.

A partir das narrativas dessas interlocutoras, analisaremos os dados à luz do ferramental proposto pela técnica do storytelling da Teoria Crítica Racial em consonância com o conceito de “falar de si” apresentado por Grada Kilomba (2019). Em diálogo com os escritos de Spivak, Kilomba defende que o subalterno pode falar, mas quando o faz, faz a partir da hostilidade imposta pelo universo da branquitude, suas regras e códigos. Ainda assim, pautando o processo de descolonização do conhecimento, Kilomba apresenta o “falar de si” como uma estratégia de retomada do lugar de sujeito, adotada por mulheres africanas e afro-diaspóricas, no desenho e reivindicação de novos espaços e posições para além do determinado pela herança colonial.

O deslocamento do lugar de objeto para sujeito proporcionado pela fala de indivíduos negros é o que permite o reconhecimento da sua humanidade e, por consequência, das suas contribuições epistemológicas, pois como explica Fricker (2016), ao tratar do conceito de “marginalização hermenêutica”, a dominação racial inviabiliza o compartilhamento de pontos de vistas alternativos, de novos horizontes epistêmicos. Assim sendo, o não reconhecimento das contribuições de determinados grupos sociais na cosmovisão compartilhada de uma sociedade é mais uma dimensão da exclusão e desumanização a que estes sujeitos estão submetidos.

Tratar do debate de ações afirmativas exige, portanto, que o façamos sob a lente de negros e negras implicados na transformação de suas realidades de segregação, caso contrário, nos expomos ao risco de reproduzir as relações de poder socialmente estabelecidas.

O mesmo é afirmado pelos signatários da Teoria Crítica Racial por meio do storytelling. Como ressaltam Richard Delgado e Jean Stefancic (2021), a origem do storytelling está nas autobiografias e contos narrados por escravizados. Ao declarar suas indagações, nomear processos discriminatórios e questionar estereótipos, sujeitos racializados e marginalizados relembram seus interlocutores de sua humanidade. Os storytellers salientam que compreender a perspectiva do outro para membros de um grupo racial dominante não é tarefa fácil e que, sendo assim, oportunizar a fala de indivíduos subalternizados é uma estratégia de aproximação de universos distintos, o ensejo de validação de uma perspectiva racial capaz de abrir “janelas para realidades ignoradas ou alternativas” (Delgado; Stefancic, 2021, p. 67)

Dessa maneira, com o compromisso de não tornar secundária a voz dos sujeitos negros protagonistas no processo de elaboração e implementação de ações afirmativas, apresentamos suas narrativas articuladas com um referencial teórico que julgamos necessário. Para isso, o texto encontra-se dividido em duas partes. Na primeira, pretendemos localizar a atuação do Movimento Negro brasileiro no enfrentamento ao racismo como parte do arcabouço de novas epistemologias comprometidas com a emancipação política e social da população negra, ressaltando e apresentando as Ações Afirmativas de Promoção da Igualdade Racial como parte da estratégia deste ator político na promoção de novos olhares e perspectivas sociais de valorização e empoderamento desta comunidade.

A partir do debate realizado pela Lei de Cotas, aqui compreendidas por meio dos escritos de Joaze Bernadino-Costa e Antonádia Borges (2021), como potencialmente um “projeto decolonial contra-hegemônico na produção do conhecimento”, serão expostos os conceitos de “injustiça epistêmica” e “marginalização hermenêutica” da filósofa Fricker (2016). O objetivo é localizar as contribuições epistêmicas do Movimento Negro entre as teorias que são comumente marginalizadas pelo pressuposto de universalidade da cosmovisão ocidental. Como supõe Patrícia Hill Collins (2017), o domínio de tal epistemologia hegemônica culmina na invisibilização de toda produção de pessoas racializadas.

A partir desta reflexão, as elaborações de bell hooks (2019) e Kilomba serão o suporte para desvendar a supremacia branca nos espaços acadêmicos e ao mesmo, como contraponto, legitimar as contribuições intelectuais de ativistas negros e negras ainda que em espaços marginalizados. Por fim, a produção de Nilma Lino Gomes (2017), em diálogo com o conceito de “margem” de hooks nos auxiliarão a compreender quem é parte constitutiva do Movimento Negro e como as ações afirmativas despontam entre suas estratégias de superação das desigualdades.

A hipótese apresentada é a de que o Movimento Negro brasileiro pode ser compreendido como um lugar da “margem” enquanto um espaço de abertura radical (hooks, 2019). hooks explica que a margem desponta como um espaço de resistências, informando mecanismos de solidariedade estabelecidos a partir de processos segregatórios a que estão submetidas as pessoas negras empobrecidas. Ao recusar sua desumanização, tais indivíduos constroem novos esquemas explicativos e ampliados da realidade, teorias alternativas que pautam novas epistemes sobre as relações sociais.

Em outras palavras, o processo de marginalização e exclusão resulta numa capacidade analítica singular da totalidade do sistema, que
somente é possível por conta deste ponto de partida segregatório. É desta condição que a população negra extrai sua inventividade e capacidade de resistir ao extermínio político, social, e subjetivo imposto pela ideologia do racismo. É na margem que se gesta uma contralinguagem que, em suas palavras, “descoloniza nosso pensamento, nosso próprio ser” (hooks, 2019, p. 290) – transformamos a linguagem do coloniza- dor, falamos através da voz da resistência deste lugar da margem.

Dessa maneira, defendo que foi a partir da atuação do Movimento Negro que emergiram novas epistemologias que, entre outras, resultaram na ressignificação do conceito de raça, atrelando-o ao debate de desigualdades sociais – como já apresentado por meio dos escritos de Gomes –, e na concepção das Ações Afirmativas de Promoção da Igualdade Racial como uma das estratégias de enfrentamento ao racismo epistêmico.

Na segunda parte, apresentaremos os coletivos Cyberxirê e AqualtuneLab, enquanto força motriz mobilizadora do Movimento Negro, articulando sua ação coletiva com o aporte teórico já apresentado. O pressuposto assumido nessa parte é a de que tais iniciativas devam ser compreendidas como ações afirmativas, demonstrando que as cotas, ou a Lei de Cotas, não compreendem o todo de sua definição. Ampliar a compreensão desse conceito é o que potencializa a atuação do Movimento Negro no enfrentamento ao racismo, afinal, mais do que desencadear um processo de aumento de vagas e da presença negra em espaços dominados pela branquitude, as ações afirmativas se propõem a provocar uma ampla mudança social, que incida nas possibilidades de estudo e trabalho da população negra, mas, sobretudo, altere a imagem que a sociedade brasileira tem de si, deslocando negros e negras do lugar comumente atribuído a tais sujeitos.

Reconhecer as proposição formativas implementadas pelo Movimento Negro em uma tema pouco explorado politicamente pela opinião pública, como ainda é a tecnologia, substancia o papel do Movimento Negro como educador, assim como delínea Gomes. Evidenciando o papel das iniciativas a serem apresentadas no marco das ações afirmativas no campo dos direitos digitais.

1.1.O Movimento Negro e o combate à marginalização hermenêutica: produzindo novos saberes a partir da luta política

Quando o conceito de epistemologia conquista centralidade em uma análise, o estranhamento à palavra resulta em um esforço quase que imediato de buscar paralelos que a expliquem. Uma das definições mais amplamente disseminadas é a ideia de teoria do conhecimento; assim, é possível supor que ao falar de epistemologias, a reflexão proposta é de que o termo se refere a um saber específico, seus pressupostos, métodos, hipóteses e objetos em análise.

Em seu artigo sobre justiça epistêmica e preservação da ignorância, a filósofa Fricker (2016) faz um convite inicial para uma reflexão sobre o valor epistêmico da ignorância. De acordo com a autora, uma boa prática epistêmica exige necessariamente um recorte espaço-temporal ou temático. Fricker salienta que neste sentido a ignorância não é em si algo negativo, ao contrário, a “ignorância massiva” emerge neste ponto como uma condição para existência de seres finitos que somos.

A autora chama a atenção para as motivações da ignorância que podem tanto estarem atreladas a um desconhecimento inocente, como explicitado acima, ou serem consequência do acesso a fatos e evidências equivocados, incompreensíveis e até mesmo falaciosos. Ao pautar a segunda motivação para ignorância, aquela que é resultado de uma ação deliberada em tornar nebulosa a compreensão de um cenário específico – o que pode se dar pela negação da possibilidade de aproximação à diferentes pontos de vista e à novos esquemas explicativos e seus fundamentos -, Fricker apresenta os conceitos de “injustiça testemunhal” e “marginalização hermenêutica”. Para ela, a “injustiça testemunhal” ocorre quando num diálogo, a fala de um dos interlocutores é invalidada por conta de um processo discriminatório. Sem credibilidade, o falante não consegue trocar com o ouvinte, não há um processo de melhoria epistêmica. Conforme afirma, é nesse momento que acontece a “marginalização hermenêutica”, ou seja, a exclusão de um grupo social e sua epistemologia.

Tal prática impacta diretamente no que a autora nomeia como “recursos hermenêuticos coletivos”, há um atravessamento direto nas experiências sociais comuns e partilhadas, em suma, na cosmovisão daquela sociedade. Como exemplo, a autora traz as experiências da comunidade de pessoas trans, cuja episteme vem se tornando, muito recentemente, uma perspectiva compartilhada por outros sujeitos sociais, imersos na perspectiva cisnormativa. Sem a troca, sem a superação da ignorância determinada pela transfobia, valores, olhares e perspectivas da população trans estavam cerradas ao conjunto amplo da população.

O mesmo acontece com a comunidade negra, como explicita a autora ao citar Charles Mills. Este relata que a racionalidade de povos não brancos é submetida a um sistema de descrédito que resulta na supressão das contribuições do grupo ao amplo conjunto social. Sem conceitos, variáveis e apontamentos elaborados por tais indivíduos qualquer esquema explicativo produzido por esta sociedade parte da depreciação de negros e negras, o que impede que suas formulações possam gerar novos horizontes epistêmicos.

Deste panorama, é possível depreender que “injustiça testemunhal” e “marginalização hermenêutica” são processos intrínsecos e constitutivos dos padrões que dão origem a “hermenêutica sistemática”, àquela que define os acordos e modos sociais partilhados de se relacionar. Por ter como ponto de partida a exclusão de identidades e grupos sociais, tais parâmetros despontam como uma reprodução da distribuição desigual de poder e estima social.

Em consonância com Fricker, Collins (2017) também compreende a “marginalização hermenêutica” como um retrato das relações de poder existentes em uma sociedade. Collins assinala a importância de se compreender qualquer teoria do conhecimento a partir de seus contornos políticos e éticos. Afinal, a subtração de determinados argumentos são evidências da estratificação e exclusão social e política estabelecida em uma determinada sociedade. Ela se contrapõe à ideia da existência de um suposto verniz acadêmico atribuído a epistemologia ocidental que a torna sinônimo de verdade universal e de conhecimento científico, colocando-a em lugar de destaque em relação a outros saberes. Em suas palavras, epistemologias hegemônicas são produções humanas, e, portanto, refletem suas práticas sociais e seus interesses políticos. Collins vai além e afirma que é a partir da “opressão epistêmica”, aliada a sistemas ideológicos como o racismo e o sexismo, que se estrutura a legitimação dos arranjos e estratégias que estabelecem as “injustiças sociais”.

Dessa forma, podemos compreender que o diálogo entre os argumentos de Fricker e Collins denuncia a pretensa universalidade das epistemologias dominantes ao reclamar objetividade científica em detrimento do compromisso de enfrentamento das desigualdades. Frente a isso, entendemos quais são as motivações e como opera o racismo epistêmico no sentido de silenciar o testemunho e a visão crítica de intelectuais negros que sofrem de uma “marginalização hermenêutica” histórica – exclusão essa que, por sua vez, é parte dos alicerces que sustentam as opressões sociais.

Nesse aspecto, vale retomar os argumentos de Kilomba (2019) e hooks (2019), ao tratar da supremacia branca nas produções acadêmicas.

Segundo Kilomba, há um processo de hierarquização violento das diferentes produções de conhecimento a partir da distinção discriminatória de seus autores. Tal qual afirma Fricker, as produções negras são sistematicamente vitimadas pela “injustiça testemunhal”. Partindo desta mesma visão, Kilomba destaca que tais produções são caracterizadas como subjetivas, parciais, pessoais, em contraponto a objetividade, neutralidade e racionalidade que comumente a epistemologia ocidental e branca se atribui. Já hooks aponta como as pessoas negras e suas elaborações epistêmicas são transformadas em objeto de estudo, fazendo com que tal grupo social seja despojado de seu lugar de sujeito produtor de conhecimento. Ela afirma ter sido transformada no “Outro”, naquele que é silenciado e sobre o qual os dominantes decidem falar sobre; escuta-se a história de dor e sofrimento para reescrevê-la, recontá-la para os mesmos marginalizados.

hooks explica que este caminho consiste num processo de não somente reescrever a história narrada pelos marginalizados, mas de recontar o que se é como parte desse processo, mantendo, dessa forma, o lugar de autoria e autoridade sobre os corpos e experiências negras. Vale lembrar que o diálogo estabelecido pela autora neste ponto é com pesquisadores que se dedicam a estudar a diferença, que se autodenominam pensadores críticos radicais, sobre os quais ela destaca o grupo de feministas.

Como contraponto à “marginalização hermenêutica” empreendida pela branquitude, há o lugar da “margem” como espaço de abertura radical defendido por hooks. Para além de uma estratégia de resistência, é na margem – compreendido como espaço de solidariedade de pessoas negras em ambientes culturalmente privilegiados, como a universidade -, que intelectuais negros reivindicam sua humanidade, constroem novas possibilidades teóricas e potencializam suas elaborações alternativas à ordem vigente.

Para hooks, a experiência de pessoas negras – comprometidas com o enfrentamento ao racismo – que vivenciam sua existência ressignificando processos de exclusão é vital para sobrevivência desse grupo ao longo dos séculos, imperativo para o embate à “marginalização hermenêutica” e a “injustiça epistêmica”. Ao mesmo tempo, ela é fundamental para disseminação e consolidação de uma nova epistemologia antirracista, capaz de estabelecer novos esquemas explicativos das opressões e impor a escuta ativa de uma voz radical, gestada na reconstituição de uma nova visão de um passado, que respeite o legado de dor desses sujeitos e, nas palavras da autora, auxilie a iluminar e transformar o presente.

Ao pensar o contexto brasileiro, Gomes (2017), referência histórica de intelectualnegra do campo da educação, defende que o Movimento Negro é “sujeito de conhecimento”. Para ela, ao ressignificar a questão étnicorracial no país, estes diferentes indivíduos que são parte deste importante grupo político nacional, invariavelmente, produzem novas epistemologias em sua ação cotidiana. Podemos perceber que, assim como afirma hooks sobre a “margem” ser um lugar de reinvenção e de elaborações políticas para intelectuais e ativistas negros e negras, Gomes ressalta as dimensões das práticas e ações do movimento negro a partir de diferentes nuances.

Neste aspecto, trazendo o debate para a dimensão local, a partir do contexto brasileiro, apresento a compreensão de Gomes (2017) sobre o significado de Movimento Negro, afinal, ao reconhecermos suas estratégias podemos compreender este lugar definido pela autora de “produtor de saberes”. Ela afirma que o Movimento Negro é composto por diferentes grupos políticos e acadêmicos, mas também culturais e artísticos, que assumem a superação do racismo e a valorização da população negra, sua história e cultura na centralidade de sua atuação política. A eliminação das barreiras sociais impostas pela discriminação racial a tais sujeitos nas mais diferentes dimensões da vida é o objetivo que mobiliza o grupo.

Gomes salienta que as conexões com a ancestralidade e culturas africanas são parte dos pressupostos do movimento, mas não como fenômeno cristalizado em um tempo específico de civilizações originárias e reinos pré-escravização. Mais do que valorizar o passado, reconhecer a complexidade da diáspora africana implica defender que os vínculos culturais e históricos devem ser tecidos tendo como horizonte a construção da emancipação política, econômica e social de negros e negras subalternizados em diferentes territórios e cenários políticos na contemporaneidade. A este respeito, faz-se necessário observar que a autora evidencia que o enfrentamento ao racismo caminha lado a lado de uma postura antissexista, anticapitalista, não patriarcal e tão pouco LGBTfóbica.

Entre as contribuições à sociedade, Gomes destaca a postura afirmativa do Movimento Negro, que ressignificou o conceito de raça, disseminando que o seu significado nada mais é do que uma construção social, estruturante no processo de estratificação que determina as desigualdades sociais. Ao pautar o racismo como questão nacional, o Movimento Negro propôs uma revisão na historiografia oficial e alçou a questão da diversidade étnicorracial ao patamar de vantagem, não de interdição, no processo de construção de uma sociedade justa e democrática. Dessa maneira, o movimento promove avanços significativos na luta por emancipação da sociedade como um todo, especialmente da população negra. Todavia, vale destacar que para ela a superação do racismo exige que suas estratégias e ações de enfrentamento se ajustem continuamente às novas formas de opressão e dominação que despontam em diferentes escalas – nacional, local e até mesmo transnacional. A autora nos explica que é a capacidade adaptativa da ideologia racista e seus mecanismos de perpetuação que acabam por desencadear a construção perene de novas formas de organização política, conhecimentos e pedagogias.

Sobre o campo escolhido para análise da atuação do Movimento Negro que viabiliza observar mais nitidamente esse lugar de produção de conhecimento, Gomes declara sua opção pela luta empreendida historicamente pela promoção e defesa do direito humano à educação. Para ela, o campo educacional foi eleito pelo Movimento Negro como um “espaço-tempo passível de intervenção e de emancipação social, mesmo em meio às ondas de regulação conservadora e da violência capitalista” (Gomes, 2017, p. 25).

Ao observarmos as possibilidades de transformação ofertadas pela educação, ela elenca: o dinamismo característico do campo, que sofre influências constantes dos mais diferentes sujeitos; a possibilidade de construção de narrativas dissonantes por meio dos processos formativos; o diálogo estabelecido com diferentes grupos sociais em diferentes fases da vida; a oportunidade de incidir tanto na institucionalidade do espaço escolar, seja acadêmico ou voltado à educação básica, como na esfera da educação popular, em ambientes não formais, gestada na luta política.

Tal processo de “articulação de saberes emancipatórios” fica evidente ao retomar algumas experiências do Movimento Negro. Entre elas, Gomes apresenta a “Frente Negra Brasileira”, criada em São Paulo em 1931. Esta associação política, recreativa e beneficente, conquistou ampla adesão pela comunidade negra justamente pela diversidade de suas ações, que objetivando a integração social e cultural desses indivíduos promovia atividades políticas, ofertava cursos de alfabetização, realizava festivais culturais, além de elaborar diagnósticos sobre a realidade da população negra no período. Outro caso emblemático, mencionado pela autora é o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado em 1944, o qual realizava cursos de alfabetização à trabalhadores dos mais diferentes espectros, e, com isso, promovendo uma reflexão crítica das questões raciais no Brasil. Além disso, o cerne de sua atuação se deu no campo cultural, na construção de uma imagem positiva da negritude, de valorização histórica da diáspora negra e sua conexão com o conti- nente Africano, tudo por meio da dramaturgia.

Gomes segue nesta retomada histórica com a criação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, que a exemplo das organizações anteriores também elegeu a educação como foco de sua atuação, ao lado da pauta do direito ao trabalho. A autora explica que foi a partir da atuação do MNU que uma geração de intelectuais negros produziu pesquisa sobre questões raciais no Brasil, confrontando consensos históricos, como o ideário da democracia racial.

No final da década de 1980, com a abertura democrática do país, o Movimento Negro, sempre alinhado à defesa da universalização dos direitos, identificou que nem sempre assegurar a universalidade resultava em garantir o acesso à direitos entre brancos, negros e demais pes-
soas racializadas igualitariamente. O racismo impõe uma barreira singular a determinados grupos sociais, ainda que o horizonte seja a expansão ampla e irrestrita a direitos. Foi nesse contexto que emergiu, por meio da produção de conhecimento do Movimento Negro, o debate em torno das Ações Afirmativas, temática comum no círculo do ativismo negro, e que se torna uma agenda da sociedade brasileira por meio dos esforços deste movimento social.

A partir de então, outros marcos políticos deflagrados por esse processo de mobilização relatado acima revelam a profundidade dos avanços conquistados pelo Movimento Negro, entre eles, a III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerência, promovida pelas Organizações da Nações Unidas em Durban, na África do Sul, em 2001. Tal evento foi fundamental na história do Movimento Negro nacional por circunscrever o reconhecimento do Estado Brasileiro da existência institucional do racismo. A criação, em 2000, da Associação de Pesquisadores Negros (ABPN) e a realização do Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros (Copene), reforçam o esforço deste ator político na fundação de novos pressupostos epistêmicos para a sociedade desde a universidade. O que se segue quando é sancionada a Lei 10.639 em 2003 que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, alterada pela Lei 11.645/08, com a inclusão da temática indígena.

Este sobrevoo pela atuação do Movimento Negro deixa nítido o compromisso deste ator político com o reconhecimento e posterior difusão das epistemes produzidas pela população negra em distintos campos do conhecimento, com o objetivo de recriar o projeto político proposto pelo Estado brasileiro, combatendo a marginalização hemernêutica e reclamando o lugar da existência dessas subjetividades que precisam ser ouvidas e consideradas caso o objetivo seja suplantar as desigualdades. É por conta deste valor fundamental para o grupo que as ações afirmativas figuram entre as principais estratégias de enfrentamento ao racismo epistêmico.

Quando pensamos em Ações Afirmativas comumente lembramos da Lei de Cotas, que é a lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, a qual estabeleceu os protocolos para implementação das cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Contudo, esta é apenas uma das modalidades das políticas compensatórias de fomento a equidade racial, que como parte dos instrumentos legais de discriminação positiva existentes, simbolizam, de modo mais vigoroso, uma ruptura com a supremacia branca e suas epistemologias – o que explica o fato de ser tão duramente atacada na arena pública por representantes dessa ideologia hegemônica.

Resultado de um amplo embate, a Lei de Cotas foi uma estratégia do Movimento Negro que, em sua formulação inicial, pretendia ir além da ampliação da presença de grupos racializados na universidade, como demonstram Bernadino-Costa e Borges (2021) ao resgatarem a experiência das Ações Afirmativas na pós-graduação da Universidade de Brasília (UnB). Para eles, essa lei possui um “potencial de um projeto decolonial contra-hegemônico na produção do conhecimento” (2021, p. 9).

Segundo os autores, o racismo epistêmico nos espaços acadêmicos é manifesto sob a forma de uma versão atualizada da perspectiva evolucionista da história característica do determinismo biológico, ou seja, estudantes racializados são responsabilizados por não dominarem a lógica branca dos códigos hegemônicos acadêmicos. Ao adotar uma visão eurocêntrica, heterocisnormativa e universal, estas instituições educacionais não reconhecem sua cosmovisão ocidental como um impeditivo para expansão de novos olhares, outras formas de se relacionar e produzir conhecimento. Neste contexto, estudantes negros, indígenas e quilombolas são considerados despreparados e, muitas vezes, incapazes em relação aos brancos. A suposta superação dessa condição exige que tais universitários sucumbam a um modelo branco de existência, de visão de mundo, e requer que esses sujeitos assumam os pressupostos e métodos da branquitude de elaboração de pesquisa.

É a partir desta colisão racial epistemológica que ocorre a transformação política institucional das universidades. Bernadino-Costa e Borges afirmam que na luta pelo reconhecimento de suas experiências e pontos de vista como parte do fazer acadêmico e das construções teóricas, estudantes racializados pressionam e questionam as estruturas da academia e suas relações de poder, até então, compreendidas como naturais.

Ao revelar que determinados padrões de excelência são na verdade frutos de processos de exclusão, os cotistas negros, indígenas e quilombolas colocam, frente à universidade, suas vozes radicais que, paulatinamente, vem provocando mudanças importantes nas universidades. Podemos perceber isso com a oferta de novas disciplinas voltadas ao pensamento africano e afrodiásporico e da circulação de uma nova bibliografia e métodos de investigação que priorizem saberes, experiências e corpos dissonantes.

Dessa maneira, ao falarmos de Ações Afirmativas de Promoção da Igualdade Racial podemos adotar como referência a experiência vivida nas universidades. Afinal, como apontado por Gomes (2017), as Ações Afirmativas denunciam a existência da “colonialidade do saber” por meio da crítica aos privilégios raciais, políticos, sociais e econômicos concedidos às populações brancas pelo racismo institucional e epistêmico.

Nesse sentido, podemos traçar paralelos com outras medidas e práticas afirmativas empreendidas pelo Movimento Negro em diferentes áreas e setores sociais, extrapolando o lugar da Lei da Cotas e reconhecendo a posi- ção das Ações Afirmativas imersa no espectro de “estratégia promocional que tem por objetivo promover, fomentar e avançar a igualdade” (Piovesan, 2008, p. 890).

Ao defender a importância das Ações Afirmativas, a jurista Flavia Piovesan (2008) sugere uma reflexão que passe pela compreensão dos diferentes sentidos de igualdade. A autora inicia a reflexão mencionando duas possíveis compreensões para o conceito de igualdade. Um primeiro em que nos deparamos com a concepção de “igualdade formal” baseada na máxima universalizante e discriminatória de que “todos são iguais perante a lei”, e, um segundo, o qual ela nomeia como “igualdade material”, isto é, aquela manifesta a partir da sua relação com o ideal de justiça social e de reconhecimento de identidades.

Dessa maneira, para combater atos discriminatórios que restrinjam o exercício pleno da vida e assegurem a igualdade que não invisibiliza as diferenças, Piovesan (2008) ressalta que, para além do caminho punitivista, há um trajeto vinculado à formação, sensibilização e disseminação de saberes que buscam suplantar estereótipos responsáveis pela segregação do ponto de vista de diferentes comunidades marginalizadas. É nesse contexto que se encontra a compreensão de Ações Afirmativas defendida nesse artigo. Instituídas com vistas a abreviar a travessia rumo a uma efetiva inclusão social e de enfrentamento das desigualdades de sujeitos excluídos socialmente, compreendemos que as políticas compensatórias vão além de políticas públicas, sendo, muitas vezes, delineadas por ativistas em projetos territorializados.

De acordo com Piovesan, são inúmeros os marcos jurídicos que dão conta de propor a implementação de políticas compensatórias nas mais diferentes dimensões sociais. Entre elas é possível elencar a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e contra a Mulher1, a própria Constituição Federal de 1988, o Programa Nacional de Direitos Humanos2, o documento oficial brasileiro apresentado à Conferência das Nações Unidas contra o Racismo, em Durban, em 2001, a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial3 (PNPIR), mais recentemente, a articulação entre organizações e intelectuais negros em torno da regulamentação da Inteligência Artificial no Brasil – tais grupos vem denunciando o potencial discriminatório e os riscos éticos da proposição atual, entre outros.

Como esclarece Gomes, o Movimento Negro se destaca não só pela concepção e defesa de políticas públicas, muitas vezes, dada a morosidade na conquista de avanços institucionais e culturais que respeitem a existência da população negra, mas alcança relevância também por construir, conjuntamente, projetos políticos pedagógicos e novas epistemologias a partir da mobilização de seus próprios recursos, análises e reflexões na sociedade.

Pensando nesses desdobramentos e tendo como proposta compreender a construção de uma nova cosmovisão, busco refletir, na seção seguinte, as conexões possíveis entre a luta antirracista, direitos digitais e conhecimento livre, apresentando duas experiências lidera-
das por ativistas e coletivos do Movimento Negro em tal universo. O objetivo é demonstrar não só a capacidade de inovação deste movimento social, como sua habilidade de acompanhar as transformações sociais e produzir respostas em sintonia com os desafios atuais de um mundo mediado pelas tecnologias de informação e comunicação.

1.2.Promoção da igualdade racial na tecnologia: a experiência das iniciativas Cyberxirê e AqualtuneLab

Uma das hipóteses do presente artigo é de que as iniciativas Cyberxirê e AqualtuneLab, que atuam no campo de defesa e promoção de direitos digitais e justiça racial, podem ser consideradas ações afirmativas implementadas pelo Movimento Negro. A escolha de apresentar tais projetos emerge como tentativa de responder a questão que nos colocamos na introdução desse artigo: após dez anos da lei de cotas, pessoas negras e indígenas têm se apropriado das plataformas já existentes? De que modo isso contribui para a construção de novas epistemologias?

Encarando o Movimento Negro como produtor de novos saberes, sobretudo, no campo da educação, a proposta desta seção é demonstrar como novos saberes são valorizados, reconhecidos e disseminados pelo Movimento Negro também no universo digital e como a experiência formativa que desencadeia em ações ativistas desloca os sujeitos negros do lugar de subalternização, mas também proporciona para o conjunto da sociedade novas formas de compreender um mundo em constante transformação.

Localizar tais experiências como parte do debate de Ações Afirmativas de Promoção da Igualdade Racial é um convite à ampliação do olhar sobre quais medidas e práticas, de fato, são políticas compensatórias. Pretendemos com a jornada percorrida até este momento expor que processos formativos e de sensibilização, por vezes, são o primeiro passo para a concepção de políticas públicas e de novas epistemologias a serem sistematizadas. Compreendê-los como pertecentes ao universo das Ações Afirmativas é fundamental para valorizar e reconhecer as ações do Movimento Negro na superação do racismo estrutural, afastando o imaginário de que apenas o Estado, por meio do governo e seus instrumentos legais, são responsáveis pela implementação de tais políticas compensatórias.

Neste ponto, como vimos, Gomes se aproxima de Fricker e o conceito de “injustiça epistêmica” já abordado neste artigo. Em outras palavras, se o foco da análise até aqui construída está diretamente relacionada a refletir sobre a marginalização epistêmica sofrida pelo Movimento Negro que impede a sociedade de compreender o alcance de Ações Afirmativas de Promoção da Igualdade Racial, bem como o protagonismo da comunidade negra em sua concepção e implementação, é preciso avançar no sentido de fazer emergir as contribuições desta população.

Ao assumir o papel educador na sociedade brasileira, o Movimento Negro denuncia e propõe uma reinterpretação crítica da realidade racial, mirando a construção de um novo imaginário e a fundação de uma ordem social libertadora, cujas opressões como produtoras de desigualdades sejam superadas.

Fundado em 2019, o Grupo de Pesquisa “Cyberxirê: redes educativas, juventudes e diversidade na cibercultura” é uma iniciativa criada pela Professora Doutora Luzineide Miranda Borges na Universidade Estadual de Santa Cruz, situada em Ilhéus, na região sul do estado da Bahia. A iniciativa nasce de um questionamento de Borges (2022) sobre as perspectivas de uso do ciberespaço em territórios considerados tradicionais, como são as comunidades organizadas em torno de terreiros de candomblé.

Com uma experiência de uma década de trabalho na Educação de Jovens e Adultos a partir da perspectiva freiriana, Borges teve a oportunidade de mergulhar na discussão sobre cibercultura no Mestrado, por volta de 2008, ao trabalhar com Educação de Tecnologias Educacionais por meio da formação de jovens monitores e com gestores de inúmeros Centros Digitais de Cidadania do programa Cidadania Digital – iniciativa liderada pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (Secti), em uma parceria com a Universidade do Estado da Bahia.

Nesse processo, a autora discutiu gestão colaborativa e inclusão digital a partir das contribuições de Paulo Freire, que tem como pressupostos a valorização das experiências de vida dos alunos. Além das oficinas, Borges assumiu um mapeamento dos Centros Públicos de Acesso à Internet, quando identificou a presença desses espaços em comunidades ribeirinhas, indígenas, em terreiros de candomblé e em vários outros territórios baianos.

Ela chama atenção para o fato de que em tempos da chamada “Internet das Coisas”, em que os objetos do nosso cotidiano também estão conectados à internet, assim como boa parte da sociedade, desvendar como a juventude de terreiro vem se apropriando do ciberespaço por meio do ativismo passou a ser um de seus interesses, ao lado da defesa dos direitos digitais e da tecnologia como lugar de emancipação. Podemos conhecer mais sobre tais reflexões através de suas pesquisas de mestrado e doutorado, cujos temas são, respectivamente, “Políticas Públicas de Emancipação Digital: Possibilidades e Avanços à Inclusão Sociodigital no Estado da Bahia” e “#Soudoaxé: redes educativas e o ciberativismo da juventude de terreiro da nação Ijexá”. Além do Cyberxirê, Borges integra atualmente uma iniciativa ativista chamada Amata Cultural, que consiste num coletivo de juventude negra para promoção e divulgação da cultura afroindígena no sul da Bahia, vinculado ao terreiro de candomblé Ilê Axé Odé Omopondá Aladê Ijexá. Para ela, tanto o Grupo de Pesquisa Cyberxirê quanto o Amata Cultura, são iniciativas que estão imbricadas, seja pelo intercâmbio entre os participantes e suas ações, seja porque muitas das atividades acabam por se retroalimentar no decorrer de sua realização.

Segundo a autora, a palavra Cyberxirê vem da mixagem da palavra cibercultura e xirê, palavra de origem yourubá que significa um rito realizado por meio de uma dança circular anti-horário promovido em terreiros, durante festas de iniciação ou de reverência aos orixás, divindades cultuadas no candomblé. Para ela, a dança circular ancestral possui movimentos que questionam os valores civilizatórios colonizadores e na síntese do termo Cyberxirê, ao se conectar com a conexão global existente no ciberespaço e seus inúmeros elos, desponta como a tradução da ideia de horizontalidade de trocas de todos para todos. Podemos compreender a palavra Cyberxirê a partir do sentido de ocupação do universo virtual, dessa rede mundial, conectada também aos saberes ancestrais de negros e negras que fundaram parte das comunidades de terreiro e que, por séculos, mantém viva esta manifestação religiosa, agora também imersos na cibercultura.

Luzineide Miranda Borges (2019) explica o significado de “epistemologia de pertencimento” e apresenta uma das reflexões de suas entrevistadas:

Pertencer ao candomblé é ocupar o lugar que meus ancestrais deixaram, se eu não fizer isso, outros farão e ainda, nenhuma luta, o sangue derramado valeu a pena. Eles morreram para que hoje nós estivéssemos aqui (Borges, 2019, p. 211).

A partir da fala de Pè Lokè, na citação acima, é possível depreender o sentido de pertencimento atribuído por Borges ao tratar da ocupação do ciberespaço pela juventude de terreiro. De acordo com a autora, é fundamental para a juventude negra fortalecer os processos de valorização da sua identidade racial, para além da denúncia do racismo. Afirmar ser parte dessa coletividade e romper com estereótipos sobre sua fé é um “processo de re-enraizamento como ação política contra a colonialidade” (Borges, 2019, p. 213).

São inúmeras as iniciativas que ela nomeia como “positivação do povo negro nas redes sociais digitais”, tais como: #souafroreligioso, #respeitojá e #soudoaxé. Todas essas iniciativas, promovidas por meio de narrativas digitais, são modos de reivindicar a existência desse grupo social e a construção dos seus saberes para fora dos muros das casas de candomblé. Borges (2022) ressalta que, para esses indivíduos, o uso das tecnologias e das plataformas de comunicação faz parte da vida cotidiana, e, portanto, usá-las para se manifestar é algo comum; a novidade reside em não se intimidar em se posicionar contra a violência religiosa de cunho racista.

Ela evidencia, no entanto, que o acesso à internet é ainda díspar, embora seja um hábito dos jovens com os quais ela se relaciona. Ela recorda de um episódio em que, em meio ao contexto pandêmico, era preciso premiar um aluno que morava na zona rural. Na ocasião, o aluno não conseguia receber o recurso financeiro via pix4, tão pouco era possível reverter o prêmio, no valor de cinquenta reais, em crédito para celular, de modo a assegurar o acesso à internet, pois nenhuma operadora funcionava em seu bairro. Ao tomar conhecimento sobre como ele conseguia, mesmo que precariamente, navegar pelas redes sociais, ele afirmou que usava uma rede rural, discada. Dessa maneira, Borges e outros docentes, ampliaram o valor do prêmio para que esse jovem pudesse comprar planos de acesso que eram mais caros do que a premiação assegurava. Neste ponto, Borges fala sobre a criatividade necessária para os ativistas do Movimento Negro:

Não tem como a gente propor projetos sociodigitais, sem conhecer a nossa realidade e sem olhar para essa realidade. Porém, não numa perspectiva da negativa: ah, não vou fazer nada, porque não é possível fazer nada, não é? Então, a gente precisa usar a nossa criatividade, a partir do que a gente tem, da realidade que a gente tem. Para mim, o grande desafio, está nessa potência criativa, que é a nossa diversidade, que é a nossa diferença. E aí eu penso que o digital em rede, ele tem um papel que com o que Mãe Estela traz, nos seus provérbios, e que eu coloquei como título do meu último capítulo de tese, e de livro, que é: “se a gente não escrever, o vento leva”. Assim, o Podcast, o YouTube, o Instagram, o Facebook, os nossos livros, os nossos artigos, é essa perspectiva dessa memória do presente mesmo, é um legado que a gente precisa deixar para os nossos. (Entrevista com Luzineide Borges, julho/2022, São Paulo).

Como mencionado acima, a experiência de Borges, ao articular suas produções e experiência com a produção de pesquisa em um grupo acadêmico reforça as perspectivas já apresentadas por Gomes (2017) do modo de operar do Movimento Negro diante de novas questões que mobilizam a sociedade e incidem na reconfiguração do racismo. Borges traz para academia sujeitos que não são parte como interlocutores, produzindo pesquisa sobre suas realidades, seja como alunos ou como parte integrante de tais construções. Ela considera nessas trocas as especificidades das diferentes interdições impostas pela discriminação racial e a partir dos diferentes contextos identificados, produz respostas que dêem conta das distintas realidades, sistematizando tais achados desde o lugar da epistemologia do pertencimento e propondo novos olhares a partir de inúmeras perspectivas que conectam a singularidade de ser um jovem de terreiro e ser atravessado pela sociedade da plataforma. Ainda sobre a importância dessa potência criativa, ela afirma:

A oralidade, ela vai continuar; não tem como a gente abrir mão da oralidade, ela pertence a nós humanos, não é? A oralidade, a primeira comunicação vem lá do homem primitivo, e vai seguir com a gente; eternamente, enquanto aqui nós estivermos, enquanto humanidade, enquanto homens e mulheres. Mas a criatividade, ela é do presente. Então, o que é que eu posso fazer agora no presente, para deixar para as futuras gerações? Eu penso que o uso do digital em rede, principalmente nessa perspectiva da memória, de construção de um acervo de memória, para além de vender os dados da gente, é um presente que a gente deixa para o presente. Porque, para os povos ancestrais, o futuro é presente, não é? Não existe futuro sem presente (Entrevista com Luzineide Borges, julho/2022, São Paulo).

No final da sua entrevista, refletindo sobre o significado de tecnologia, Borges afirma que em sua concepção “tecnologia é cura” e que ela está relacionada a nossa capacidade inventiva e criativa de gerar respostas para o mundo. Ela explica que durante a pandemia, por meio das rodas de conversa virtuais que a “Amata Cultural” promovia, em parceria com o Grupo de Pesquisa Cyberxirê, na distribuição de alimentos que realizavam em uma praça no Banco da Vitória (bairro onde está localizado o terreiro), nas formações de jovens e professores e até mesmo, na elaboração de estudos e investigações, “o que promovemos é a cura”. Para ela, a cura é realizada porque narramos novas histórias, fortalecemos nossos laços e o sentido de pertencimento de grupo, e, entre outras possibilidades, a elaboração que as novas narrativas digitais nos dão como possibilidade. Borges destaca que é preciso devolver à tecnologia o reconhecimento da autoria e as contribuições a quem também lhe é de direito, ou seja, é preciso devolver “à nós, que somos parte da população negra”.

Em consonância com o Cyberixê, o AqualtuneLab é outro coletivo que busca, a partir do Direito, fortalecer a luta por mais justiça social. Para conhecer mais sobre este coletivo, entrevistei uma de suas fundadoras, a advogada, pesquisadora e ativista Natane da Silva Santos, co-fundadora do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Luiza Mahin e do Curso de Extensão Jurista Luiz Gama.

O AqualtuneLab é um coletivo negro jurídico que desenvolve investigações e estudos pautados em reflexões que emergem da intersecção entre Direito, Tecnologia e Raça. Atualmente, sua composição conta com representações em diferentes regiões do país, o que desponta como fundamental nos processos de produções de elaborações que contemplem a diversidade existente nos mais diferentes territórios. O principal objetivo do grupo é racializar discussões em temas como uso de tecnologias no sistema jurídico, tratando das vigilâncias pública e privada, políticas de proteção de dados, identificação biométrica, segurança na internet, aplicativos móveis e mídias sociais.

Tarcízio Silva (2019) nos alerta que os algoritmos e a inteligência artificial, que a cada dia integram o nosso cotidiano – como podemos identificar por meio das sugestões de conteúdos em perfis das redes sociais, o recurso de biometria para habilitar o uso de celulares smartphones, e até mesmo o reconhecimento facial para acessar determinados espaços – podem apresentar inúmeras questões vincula- das a “vieses de raça, gênero, classe, localidade e neuroatipicidade” (Silva, 2019, p. 431). Para o autor, essas tecnologias não possuem neutralidade, uma vez que existe um processo de racialização e opressão algorítmica que proporcionam experiências discriminatórias de uso de tecnologias para populações racializadas.

Santos (2022), fundadora do AqualtuneLab, destaca que o chamado capitalismo de vigilância5 – não é tratado comumente com a seriedade devida, uma vez que as pessoas ou desconhecem estarem imersas nessa nova ordem econômica, ou lidam como se fosse uma fatalidade, uma condição de serem monitoradas constantemente. Compreender o impacto da vigilância foi um imperativo para ela, pois foi a partir da sua experiência enquanto defensora de direitos humanos e moradora do Complexo da Maré, – conjunto de favelas na região norte do Rio de Janeiro –, que se viu vítima de ações persecutórias oriundas dessas práticas de mercantilização dos dados, em função de seu ativismo.

Nesse aspecto, ela assinala a importância de estarmos atentos e atentas ao potencial discriminatório ao tratarmos de sistemas de inteligência artificial. Na entrevista, ela relatou o caso de uma idosa negra, beneficiária da Previdência Social – cujo custo mensal com remédios é de setecentos reais – que teve seu acesso ao benefício interrompido por um erro de reconhecimento do sistema. Segundo Santos, em função da doença dessa senhora, ela emagreceu significativamente e ao não reconhecer seu novo rosto, o sistema não autorizou a continuidade do pagamento de seu benefício e ela teve seu direito a aposentadoria negado. Nesse sentido, sem a revisão humana ou a dupla revisão automatizada, a idosa teve que judicializar o caso, o que implica em uma situação muito onerosa, uma vez que tais recursos estão ligados à sua sobrevivência.

Ao contrário do que geralmente se pensa ao tratar de Inteligência Artificial, por meio do imaginário construído por filmes de ficção científica, esta realidade já faz parte do dia a dia, e aprofunda ainda mais a marginalização da população negra e pobre. Para Santos, a tecnologia acirra desigualdades e exclusão, e, por isso, faz-se fundamental que os grupos sociais marginalizados se apropriem de seus recursos e de seus direitos digitais para assegurar uma existência em plenitude.

Preocupada com a disseminação dessas questões, ela nos conta que para o AqualtuneLab a educação é parte estruturante de suas ações, com vistas a dar conta de incidir na opinião pública novos olhares sobre tecnologia e justiça racial. Além de formações pioneiras que se dedicam a tratar de direitos digitais interseccionando tais reflexões com o enfrentamento ao racismo, o AqualtuneLab também atua por meio da construção de campanhas de sensibilização e incidência junto de instâncias governamentais. No primeiro semestre de 2022, representantes do coletivo estiveram entre os intelectuais e ativistas negros convidados por uma Comissão de Juristas do Senado para participar de uma audiência pública que pretendia contribuir com o futuro da regulação nacional da Inteligência Artificial.

Para Santos e Borges a tecnologia precisa ser, cada vez mais, ocupada por negros e negras. Santos acredita que além do digital, a tecnologia encontra-se relacionada à inventividade da população negra e reconhecer esse lugar é parte fundamental de um processo de ressignificação da cibercultura. Em suas palavras, “a tecnologia é preta, é indígena”. A reflexão que precisa ser feita é por que algumas tecnologias são mais valorizadas que outras, quais cientistas pretos e indígenas são reconhecidos a partir deste lugar e quais são suas invenções. Em sua perspectiva, responder a estas indagações é parte das escolhas políticas e econômicas, que precisam ser feitas para tornar o ciberespaço um lugar democrático.

Ao ilustrar as motivações para o uso do nome AqualtuneLab, a autorareverencia a ancestralidade, destacando a importância em valorizar e agradecer as jornadas daqueles que pavimentaram o caminho que a comunidade negra trilha na atualidade.

Eu costumo falar e é a verdade, que Aqualtune tem tudo a ver com acesso a tecnologia, porque era uma mulher que foi princesa no Congo, escravizada, que lutou por dignidade com muita sabedoria e estratégia. Ela lutou por liberdade, por acesso, usando suas tecnologias, enfim, está tudo conectado (Entrevista com Natane Santo, julho/2022, São Paulo).

Para ela, escolher este nome é uma forma de fortalecer e reconhecer as epistemologias da população negra e reinvidicar o potencial dessa história, mostrando quem são as nossas verdadeiras intelectuais negras, responsáveis pela elaboração de um ponto de vista singular sobre o mundo.

2. Considerações finais

A hipótese defendida ao longo do texto é que o Movimento Negro pode ser compreendido como uma margem, um espaço de abertura radical e de resistência. Foi por conta dessa experiência e dessa resistência, que foi possível o surgimento de novas epistemologias, como o caso das Ações Afirmativas de Promoção da Igualdade Racial. Nesse sentido, os coletivos Cyberixê e AqualtuneLab se configuram como formas de ação afirmativa que promovem visibilidade de práticas sociais de sujeitos negros, ao mesmo tempo em que constroem e modulam mecanismos de ação para combater o racismo epistêmico também no campo de direitos digitais.

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Juliane Cintra de Oliveira juliane.cintra@acaoeducativa.org.br

Jornalista. Mestranda em Direitos Humanos e Pós-graduada em Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais pela USP. Atua como Coordenadora Institucional da Ação Educativa e coordena o projeto Tecnologia em Ação (Tecla).