<span class="sans">Entre mídias digitais, o suplício de tântalo e a democracia:</span> resenha de “a máquina do ódio”

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Arthur Telles Borghi Moreira

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volume 1 ⁄ número 3 ⁄ jun 2021 ↘ Resenha

Entre mídias digitais, o suplício de tântalo e a democracia: resenha de “a máquina do ódio”1

Arthur Telles Borghi Moreira

Na mitologia grega, Tântalo fora condenado pelos deuses olimpianos ao eterno suplício de fome e sede. Mergulharam-no em água até o pescoço e fizeram pender sobre sua cabeça ramos de árvores dos mais belos e suculentos frutos. Quando o apenado tentava beber ou comer do que se encontrava ao seu redor, contudo, os alimentos dele se desviavam, fazendo de Tântalo sempre sedento e faminto, apesar de rodeado daquilo que paradoxalmente lhe supriria seu suplício. A narrativa helênica é alegoria de cenários nos quais a abundância de determinados elementos não significa que esses se revertam a seus efeitos esperados, em vias positivas e benéficas ao indivíduo por ele rodeado.

A contemporaneidade digital, construída sob a égide de bombardeamento dos usuários de redes sociais, tecnologias e mídias digitais a todo tempo por dados, notícias, propagandas, se relaciona intrinsicamente ao mito grego. Tal como nele, essa inundação de informações não representa um verdadeiro aprofundamento do conhecimento ou conquista da verdade, atingindo discussões mais qualificadas ou ricas. É fato que, em meio a essa avalanche de informações, a verdade acaba perdida em meio às fake news, que carregam em si elementos distorcidos, mentirosos ou descontextualizados e encaminham seus leitores a falsas conclusões. Trata-se de uma paradoxal situação na qual, apesar do acesso à informação ser teoricamente maior e mais eficaz, a verdade encontra-se comprometida. O elemento das fake news, tão difundido modernamente, tem se tornado quase uma instituição da democracia ao redor do mundo. Controverso é pensar, sobretudo, como essa releitura contemporânea da narrativa helênica tenha fins políticos, intencionalmente arquitetados e, mais ainda, refletir sobre seus impactos ao sistema democrático, que gradativamente presencia sua redução a seus procedimentos, ainda que vazios.

Esta realidade tantalônica é o objeto do novo livro de Patrícia Campos Mello, “A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital”, publicado no primeiro semestre de 2020. A autora, formada em jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), tem uma longa história profissional, tendo coberto relevantes episódios internacionais e diversos pleitos eleitorais ao redor do mundo, como as eleições dos Estados Unidos em 2016 e da Índia em 2014. Campos Mello é impávida em sua empreitada de descrever o momento de inflexão que democracias de muitos países se encontram, com a ascensão de populismos que se valem da manipulação da informação e da verdade em mídias e redes sociais, em um complexo e sistematizado mecanismo que compõe a máquina do ódio.

A obra encerra uma linguagem jornalística clara e objetiva, que demonstram a propriedade da autora no assunto. Mais do que simplesmente elucidativa, Campos Mello não foge de críticas, nem da tomada de partido circunstancial ao momento que ela captura com suas palavras. O livro também é permeado por um tom autobiográfico e pessoalizado, tendo sido a própria autora um dos alvos recorrentes da máquina do ódio: em 2018, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, Campos Mello publicou um furo jornalístico a respeito do disparo de mensagens em massa contra o então candidato Fernando Haddad, que enfrentaria Jair Bolsonaro no ringue eleitoral em poucos dias; a partir de então a jornalista foi alvejada por uma série de notícias inventadas e distorcidas que objetivavam minar sua credibilidade. Conforme remonta na obra, como se não suficiente seu linchamento virtual, a autora foi ameaçada em conjunto a seu filho, alegadamente laureada por um prêmio conferido por seu próprio jornal, além de ser equivocadamente associada a uma condenação de 200 mil reais em indenização a Bolsonaro por sua matéria.

As matérias, que careciam de qualquer base verídica e eram intencionadas a desmoralizar a jornalista, remetem a uma prática não excepcional, mas sim recorrente no cenário político doméstico e internacional. Glenn Greenwald foi também recentemente envolvido em campanhas de fake news capitaneadas pela direita nacional. Em ocasião do vazamento de mensagens de Sérgio Moro a respeito do julgamento do ex-presidente Lula, no qual ele havia sido juiz, revelando a falta de imparcialidade e lisura processual, o jornalista se tornou um alvo constante do ódio bolsonarista. A hashtag “Pulitzer de Taubaté” viralizou, em referência ao prêmio que Grennwald havia recebido por seu furo no caso Snowden e do deliberado programa de vigilância massiva desenvolvido pelas autoridades americanas. A ação buscava constranger o jornalista, alegando que ele havia mentido sobre o recebimento do Pulitzer à época; as acusações foram rapidamente desmentidas pelos grandes veículos de comunicação, mas seus impactos cristalizaram prejuízos e macularam a reputação do jornalista. Afinal, a força com que as fake news se difundem e alcançam usuários é muito maior do que a verdade e os fatos, como suscita Campos Mello na obra:

Como sabemos, fake news circulam com muito mais velocidade que as notícias verdadeiras. Segundo um estudo do Massachusetts Institute of Technology, notícias falsas têm probabilidade 70% maior de serem retuitadas do que as verdadeiras. E as notícias verdadeiras levam seis vezes mais tempo que as fake news para atingir o número-padrão de 1500 pessoas. Ou seja, desmentir notícias falsas é enxugar gelo. (Campos Mello, 2020, p. 239).

Eminentemente, assim, os danos provocados pelas fake news são profundos e perpetuam-se ainda que elas sejam posteriormente desmentidas. Há, de certo, um paralelo entre os episódios de Campos Mello e de Grennwald – mas a trajetória das fake news ligadas à autora, abordadas em seu livro, é sinalizadora de um elemento particularmente relevante da violência digital: o gênero. As fake news endereçadas às mulheres são carregadas em maioria por uma misoginia inconteste: enquanto os homens têm suas trajetórias, credibilidade e conquistas contrariadas, as campanhas contra as mulheres não se restringem a essas características, mas as transcendem, inoculando uma sexualização que faz a questão atingir outro patamar.

Campos Mello descreve em sua obra como um vídeo mal intencionado a comparava a uma prostituta que se valia de seu sexo para conquistar informações privilegiadas. O vídeo não só reduzia e reificava a jornalista em específico, mas também contestava a capacidade de todo o gênero feminino, ao atribuir seu sucesso profissional não a sua capacidade jornalística, mas a seus atributos sexuais: “a ‘piada’ era comigo, e ofendia todas as mulheres” (ibidem, 2020, p. 77). Essa recorrente tática não se restringe somente a Campos Mello, mas também foi colocada em prática contra diversas outras jornalistas, como Talita Fernandes e Miriam Leitão, demonstrando como esse tipo de ataque sistemático no mundo virtual faz da misoginia com outras proporções na era digital, ainda mais opressivas. Latente, portanto, como a obra de Campos Mello seja significativa, conferindo uma perspectiva intrinsicamente pessoalizada e importante às discussões de fake news.

A jornalista, ademais, constantemente alterna seu foco descritivo a uma perspectiva ensaística, elencando dados e estatísticas que devidamente buscam fundamentar suas constatações. Assim, a autora detém o mérito de densificar o debate a partir de diversas informações, atribuindo ao livro enorme potencial elucidativo dos meios pelos quais a violência digital e a ascensão do populismo de direita se desenvolvem. Nesse sentido, o dito “assassinato de reputações” executado por trolls e bots no procedimento astroturfing, isto é, de inundação de informações, notícias e manchetes, muitas delas falsas, não é o único procedimento posto em prática pelos controladores da máquina do ódio.

A obra remonta como os políticos envolvidos com a dinâmica da máquina do ódio atuam também em vias de legitimar violências contra a mídia e contra o jornalismo tradicional. Trata-se de uma verdadeira abertura de precedente, no qual seus seguidores se sentem livres a agredir e vilipendiar a categoria e os jornalistas, individualmente. A autora não foge de demonstrar como isso ocorre diariamente no Palácio da Alvorada, no qual o Presidente submete os jornalistas a situações degradantes, legitimando que seus adeptos façam o mesmo. Não obstante, esses atores buscam conflitos com a mídia tradicional, contestando-a para, na perspectiva da autora, blindarem-se de eventuais críticas que possam lhe ser desferidas:

Esse conflito permanente com a imprensa tem um propósito: blindar os governantes contra críticas, minando a confiança na mídia profissional. Dada uma rasteira na credibilidade da mídia, é fácil convencer as pessoas de que uma reportagem de denúncia de corrupção, por exemplo, não passa de um ataque da imprensa oposicionista. […] Além disso, a hostilidade contra a mídia é abraçada por apoiadores e ajuda a atiçar a militância contra o “inimigo” comum. Pesquisa de julho de 2019 da Hill-Harris X mostra que um terço dos americanos acredita que a mídia é “inimiga do povo”. Considerando apenas eleitores republicanos, 51% deles têm esse julgamento, enquanto 14% dos democratas e 35% dos independentes pensam o mesmo. (Campos Mello, 2020, p. 175).

Essa postura, que não só compromete a eficácia da mídia em sua função institucional de controle do Poder Público, trazendo a conhecimento comum problemas e gargalos, também fomenta um desgaste democrático à medida que polariza opiniões e pontos de vista, cegando os indivíduos em seus próprios círculos sociais ao atribuir o status de inimigo a quem conteste suas convicções.

Campos Mello é também célebre a sintetizar como, próximo aos pleitos eleitorais, não estranha à máquina do ódio é a ajuda oferecida pelas grandes empresas e redes sociais. Revela a autora como Twitter, Google, Facebook e Instagram ofereciam aos candidatos das eleições americanas os ditos embeds, funcionários das empresas encarregados de oferecer suporte às campanhas, customizando publicidades e avaliando a efetividade de propagandas. Também em 2018 foram programados determinados resultados em portais de pesquisa, influenciando de alguma ou outra maneira o que os usuários iriam encontrar, em sua maioria favorecendo Donald Trump. Mais além, outro envolvido na eleição americana foi o chamado microtargeting, capitaneado pela empresa Cambridge Analytica, vice-presidida pela polêmica figura de Steve Bannon. O procedimento concerniu, basicamente, à colheita de dados pessoais de milhares de pessoas por seus traços deixados no mundo digital, construindo a partir deles perfis psicológicos e sociais de forma a segmentá-las em categorias específicas que seriam inundadas com publicações e informações particularíssimas, voltadas especialmente a esse grupo. Comparando, a autora elenca como a campanha de Trump tinha quase 6 milhões de mensagens diferentes possíveis, cem vezes mais que a candidata democrata Hillary Clinton.

Se por si só esses procedimentos têm potenciais extremamente lesivos ao debate público e à qualidade do discurso, Campos Mello demonstra em sua obra como alguns países ao redor do mundo se utilizam de medidas ainda mais drásticas. Governos têm tentado falir a mídia tradicional ao reduzir o aporte de verbas em suas publicidades e constranger empresas a fazer o mesmo, limitar ou super tributar insumos essenciais como tinta ou papel jornal e fomentar que empresas alinhadas à base governamental comprem os meios de comunicação, resultando em verdadeiros monopólios da informação controlados por apoiadores do governo. Também se tem sancionado leis cerceadoras da liberdade de expressão e repressivas do ofício jornalístico, fundando uma sistemática perseguição a jornalistas e editores, que acabam presos ou exilados de seus países.

E não são poucos os países em que políticos e movimentos tem se utilizado dessas táticas. Além dos Estados Unidos, Turquia, Polônia, Hungria e Índia tem suas próprias máquinas do ódio, inclusive institucionalizadas em algum grau. E o Brasil não passa ileso das significativas expressões desse populismo digital, que tenta ditar sua própria verdade ao se livrar dos filtros da mídia tradicional. Nesse aspecto, o gabinete do ódio, encabeçado por um dos filhos de Bolsonaro, é referência central e constante em toda a obra de Campos Mello.

Entre notícias falsas, narrativas desvirtuadas, abertura de precedentes a violências contra jornalistas, direcionamento de informações com base em perfis psicossociais, leis repressivas, boicotes por meio do financiamento dos veículos de comunicação e tantas outras ferramentas pelas quais a máquina do ódio opera, o livro aborda um momento de verdadeira inflexão da democracia como tradicionalmente concebida. Não sem razão o livro aponta como as novas dinâmicas que o mundo virtual encerra e proporciona projetam verdadeiros impactos ao sistema democrático – e a obra, construída com maestria pela jornalista, demonstra a urgência de se discuti-los.

A obra é também especialmente interessante ao possibilitar diálogos com grandes teóricos da democracia e suas célebres contribuições ao sistema democrático. Jürgen Habermas, eminente autor da Escola de Frankfurt, por exemplo, defendia que o debate democrático deveria ser pautado pelo diálogo constante entre as diversas forças do discurso, que deveriam ter na máxima de consenso e de entendimento seu objetivo comum2. A utilização dos meios digitais, tal como apresentado por Campos Mello em sua obra, no entanto, se dirige a uma orientação oposta, na qual o consenso e o diálogo não são visados, mas essencialmente fadados ao fracasso, vez que não só falta intenção dos agentes políticos para tanto, que se usam das tecnologias de inundação e desinformação para se alçarem ao poder, mas também as possibilidades de um concreto e consolidado diálogo são pequenas e esparsas, em virtude da desinformação e da polarização agravadas pela máquina do ódio. A autora apresenta, pois, uma dinâmica que gradativamente se distancia do ideal democrático consensual de Habermas, em um cenário pouco promissor à continuidade da democracia.

Não obstante, a obra coloca em centralidade a dicotomia bobbiana entre formulações formais e substanciais da democracia:

Para não nos perdermos em discussões inconcludentes é necessário reconhecer que nas duas expressões “Democracia formal” e “Democracia substancial”, o termo Democracia tem dois significados nitidamente distintos. A primeira indica um certo número de meios que são precisamente as regras de comportamento acima descritas independentemente da consideração dos fins. A segunda indica um certo conjunto de fins, entre os quais sobressai o fim da igualdade jurídica, social e econômica, independentemente dos meios adotados para os alcançar. (Bobbio, 1998, p. 329)

Com a máquina do ódio apresentada por Campos Mello, a democracia se apresenta numa tendência de se reduzir à existência de meras instituições e procedimentos de democracia, mas que substancialmente não são preenchidas com fins e ideais verdadeiramente democráticos. Sem a qualidade propiciada por um debate honesto e qualificado, assim, a democracia perde seu conteúdo e se reduz a um mero encadeamento de procedimentos, desvinculados de seus fins de igualdade jurídica, social e econômica, como apresentado por Bobbio.

Por seus impactos à democracia e à procedimentalização do fazer democrático, a obra é particularmente importante em tempos eleitorais. Concomitante à redação desta resenha se desenvolvem os pleitos eleitorais dos Estados Unidos e as eleições municipais brasileiras. Pensar em medidas estruturais como faz Campos Mello em seu quarto capítulo, intitulado “Bolsonaro e o manual de Viktor Orbán para acabar com a mídia crítica”, são mais do que essenciais. Entre eles, a autora propõe a transparência dos veículos de informação e da necessidade de iniciativas como o Trust Project, que pretende recobrar a veracidade do que se posta e é transmitido nas redes sociais e principais sites visitados na internet. Os desafios, sem dúvida, não são poucos. Afinal, pensar em formas de se conter a ascensão de forças pouco democráticas pelo aprofundamento do uso das mídias sociais se dá em meio a um contexto de esgotamento dos modelos e paradigmas do direito, bem como de exaustão epistemológica e cognitiva do Estado, fazendo do ordenamento jurídico incapaz de dirimir conflitos sociais estritamente dinâmicos e de uma realidade diferenciada:

Suas normas, editadas e aplicadas no âmbito de uma realidade dominada por forças e dinâmicas globais que ultrapassam os marcos institucionais e nacionais tradicionais, vêm perdendo a capacidade de ordenar, moldar, conformar e regular a economia e de reduzir incertezas, estabilizar expectativas e gerar confiança no âmbito da sociedade. Suas leis e códigos, em face dos novos paradigmas de produção, das novas tecnologias de informação e dos novos canais de comunicação, vem enfrentando grandes dificuldades para promover o acoplamento entre um mundo virtual emergente e as instituições do mundo real (Faria, 2010, p. 4).

“A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital”, de Patrícia Campos Mello, assim, imprime uma perspectiva fundamental às discussões sobre democracia ao redor do mundo e, mais essencialmente, à brasileira. A partir de uma linguagem elucidativa e de um ponto de vista pessoal e qualificado, a obra instiga a crítica e a reflexão sobre o exercício democrático e as repercussões políticas e jurídicas das novas tecnologias, da difusão das redes sociais, das funções da mídia e, essencialmente, dos efeitos e prejuízos que o suplício de Tântalo remasterizado pode oferecer. Em um momento de vulnerabilidades políticas e sociais e de importantes eleições, nacionais e estrangeiras, a obra consta da lista de leituras essenciais, caracterizando-se como uma das principais contribuições do ano de 2020 à literatura nacional.

Referências

BOBBIO, N.; et. al. (1998), Dicionário de política. Brasília: Editora UnB, 11ª. edição, vol. 1.

CAMPOS MELLO, P. (2020). A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª. edição.

HABERMAS, J. (1984). Teoria do Agir Comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes, vol. 1.

FARIA, J. E. (2010). Sociologia jurídica: Direito e Conjuntura. São Paulo: Saraiva, 2ª. ed.