“Formato governa acesso”: <span class="sans">A poética computacional de Dennis Tenen</span>

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Pedro Zylbersztajn

Dennis Tenen

Resenha: Tenen, D. (2017). Plain Text: The Poetics of Computation [Versão Kindle]

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N. 1 ⁄ V. 1 ⁄ FEVEREIRO DE 2020 ↘ Resenha

“Formato governa acesso”: A poética computacional de Dennis Tenen

Pedro Zylbersztajn

“Poética computacional”, de acordo com Dennis Tenen (2017), é “uma estratégia de interpretação capaz de alcançar além do conteúdo da superfície para revelar plataformas e infraestruturas.” (Tenen, 2017, Introduction, Thesis and Archive, para. 8). Em seu livro Plain Text: The Poetics of Computation [Texto Simples: A poética da computação, em tradução livre], publicado em 2017 pela Stanford University Press, o autor encara um tema ainda pouco mapeado, mas extremamente pertinente para a teoria literária contemporânea: a ontologia e a fenomenologia de textos digitais. Professor de Literatura Comparada na Universidade de Columbia e ex-engenheiro de software da Microsoft, Tenen é, como poucos, capaz de enfrentar esse desafio e trazer uma perspectiva informada que contemple uma relação dialética entre os sistemas de conhecimento e credos de ambas as disciplinas.

Posicionando seus argumentos em oposição a muito do que a teoria da mídia dos anos 1990 e 2000 produziu sobre textualidade digital, seja o que o autor chama de qualidades supostamente imateriais e cintilantes dos estudos de software de Wendy Hui Kyong Chun ou de abordagem pessimista “antihumanista” (Tenen, 2017, Introduction, Theory, para. 15) no trabalho de Friedrich Kittler, o livro se alinha a uma visão de digitalidade materialista e orientada a objetos que vem ganhando tração com a publicação de trabalhos como On the Existence of Digital Objects [Sobre a existência de objetos digitais, em tradução livre], de Yuk Hui (2016), e Digital Materiality [Materialidade digital, em tradução livre], de Paul M. Leonardi (2010). Deste modo, Tenen argumenta que é primordial para o estabelecimento de qualquer forma relevante de interpretação de textos digitais que o paradigma da ‘leitura atenta’ (close reading, no original) seja aplicado não somente à superfície do texto mas também ao hardware e aos componentes materiais propriamente ditos que permitem que tal texto seja definido – silício, tunelamento quântico, transistores de portão flutuante, telas de cristal líquido, o código que regula a performance de tais componentes – e a como as interações entre esse conjunto de elementos co-produz o texto pelo que é, o que ele chama de um laminado textual, uma combinação de lógica e física “que mantém a inscrição em suspenso.” (Tenen, 2017, Chapter 3, Composite Media, para. 2) É apenas através dessa prática que a crítica textual terá o poder de afirmar a abordagem humanista necessária para que a literatura mantenha seu potencial sob o que Kittler chama de “condições de alta tecnologia.” (Tenen, 2017, Introduction, Theory, par. 15) Para impedir a literatura de se tornar tecnologicamente determinada, de acordo com o autor, pesquisadores e leitores devem estender seus olhares ao substrato material e às infraestruturas que cercam qualquer texto digital e informam o modo como eles são lidos, e com isso serem capazes de identificar e responder à forma com que estruturas de poder são incorporadas neles de “maneiras não-óbvias.” (Tenen, 2017, Conclusion, Global Perspectives, par. 4)

O livro é metodologicamente interessante pois formula uma histórica crítica epistemológica da relação entre literatura e computação. A maior parte dos seus cinco capítulos são ao menos parcialmente dedicados a prover relatos historiográficos de diferentes linhagens de pensamento que influenciaram o ponto sobre o qual atualmente se encontra a textualidade digital, seja através de estudos de caso e anedotas ou da justaposição de ideias e filosofias contemporâneas entre si. Os capítulos, respectivamente nomeados “Metaphor Machines” [“Máquinas de metáfora”, em tradução livre], “Laying Bare the Device: The Modernist Roots of Computation” [“Desnudando o dispositivo: as raízes modernistas da computação”, em tradução livre], “Form, Formula, Format” [“Forma, fórmula, formato”, em tradução livre], “Recondite Surfaces” [“Superfícies recônditas”, em tradução livre] e “Literature Down to a Pixel” [“Literatura reduzida a um pixel”, em tradução livre], são sequenciados de maneira a sintetizar o fluxo de experiências em um objeto digital, com o argumento “progredindo da ação do interruptor numérico do teclado, através do cobre e do silício, até o cristal líquido e o portão flutuante e em direção ao leitor e à comunidade.” (Tenen, 2017, Introduction, Plan of the Present Work, par. 1).

Entre os diversos méritos do livro, é especialmente significativa a aproximação de mão dupla que o autor promove entre os campos da ciência da computação e dos estudos literários. Não apenas ele está preocupado com os efeitos que a tecnologia computacional transmite às formas contemporâneas de textos digitais, mas também em elucidar a importância do pensamento literário no desenvolvimento histórico dessas mesmas tecnologias. Baseando-se fortemente no Formalismo Russo, e em particular no trabalho de Viktor Shklovsky, mas também em vastas fontes da teoria literária, teoria da mídia e da crítica textual, Tenen consegue demonstrar a importância de metáforas e seu emprego e análise literária no desenvolvimento tanto de interfaces propriamente ditas quanto no discurso crítico acerca da engenharia de software e hardware. Através de um relato quase literário da mutualidade de influências entre o pensamento de Ludwig Wittgenstein e Alan Turin, o autor expõe magistralmente como a lógica da computação veio a ser essencialmente dialógica. E a discussão contida no terceiro capítulo é particularmente rica em seu estabelecimento de uma teoria híbrida do formato que engloba homólogos tanto na ciência da computação quanto na crítica textual. Para afirmar o que ele nomeia a ‘camada de formatação’, somos levados em uma incursão de debates formalistas e idealistas envolvendo Platão, Hegel, Shklovsky e outros, que elucidam os conceitos de forma, fórmula e formato do autor, sintetizados no argumento preciso de que apesar de não figurar no primeiro plano das nossas teorias de criação de significado, “formato governa acesso” (Tenen, 2017, Chapter 3, Digital Formalisms, par. 5). Nos é apresentada a visão de código como um “signo programático”, seguindo Baudrillard (Tenen, 2017, Chapter 1, par. 1), que opera como um agente ativo nesse processo semiótico, como um mediador entre formatos de dados distintos que exerce poder e afeta a leitura – que “determina uma platéia, privilegiando certas vozes e modos de ler.” (Tenen, 2017, Chapter 3, Digital Formalisms, para. ). Infelizmente, enquanto a camada de formatação e o signo programático são descritos com a devida importância nesse capítulo, a ênfase do livro em materialidade física previne um engajamento mais aprofundado com o papel desempenhado pelo software e pela programação nas técnicas de escrita e leitura de texto digitais. Afinal, como Tenen mesmo aponta, o código “é um exercício de poder, e não sua representação” (Tenen, 2017, Chapter 3, Digital Formalisms, par. 6); é o que molda a palavra escrita visível de acordo com suas próprias formulações, relacionando “matéria e conteúdo.” (Tenen, 2017, Chapter 3, Digital Formalisms, par. 6). Nesse sentido, Plain Text pode ser lido em paralelo, ainda que nem sempre em uníssono, com livros como Software Takes Command, de Lev Manovich (2013), ou Philosophy of Software, de David Berry (2011), que não focam especificamente na ontologia dos textos ao que se relacionam com o mundo digital, mas proveem uma compreensão dos modos de produção, usos e práticas contemporâneas de software, ou mesmo Programmed Visions, de Wendy Chun (2011), que mesmo tendo sido mencionado por Tenen como propondo uma visão oposta a dele, é um marco divisório na sua elaboração de código como um instrumento indelevelmente associado com autoridade e controle social, o que evidentemente tem suas implicação em formas de leitura.

É uma tendência desse título, e talvez também de seu autor, entender o livro impresso como uma forma levemente essencializada, em que textos e leituras são imutáveis, únicos, e em alguma medida não afetados por suas próprias qualidades e transformações materiais. Nesse sentido, esse relato, que é no demais extremamente humanista (para usar os próprios termos do autor), dá pouca importância no seu argumento principal a algumas agências fundamentalmente humanas: aquelas do trabalho e das assemblagens humano-materiais que circundam a produção de livros impressos, como maneira de informar como – e se – eles se diferenciam de livros digitais. O papel do leitor também é minimizado, e conceitos de intenção autoral e de um único texto original tomam o primeiro plano. Nessa perspectiva, o livro produz uma certa tensão com exemplos mais estabelecidos da Bibliografia e da História dos textos, representadas por exemplo por Roger Chartier e Donald McKenzie, e esse diálogo poderia ser levado mais adiante na medida que esse título se torna um locus de discussão intelectual. Aqui, me lembro especificamente de uma passagem no livro Bibliography and the Sociology of Texts, de McKenzie (1999), em que ele menciona a famosa página marmorizada no Tristram Shandy, de Laurence Sterne, para discutir simultaneamente o privilégio dado pelo escritor ao olhar do leitor sobre a indeterminação do texto e a variação que uma edição pode trazer ao texto a medida que o objeto livro se transforma:

Cada página marmorizada à mão é necessariamente diferente, porém integral ao texto. Como um sortimento de formas coloridas completamente não representacionais, uma página marmorizada, distintamente de uma página letrada, pode inclusive ser dita não ter significado algum. A maior parte das edições modernas, se tentam incluí-la e não se contentam apenas com uma nota sobre sua presença original, imprimirão uma imagem em preto e branco dela, uniforme em todas as cópias da edição. Ao fazer isso, é claro, subvertem a intenção de Sterne de encarnar um emblema da intenção não específica, da diferença, do significado indeterminado, da própria instabilidade do texto de cópia em cópia. (McKenzie, 1999, pp. 35-36, tradução do autor)

Apesar de qualquer disputa iminente, Plain Text: The Poetics of Computation é decididamente um marco no desenvolvimento do pensamento crítico na interseção entre teoria literária e estudos de software. É um trabalho ambicioso que prospera em avançar muitos dos aspectos fundamentais desse campo em expansão e na definição de um léxico de conceitos úteis que certamente moldarão discussões futuras nesse tópico e em campos adjacentes. Não apenas isso, é um passo em direção à compreensão dos locais de inscrição no mundo digital e com isso, um trabalho de grande importância política que se esforça em engajar leitores e críticos a contornar futuros textuais tecnologicamente determinados. Citando uma última sessão do livro, “o código não é normalmente feito para ser decodificado por aqueles sobre os quais ele age. Recipientes de controle codificado são poupados da fricção da significação, permanecendo em um estado de assemiose, e, portanto, de ignorância.” (Tenen, 2017, Chapter 1, par. 2) Essa passagem parece resguardar o motivo por trás da publicação desse volume: forçar em sua totalidade a fricção da significação sobre nossos modos de ler (aparentemente) novos.

Referências

Berry, D. (2011). The Philosophy of Software. Basingstoke: Palgrave Macmillan.

Chun, W.H.K. (2011). Programmed Visions. Cambridge, MA: The MIT Press.

Hui, Y. (2016). On the Existence of Digital Objects. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press.

Leonardi, P.M. (2010). Digital materiality? How artifacts without matter, matter. First Monday, vol.15.

McKenzie, D. (1999). Bibliography and the Sociology of Texts. Cambridge: Cambridge University Press.

Manovich, L. (2013). Software Takes Command. New York, NY: Bloomsbury Academic.

Tenen, D. (2017). Plain Text: The Poetics of Computation. [Kindle Fire version] Retrieved from Amazon.com

Pedro Zylbersztajn pedrozylber@gmail.com

 Pesquisador independente