<span class="sans">“A internet é o celular”</span>: uma antropóloga entre smartphones, câmeras frontais e <em>redes sociais</em>

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Beatriz Accioly Lins

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volume 1 ⁄ número 2 ⁄ dez 2020 ↘ Artigo

“A internet é o celular”: uma antropóloga entre smartphones, câmeras frontais e redes sociais

Beatriz Accioly Lins

Resumo

Este artigo é parte de uma pesquisa mais ampla, a saber uma pesquisa de doutoramento em antropologia social sobre a produção, a troca e a circulação de imagens digitais eróticas de mulheres (os nudes), seus possíveis esparramar-se (os vazamentos) bem como suas consequências jurídicas, políticas, sociais e morais. Aqui, proponho-me a abordar, de diferentes maneiras, o arranjo sociotécnico que possibilita as interações sociais digitalizáveis: a tríade tecnológica composta pela internet, por aparelhos celulares em seu modelo smartphones e pelas redes sociais. Para tanto, reflito acerca de como minhas interlocutoras de pesquisa se deslocam pela geografia tecnológica atual, analisando as maneiras pelas quais manuseiam dispositivos; quais plataformas usam e de que formas; como se conectam, percebem e pensam essa tríade tecnológica, prestando atenção especial às maneiras pelas quais elas atribuem diferentes sentidos e significados tanto às novas tecnologias digitais quanto às interações que a partir delas – e nelas – vivenciam.

1.Introdução

“Não precisa ficar com medo, não é favela”, Lúcia me assegurou diversas vezes, meio constrangida, meio enfática. Até tentei argumentar que não seria um problema ainda que fosse de fato uma favela, mas ela jamais pareceu acreditar em mim. “Fica na estrada de Itapecerica da Serra. Se você vier para conversar com elas, seria muito bom, ninguém mais sabe o que fazer”.

Lúcia trabalhava como diarista na casa de uma das profissionais que conheci por meio da extensa rede de pessoas envolvidas, de alguma forma, com questões referentes a violências contra mulheres1. Naquela tarde, sentada na varanda do apartamento da jornalista, eu respondia a uma série de perguntas genéricas acerca do tema da “exposição de mulheres na internet” – assunto de uma matéria que sairia em uma revista feminina –, quando Lúcia pediu licença e se dirigiu a mim. Entendendo que eu atuaria “ajudando pessoas com sacanagens que o povo manda um para o outro pelo celular” (em suas próprias palavras), ela me julgou apta a tentar apaziguar os ânimos das mulheres de sua família em uma situação que envolvia imagens de cunho sexual, celulares e conflitos.

Segundo Lúcia me contara, sua irmã e sua cunhada – esposa de seu irmão – haviam encontrado vídeos e fotografias de mulheres nuas nos celulares de seus maridos. As imagens não eram de desconhecidas, tratava-se de vizinhas da vila onde moravam e também, para o verdadeiro terror das esposas, de algumas amigas. Ao “investigarem” mais, elas descobriram que seus companheiros trocavam frequentemente imagens eróticas de mulheres em grupos no WhastApp. Em alguns casos, eram de fotos e vídeos delas próprias, “aquelas coisas que a gente faz para o marido”. Instaurou-se, então, a confusão.

Assim cheguei ao Valo Velho, região que se situa na tríplice fronteira entre o Capão Redondo e o Campo Limpo (distritos paulistanos) e a cidade Itapecerica da Serra (pertencente à região metropolitana de São Paulo). O longo caminho entre o centro expandido da cidade e bairro leva cerca de duas horas e meia. Na minha primeira ida ao local, apesar das orientações que Lúcia me enviara pelo WhatsApp sobre linhas específicas de micro-ônibus, vans e ruelas, optei por utilizar um aplicativo de movimentação urbana via transporte público que tenho instalado em meu aparelho celular.

Chegando lá, fui recebida pelas minhas anfitriãs – Lúcia, sua irmã Márcia, a cunhada Teresa e a sobrinha, Tainá, de 14 anos – com surpresa e congratulações tanto por não ter me perdido quanto por ter feito uma rota alternativa e desconhecida (e, ainda assim, eficiente) para chegar ao bairro. Entre sucos (“de fruta mesmo, nada de saquinho”) e bolos de fubá (“somos todas mineiras”), tão logo cheguei, fui incitada a instalar, em todos os aparelhos, o tal aplicativo, mostrando também algumas maneiras pelas quais ele poderia ser manuseado. Já estávamos com nossos celulares em mãos, como haveria de ser durante todas as nossas interações, que se estenderiam por mais de um ano.

A possibilidade de escolher rotas que privilegiam a utilização somente de ônibus, barateando o custo com passagens, ou de selecionar alternativas mais rápidas, útil em casos de pressa ou emergência, logo fizeram do aplicativo MoveIt um sucesso entre aquelas mulheres, que circulavam constantemente pela cidade para chegar aos mais longínquos locais de trabalho. Devidos aos “serviços”, todas se deslocavam diariamente para regiões próximas ao centro: Lúcia trabalhava como diarista, Teresa como babá e Márcia como confeiteira em uma loja de bolos. Rapidamente, elas se tornaram ávidas usuárias da plataforma. Por conta disso, eu recebi o apelido carinhoso de “especialista de internet”.

Tainá se aborreceu com a conversa sobre transporte público e distâncias entre regiões da cidade: “mas a gente não ia falar de celular?”. Às vésperas de completar quinze anos, a menina estava em meio a um sério impasse com seus pais. Teresa, sua mãe, queria dar para a filha um tradicional baile de debutante. Ela e o marido guardaram dinheiro durante anos em uma poupança, com muito custo, pois a festa era um desejo “desde que a menina nasceu”. Contrariando as projeções maternas, Tainá pedira de presente um novo celular, impreterivelmente, de última geração.

O valor poupado pelos seus pais, Tainá me contou, correspondia exatamente ao preço do aparelho que ela mais desejava, na época, cerca de cinco mil reais, uma quantia muito alta, ainda mais considerando a renda mensal familiar de dois mil reais. Além de Tainá, Teresa e o marido também tinham três filhos mais novos. Todos meninos. “Uma festa dura para sempre na memória, um celular caro desses pode ser roubado no dia seguinte. Ela é minha única filha”, repetia Teresa. “Eu já acho diferente. A festa acaba no mesmo dia e não serve para nada, o celular eu vou usar por anos e para tudo”, retrucava Tainá.

A importância dada pela jovem ao celular refletia o uso constante que fazia do aparelho que já tinha. Sem um computador na família, Tainá utilizava o celular para trabalhos escolares bem como para pesquisar toda sorte de informações. O que mais gostava de fazer, todavia, era tirar fotos e interagir no Twitter, Instagram e Facebook. Tainá reclamava constantemente que seu aparelho atual não comportava a quantidade de aplicativos, imagens e funções que ela utilizava: “ele trava”. “Além disso, todo mundo tem que ter um iPhone na vida, né?”, comentou.

Para Tainá, o valor social do celular – seu uso prático atrelado ao status simbólico que a posse daquele modelo específico poderia conferir – claramente ultrapassava o custo elevado do aparelho. Ao longo das negociações com a mãe, algumas das quais fui chamada a contribuir, a menina argumentava que o “investimento” (em suas próprias palavras) também resultaria em vantagens escolares. Por fim, Tainá venceu a disputa e ganhou o tão desejado iPhone XR branco com 128 GB de memória, comprado no carnê em doze vezes2. Já a festa não aconteceu.

No processo de convencimento de seus pais, Tainá se voltara para mim como principal aliada na defesa do potencial pedagógico do aparelho, “vê, mãe? Ela faz pesquisa na USP com o celular dela”. A despeito da pouca diferença de idade entre mim, Lúcia, sua irmã e sua cunhada, as mulheres adultas sempre me trataram como alguém muito mais jovem. Ao passo em que Lúcia, Márcia e Teresa já tinham filhos “crescidos” ou até maiores de idade (uma delas, inclusive, era avó de uma criança de dois anos), eu era vista como uma estudante, sem filhos e tecnologicamente engajada. Quase uma adolescente.

Meu relativo traquejo com novidades tecnológicas – ao menos aos seus olhos – virou uma forma de estabelecer uma espécie de troca de favores. Não raras foram as vezes em que uma das quatro me pediu para auxiliá-las em atividades burocráticas que envolviam internet, celulares e computadores, como o preenchimento de formulários, manuseio de plataformas bancárias e, até mesmo, na elaboração de currículos profissionais.

Embora não tivessem as mesmas aspirações que Tainá em relação aos seus celulares, Lúcia, Márcia e Teresa enfatizavam a centralidade dos aparelhos em suas vidas. Como diarista, Lúcia dependia frequentemente do WhastApp tanto para organizar seus horários e conversar com empregadoras quanto para conseguir ampliar sua clientela a partir de indicações e contatos. Em seu aparelho, Lúcia também guardava as fotografias que registrava do filho mais novo, um menino de oito anos, e do neto, ainda bebê: “acho que nem tenho fotos deles de papel, eles já nasceram nessa época de celular”. Para Teresa e Márcia, os aparelhos funcionavam igualmente como agendas, mapas, relógios e estimados álbuns de família.

Na condução desta pesquisa, a centralidade dos aparelhos celulares não foi prerrogativa de minhas interações com as mulheres da família Rodrigues. Muito pelo contrário. A presença do aparelho foi fundamental ao longo de todo o percurso etnográfico e analítico do trabalho. Fosse utilizado como forma de me comunicar com minhas interlocutoras bem como alternativa aos gravadores tradicionais ou, até mesmo, a cadernos de anotações, o meu próprio celular esteve sistematicamente em minhas mãos – ou a uma distância próxima – durante quase todos os momentos da pesquisa. O mesmo se dava com minhas interlocutoras.

Constantemente em posse física de seus aparelhos, elas o utilizavam para os mais variados fins, relatando com frequência sentir que estes seriam espécie de extensões de seus próprios corpos. “Meu celular é tudo”, disse Teresa uma vez, quando teve que deixar o aparelho em uma assistência técnica. Variações dessa frase foram comuns entre tantas outras mulheres com as quais interagi. “Sem celular, me sinto sem roupa”, me contou uma delas.

Desde o projeto, eu tinha em mente que a tecnologia – em especial, a internet – seria um dos fios heurísticos da investigação, uma vez que o tema sobre o qual optei por me debruçar dialogava diretamente com as novas tecnologias de informação e comunicação, afinal, de diferentes maneiras, é na e por causa da internet que a disseminação não autorizada de imagens eróticas de mulheres toma vida. No entanto, eu não imaginava que tal cenário sociotécnico far-se-ia tão indissociável tanto das questões investigadas quanto do próprio processo de feitura da pesquisa.

Nos contextos aqui explicitados, os aparelhos celulares estabeleceram-se como principais articuladores das mais variadas interações. Com eles em mãos, minhas interlocutoras me apresentavam fotografias de seus familiares, namorados e animais de estimação na mesma medida em que me mostravam prints3 de brigas, conflitos e problemas. Muitos dos quais, decorrentes de vazamentos de seus nudes. As imagens digitais ilustravam situações sobre as quais discorríamos e nos forneciam materiais para novas e inesperadas conversas. Aqui, pesquisadora e interlocutoras se fazem sujeitos igualmente afetados por sociabilidades tecnologicamente atravessadas.

Pensar na disseminação não autorizada de imagens eróticas de mulheres implica, invariavelmente, falar de internet. São em espaços de sociabilidade online que nudes são produzidos, enviados e, porventura, vazados, acarretando uma gama considerável de escalas, alcances, permanências e repercussões.

Não obstante, o termo internet, embora pareça indicar algo quase universalmente cognoscível, pode ser um descritivo demasiadamente vago. A palavra traz consigo uma pletora de tecnologias, dispositivos, circunstâncias, relações, comportamentos, discursos, valores, pressupostos e práticas que engendram novas formas de ser e de estar no mundo. Ao longo da pesquisa, pude perceber que, no concernente às questões caras a esta investigação, falar de internet envolveria encarar alguns contextos, sentidos e manuseios específicos das possibilidades tecnológicas atuais.

Para além da internet em sentido mais amplo, a produção e o envio de nudes fazem-se fiduciários da recente popularização de um híbrido tecnológico socialmente transformador: aparelhos celulares em seu modelo smartphone dotados de câmeras fotográficas e conectáveis à rede.

“A internet é o celular”, anunciou Tainá, lembrando-me que, pelo menos no contexto aqui relevante, internet seria espécie de sinônimo do uso conjunto de aparelhos celulares com câmeras digitais (em especial, em sua função frontal) e do acesso a redes sociais online. Isso posto, abordar a rentabilidade analítica desses objetos e dessas plataformas fez-se mister na redação esse texto, partindo do princípio de que pessoas se relacionam tanto entre si quanto com aparatos tecnológicos, sendo ambos os processos entrelaçados e indissociáveis.

Neste artigo, proponho-me a abordar tal arranjo sociotécnico que possibilita, orienta, impacta, constrange e articula variadas interações sociais, dentre as quais estão os nudes e os vazamentos. Para isso, dediquei-me a refletir acerca de como minhas interlocutoras se deslocam por essa geografia tecnológica atual, pensando as maneiras pelas quais manuseiam dispositivos, quais plataformas usam e de que formas, como se conectam, percebem e pensam essa tríade tecnológica internet-celulares-redes sociais, com especial atenção às maneiras pelas quais elas atribuem diferentes sentidos e significados tanto às novas tecnologias digitais quanto às interações que a partir delas – e nelas – vivenciam.

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2.Nem ciberotimista nem ciberpessimista: tecnologias e ambivalências

É lugar comum, nos dias de hoje, dizer que a internet teria alterado completamente a realidade como a conhecemos. Cotidianamente, percebemos, estranhamos, elogiamos, analisamos e comentamos os impactos da popularização da rede nas mais variadas esferas da vida social. Estaríamos, por suposto, diante de um novo e impressionante contexto sócio-tecnológico em que o acesso a informações e a possibilidades comunicacionais teriam chegado a patamares inéditos, ultrapassando relevantes barreiras físicas e materiais.

Descrita pelo sociólogo espanhol Manuel Castells (2003) de forma entusiástica como “o tecido de nossas vidas”, a internet certamente é parte fundamental do cotidiano de diversos grupos sociais contemporâneos enquanto uma ferramenta “que permite, pela primeira vez, a comunicação de muitos com muitos, num momento escolhido, em escala global” (Castells, 2003, p.8).

Resultado de avanços na computação e nas telecomunicações oriundos da microeletrônica, a internet é tema de uma miríade de textos, manifestos e estudos, muitas vezes otimistas frente a sua potencialidade comunicativa, informativa, organizativa e, supostamente, libertadora.

Especialmente a partir de meados dos anos 2000, com o advento da apelidada “Web 2.0”, que proporcionou aos usuários/as atuar, também, como produtores de conteúdo, a internet ganhou certo véu de idealismo, sendo comumente associada a maiores possibilidades de educação formal, de participação política e de reivindicação por direitos.

Envolto em divergências, o termo “Web 2.0” foi gestado na área do marketing para designar a segunda geração de serviços via internet que se distinguiria profundamente da primeira (a “Web 1.0”) ao ter como principal característica a existência interfaces colaborativas facilitadoras de interações. Grosso modo, isso significa que se tornou mais fácil manusear a rede. A consequência desse processo foi a proliferação de materiais amadores, como textos, vídeos e imagens que expressam e emitem opiniões, a partir de um processo incessante de alimentação e consumo de informações sobre si e os outros.

Há, entretanto, uma visão quase diametralmente oposta sobre a rede, segundo a qual a internet, em sua faceta colaborativa atual, implicaria possibilidades inéditas de dominação e subjugação, uma vez que informações e/ou dados privados dos cidadãos/usuários seriam sistematicamente coletados e requisitados tanto para vigilância governamental quanto por empresas e outros grupos interessados, por exemplo, em publicidades dirigidas, colocando em risco liberdades civis, políticas e sociais fundamentais para a vida democrática (Couldry & Meijas, 2018; Harcourt, 2015; Assange at al, 2013).

Diante das novidades informacionais, empresas e governos monitorariam as interações dos usuários da rede visando manipulações, perseguições e controles político-ideológicos de dissidentes, algo que implicaria o declínio geral da privacidade e da resistência política. Nesse cenário, dados pessoais e informações particulares se tornaram importante moeda de troca entre grupos desigualmente localizados em relação ao poder. Tal processo, embora quase invisível para a maior parte dos usuários da rede, acarretaria grandes riscos, uma vez que a internet estaria povoada de tocaias, emboscadas e ciladas.

Concordantes acerca do efeito acachapante da rede sobre a vida social, esses dois tropos costumam organizar as principais constatações sobre a internet. De um lado, potencialidades inéditas de acesso a informações, demandas por direitos e reivindicações das mais variadas liberdades; de outro, possibilidades extraordinárias de controle, dominação e vigilância. Não obstante concorrentes, essas duas interpretações não são essencialmente excludentes, podendo coexistir em entendimentos mais ambivalentes. Comum a ambos os diagnósticos, entretanto, seria a impossibilidade de sair incólume dessas transformações.

O aparecimento de ansiedades sociais decorrentes do surgimento e da popularização de novas tecnologias ou mídias não é privilégio dos tempos da internet. Preocupações com possíveis resultados nocivos da incorporação de adventos tecnológico-midiáticos povoam o imaginário humano há mais tempo do que ousamos conceber. De modo geral, a tecnologia, como bem nos lembra Marilyn Strathern, é vista como “ubíqua, ameaçadora, potencializadora, empoderadora, o presságio de uma nova era” (1979, p. 298).

No intuito de desestabilizar algumas concepções demasiadamente pessimistas em relação a novidades tecnológicas, os antropólogos Miller & Sinanan (2014) trazem à baila o pavor do filósofo grego Sócrates ante o advento da escrita, considerada por ele uma forma artificial e arriscada de externalizar algo próprio à mente humana, danificando permanentemente a capacidade de construção e armazenamento de memórias.

Em sua obra sobre o desenvolvimento histórico da escrita e da leitura, o filósofo estadunidense Walter J. Ong (1984) também ilustrou receios semelhantes, hoje talvez risíveis, ocasionados por outras invenções. Nos tempos de Gutemberg, alguns acreditavam que a criação da prensa eclipsaria a sapiência humana em detrimento de produtos de máquinas. Medos ainda mais curiosos tiveram alguns contemporâneos ao surgimento da máquina de costura, que recearam que o movimento repetitivo das pernas pudesse afetar nocivamente a sexualidade das mulheres. O mesmo aconteceu com o rádio, o cinema e a televisão. Mais recentemente, foi a vez do “walkman4” – aparelho portátil de reprodução de áudio, popularizado nos anos 1980 – levar a pecha de artefato maléfico e antissocial, posto que isolaria seus usuários em “bolhas sonoras” (boyd, 2014).

Podemos constatar, então, que diagnósticos assustados frente a inovações tecnológicas ou midiáticas são mais lugar-comum do que incialmente suspeitamos. De certa forma, mudanças costumam ser interpretadas como uma adição problemática, artificial e potencialmente desagregadora. Ao criar possibilidades de relações supostamente menos autênticas, as tecnologias nos tornariam “menos humanos”. Não à toa, com frequência, encontramos elogios nostálgicos a uma idealização de um mundo essencialmente analógico, em tese mais genuinamente valioso.

Tão pessimista quanto comum é a retórica de que, frente aos avanços tecnológicos do mundo digital, os sujeitos estariam se isolando e se fragmentando, condenados a estarem permanentemente integrados, mas essencialmente solitários, vivenciando vínculos sociais e afetivos cada vez mais frágeis. Em campo, não foi isso que encontrei. Pelo contrário, percebi a internet como “potencializadora” de relações e “aproximadora” de sujeitos e relações.

Na redação deste texto, afastei-me, analítica e criticamente, tanto de retóricas distópicas quanto apologéticas, isto é, de posições que identificam nas novas tecnologias de informação e comunicação ora a panaceia de diversos problemas contemporâneos ora a origem de novas e poderosas formas de ruínas sociais. A experiência desta pesquisa me levou a considerar as tecnologias a partir de contrastes ambivalentes que não se resolvem nem se anulam, mas complexificam a realidade social.

O antropólogo britânico Daniel Miller acredita que essas lamentações saudosas trariam consigo um pressuposto sociológico contestável na forma de uma concepção simplista do humano, que fetichizaria a interação face a face como experiência mais “natural e desejável” de sociabilidade. Miller postula que a Antropologia, por definição, deveria rejeitar quaisquer ideais fundantes de comunicação e interação humana.

Em diversos de seus trabalhos, alguns escritos em coautoria com outros/as pesquisadores/as, Miller argumenta que hierarquizar interações sociais em termos da ausência ou presença de formas de mediação não levaria em conta que a própria comunicação corporal/verbal constituiria uma forma de mediação. Sua “theory of attainment” (“teoria do alcance5”) defende que a mediação seja entendida como uma condição humana:

Na antropologia não existe algo como puro imediatismo humano; interagir face a face é tão culturalmente infligido quanto comunicações digitalmente mediadas, (…) nós falhamos em ver a natureza estruturada da interação face a face porque essas estruturas funcionam de maneira tão eficaz (2012, p. 12)6.

Assim sendo, os habitantes dos tempos da internet não seriam mais mediados do que aqueles que os precederam historicamente, ou seja, a ideia de que duas pessoas conversando “face a face” estariam menos mediadas do que outras duas que discutiriam seu relacionamento no Facebook seria, segundo Miller, essencialmente equivocada.

Na mesma direção, a pesquisadora estadunidense danah boyd argumenta que superestimar mudanças advindas de inovações envolveria assumir o risco de incorrer em “determinismos tecnológicos” (boyd, 2014)7, que não levariam em conta que tecnologias e mídias se investem de usos, sentidos e significados na medida em que são construídas,  manuseadas e modificadas por grupos humanos.

Horst & Miller (2015) parecem concordar com boyd, ao assumirem que o “digital”8, abstração que organiza interações sociais no mundo das novas tecnologias comunicacionais, seria essencialmente dialético, portanto não incompatível ou intrinsecamente diferente do analógico ou real: “o digital, assim como toda a cultura material, é mais do que um substrato; está constituindo-se como parte do que nos faz humanos” (2015, p. 92).

Constitutivo do que se convencionou chamar de “virtual”, o “digital”, por conseguinte, não seria hierarquicamente inferior ao suposto real. Da mesma forma, interações não seriam menos complexas ou genuínas posto que tecnologicamente mediadas. Em argumentações como as de Miller e seus colaboradores ou de danah boyd, os sentidos das tecnologias e mídias digitais não estariam em confronto com o humano, mas em relações de continuidade e ambivalência. Sujeitos transformam a tecnologia, dela se apropriando, modificando-a e com ela experimentando. Ao mesmo tempo, são por ela transformados.

Aproximando-me das constatações de Miller e boyd, as experiências que vivenciei na condução desta pesquisa parecem apontar para a necessidade de entender as interações tecnologicamente mediadas pela internet como tão genuínas e agregadoras quanto importantes. O “virtual” nada teria de menos real, uma vez que os usos efetivos do “digital” podem ser muito mais diversos do que aqueles inicialmente imaginados. Na internet, articulam-se relações, faz-se a manutenção de vínculos bem como são trocados afetos e segredos. Os efeitos das experiências vivenciadas na rede repercutem de maneira impactante nas mais variadas esferas da vida.

Por esse motivo, sou econômica ao utilizar o termo “virtual”, posto que este muitas vezes parece designar algo da esfera de uma outra realidade, paralela, menos material, portanto, menos verdadeira. Os vazamentos de nudes, entrelaçando comportamentos, expectativas e moralidades entrecortadas por normas de gênero e sexualidade, são situações em que o “virtual” é violentamente materializável, fazendo com que mulheres e meninas tenham suas vidas, qualidades e valores questionados, dentro e fora da rede, com consequências duras e, por vezes, trágicas.

Concordemos, então, que toda comunicação humana seja mediada, como postulam Miller e seus associados. Isso não significa, em absoluto, que as inteirações mediadas pelas novas tecnologias digitais não seriam diferentes daquelas mediadas por outras formas de sociabilidade conformadas ou não por tecnologias. Mudanças tecnológicas ou midiáticas impactam e transformam profundamente o tecido social, formatando, guiando e modulando significados, interações e relações de poder.

As interações digitalmente conformadas, embora carreguem continuidades de outras formas de interação, também são modeladas por funcionalidades, circunstâncias e constrangimentos específicos dos instrumentos que realizam essa mediação. Sujeitos são criativos e subversivos nos manuseios dessas plataformas. No entanto, também dialogam com limitações e predeterminações das próprias interfaces. Por isso, acredito ser indispensável uma abordagem que leve em consideração tanto continuidades quanto rupturas, constrangimentos e transgressões. As novas tecnologias digitais formatam e orientam, mas não determinam significados e comportamentos.

Nesta pesquisa, são relevantes as diferentes formas de manuseio e interação entre sujeitos e tecnologias, entendidas como provenientes de uma complexa mistura entre arquitetura e possibilidades estruturais, de um lado, e manuseios criativos e contextos sociais e políticos, de outro. Filio-me, portanto, a abordagens sócio construtivistas sobre mídias e tecnologias9, prestando especial atenção para as maneiras simultâneas pelas quais as pessoas tanto produzem e vivenciam a tecnologia, em suas potencialidades, limitações e constrangimentos, quanto são por ela produzidos e transformados.

3.“Meu celular faz parte de mim”

Quando a conheci, a família Rodrigues correspondia a uma maioria estatística brasileira do início dos anos 2010: seus celulares, ainda que modelos mais baratos e menos potentes em funcionalidades do que os últimos lançamentos do mercado, eram estimadas aquisições bem como única fonte de acesso à internet e a câmeras fotográficas10. Lúcia, Márcia, Teresa e Tainá tinham pacotes pré-pagos de telefonia móvel com conexão 3G e discutiam frequentemente quais operadoras ofereceriam o melhor serviço de dados.

A popularização do celular em seu modelo smartphone teve impactos significativos na sociedade brasileira. Habituou-se a considerar o ano de 2013 como o momento chave da difusão desses aparelhos, marcando o momento histórico em que suas vendas dobraram no país. Em 2018, constatou-se haver mais celulares do que cidadãos, contando-se a existência de 230 milhões de smartphones11.

Os smartphones distinguem-se dos primeiros telefones celulares por trazerem consigo complexos sistemas operacionais em linguagem de programação – semelhantes aos computadores – que podem executar programas, funções e aplicativos bem como permitir a conexão à rede, seja por wi-fi12 ou por pacotes de internet móvel (3G, 4G13…). O uso dos smartphones está simbioticamente associado à popularização das redes sociais.

Atualmente, as possibilidades de acessos à internet são múltiplas, envolvendo tanto dispositivos tecnicamente bastante distintos (como computadores, celulares, tablets14, televisões, videogames e, até mesmo, relógios) quanto formas e velocidades de conexão consideravelmente sortidas. A combinação entre esses fatores tem alta influência sobre a qualidade da internet disponível, e os arranjos dependem de possibilidades financeiras, uma vez que tanto os aparelhos conectáveis à rede quanto os serviços de internet são custosos. Usuários de internet, nunca é bastante lembrar, também são consumidores.

Numericamente, a maior parte dos brasileiros tem acesso à rede via smartphones simples e baratos, planos de dados limitados e com sinais ruins ou instáveis15. Segundo a pesquisa “TIC Domicílios” 16, de 2017, 89 % dos usuários brasileiros acessam a internet através de seus celulares e quase metade da população conectada (40%) têm no aparelho a única possibilidade de acesso. A dependência do celular torna-se ainda maior entre usuários de camadas mais baixas, em especial, nos segmentos nomeados pelo mercado como classes D e E17.

Operadoras de telefonia oferecem serviços de conexão móvel à internet, comumente chamados de “pacotes de dados”. Em conexões de banda-larga ou alta velocidade, não costuma haver limite para quantidade de “dados” utilizáveis pelo usuário. Por outro lado, em planos pré-pagos (e alguns pós-pagos) há uma franquia diária, isto é, uma delimitação do uso do plano de dados por dia. Isso limita a utilização de aplicativos em tarefas que consomem mais dados, como assistir vídeos ou realizar ligações, sendo necessário o gerenciamento desse pacote.

No caso da família Rodrigues, os aplicativos utilizados com maior frequência estavam diretamente associados às limitações dos diferentes aparelhos e pacotes de dados que elas compravam. Todas viviam à caça de serviços em que o uso do Facebook e do WhatsApp fossem ilimitados, sendo comuns diferentes estratégias de poupança de dados, em especial o desligamento frequente do acesso móvel quando o celular não estivesse em uso. O YouTube, para chateação de Tainá, era extremamente raro no Valo Velho, visto que a plataforma seria “muito pesada” e “comedora de pacote”. O mesmo acontecia com o Instagram.

Como já mencionado, o aparelho celular em seu modelo smartphone costuma extrapolar os limites das tecnologias comunicacionais. Para além de sua função de dispositivo “conectável”, nele também são armazenadas imagens, músicas, anotações. O celular passa a ser agenda, diário, espelho, relógio, álbum de recordações, material escolar. Não raramente ouvi formulações e notei comportamentos que entendiam essas máquinas como uma extensão dos corpos. “Eu durmo com meu celular, como e faço tudo com ele, só não tomo banho porque estraga”, contou-me Teresa. “A melhor parte de acordar é me reencontrar com meu celular, ele é uma parte de mim”, contou Tainá.

Em pesquisa sobre usos de plataformas digitais na busca de parcerias amorosas/afetivas/sexuais entre mulheres brasileiras heterossexuais “de classe média” com idades entre 35 e 48 anos, a antropóloga Iara Beleli (2015) também encontrou narrativas semelhantes: “o celular – muitas vezes atado, ou confundido mesmo com o corpo – não é apenas uma tecnologia, mas é parte da constituição do corpo, de modo que sua ausência pode ser lida como a perda de algo nesse processo” (Beleli, 2015, p. 95). Em determinada situação, uma de suas interlocutoras chegou a associar estar sem o celular à nudez. Também ouvi relatos parecidos.

Beleli aponta que as possibilidades trazidas pelas tecnologias digitais – em especial, o celular – criaram possibilidades de comunicação antes inimagináveis, mediando relações sociais, acelerando o tempo e reconfigurando noções de espaço. O celular permite acesso a certa mobilidade sem restrições de horário ou distâncias, proporcionando outras formas de corporificação. Incorporado ao corpo, sons e vibrações do aparelho geram prazeres sinestésicos assim como novas percepções de vida e realidade.

Assimilado à vida cotidiana e emaranhado em afetos e emoções, os celulares smartphones, a partir de diversos e curiosos manuseios, tencionam percepções comuns sobre as relações sujeito-máquina. Investidos em sentimentos e significados, esses aparelhos são descritos e vivenciados de maneira naturalizada, íntima e intensa por suas usuárias/proprietárias. Exemplos de “tecnologias afetivas” (Lasen, 2004), os celulares do século XXI mediam experiências individuais e coletivas, entre pessoas e entre sujeitos consigo mesmos.

A socióloga Claudia Sciré (2014), em sua pesquisa de doutoramento, dedicou-se à investigação dos impactos materiais, simbólicos e sociais da popularização dos celulares na sociedade brasileira a partir do início dos anos 201018. Analisando complexos processos de “apropriação”, Sciré prestou especial atenção à pluralidade de manuseios e práticas que enredavam sujeitos e máquinas: de que formas eram adquiridos, utilizados e incorporados às rotinas pessoais através de procedimentos inventivos de dissonância e negociação.

Responsáveis por inserir sujeitos em uma “cadeia de conectividade”, os celulares contemporâneos tornaram-se tanto imprescindíveis para a vida quanto definidores de formas de ser e estar no mundo (Sciré, 2016). Muito embora Sciré tenha conduzido sua pesquisa, em grande parte, durante um período em que a tecnologia das mensagens SMS era a principal forma de interação via aparelhos celulares, a pesquisadora também pôde notar as transformações advindas da capilarização de plataformas de mensagens instantâneas, como o Messenger e, posteriormente, o WhatsApp.

Sciré observou, em seu extenso trabalho de campo, que esses aparelhos estavam sendo utilizados essencialmente para comunicação interpessoal, fosse no fomento de novas relações ou na manutenção de vínculos já existentes. Fundamentais na procura por empregos, em interações entre amigos e familiares ou na organização de encontros sociais, os celulares estabelecer-se-iam como exigência prática da vida contemporânea.

Dotados de câmeras acopladas ao seu “hardware”, os smartphones permitem o registro e o envio imediatos de imagens pela internet ou via bluetooth. Com isso, ganham contornos, comenta Sciré, de “diário pessoal”, espécie de recipiente organizador de memórias, emoções e relações. O armazenamento digital, diz a pesquisadora, funcionaria como uma externalização das lembranças, possibilitando que sujeitos pensem em conteúdos registrados tanto em termos de circulação quanto para usos individuais de recordação. Nem tudo que se fotografa pelo celular é feito para ser enviado. Associados à memória, alguns registros são guardados para si.

Registro e troca de imagens, popularização de redes sociais e comunicação quase ininterrupta seriam, para a pesquisadora, definidores da conexão como propiciadora fundamental das relações sociais contemporâneas. Os aparelhos celulares converteram-se nos principais responsáveis pelo espraiamento de certa percepção coletivamente compartilhada de intensa proximidade/intimidade a despeito de distâncias físicas e geográficas, trazendo consigo a expansão do que Sciré chama de “lógica do compartilhamento”: entendimento social de que, a partir da simultaneidade digital, estaríamos “compartilhando” vivências, ou melhor, “vivendo juntos”.

Tendo em vista os conteúdos que os aparelhos “guardam” bem como as interações que eles permitem, com demasiada frequência, usuários/proprietários de smartphones descrevem-se em termos de imprescindibilidade e dependência e relação aos aparelhos. Sciré considera relevante, inclusive, a metáfora comumente adotada para ilustrar que esses aparelhos estariam sem bateria, “meu celular morreu”, como reveladora dos sentimentos que os dispositivos despertam19.

Voltando à família Rodrigues e aos conflitos ocasionados por Tainá desejar o celular caro, Márcia me confidenciou: “não sei por que ela quer um celular desses, o pai dela vigia tudo o que ela faz na internet”. Lúcia e Márcia são irmãs de Antônio, marido de Teresa e pai de Tainá, portanto tias da menina. Descrito como ciumento, impulsivo e violento, Antônio tinha o hábito de controlar o uso do celular tanto da esposa quanto da filha, já havendo inclusive quebrado e escondido aparelhos bem como instalado programas que mostravam a localização e as conversas que elas tiveram nos aplicativos.

Antônio era o principal motivo pelo qual eu fora convidada por Lúcia a conhecer sua família. O irmão estava no centro de várias “brigas de celular” com a filha e a esposa. Teresa, inclusive, havia acabado de encontrar dois vídeos de “sacanagem” no celular do marido. Ela conhecia as duas remetentes, uma vizinha, “casada e safada”, e uma adolescente de 15 anos (“novinha”). Quando ela o indagou sobre os vídeos, Antônio “virou uma onça” e quebrou todos os celulares da casa, o dele próprio, o da esposa e o da filha. Tainá ganhara provisoriamente um aparelho usado do primo, filho de Lúcia, mas Antônio estava irredutível quanto à proibição. A regra só foi retirada depois do aniversário da menina.

Não poder utilizar o celular era vivido como um grande sofrimento tanto por Teresa quanto por Tainá: “é uma tortura”. Uma forma de impedi-las não somente de se comunicarem utilizando o Facebook e o WhatsApp, mas de registrar imagens e se entreterem com músicas e vídeos. Para ambas, o celular conectado à rede era uma forma barata e acessível de lazer, talvez a mais importante.

Ser proibida de usar o celular era uma censura que trazia considerável infelicidade. Ter o aparelho quebrado, nas palavras de ambas, era como ter uma parte de si agredida. A violência direcionada ao celular era entendida como uma violação à própria proprietária. “Meu celular é uma das coisas mais importantes da minha vida”, confessou-me Teresa, “quando a gente é pobre, a gente não pode fazer muita coisa porque não tem dinheiro. Eu acho que o celular fica ainda mais importante”. Sua cunhada Márcia, em muitas de suas falas, também enfatizava não só a importância prática quanto a centralidade afetiva do celular, descrito como uma parte de si: “se eu saio sem meu celular, mais do que sem bolsa, eu me sinto só”.

Inspirada por essas revelações em tons confessionais e pelas análises de outras pesquisadoras, passei a prestar atenção a como em tantas situações em campo tanto minhas interlocutoras quanto eu segurávamos nossos aparelhos como espécie de continuidades das nossas mãos, de nossas rotinas, de nossas memórias e, por que não, de nossas vidas. Foi via redes sociais (quase sempre nos celulares) que muitas de minhas interlocutoras e eu nos apresentamos, marcamos encontros e circulamos informações. Quando juntas presencialmente, utilizávamos os aparelhos para registrar fotos, fazer anotações e trocar conteúdos. Durante as conversas, os celulares estavam sempre na mesa, fosse o meu com o gravador ligado, fosse o delas, para me mostrar as fotos que tiravam, as mensagens que recebiam ou os nudes tirados/vazados.

Não raras foram as vezes em que o aparelho foi manuseado para invocar recordações (“deixa eu olhar quando isso aconteceu”), ilustrar situações (“olha, aqui é a minha casa) ou “provar” acontecidos (eu tenho print, eu tenho como dizer que aconteceu”). Em “rolos de câmera”20, nudes e selfies me eram apresentados. Pelo celular, jornalistas e advogadas me mostravam notícias, casos e processos. Da mesma maneira, interlocutoras me interpelavam e eram por mim interpeladas. O celular é o protagonista de minha tese de doutorado (Lins, 2019).

Na feitura desta pesquisa, o celular apareceu tão entremeado ao cotidiano e às noções de si que seus significados tencionavam o dualismo “organismo x máquina”. Donna Haraway (1989), em um célebre ensaio, lançando mão, ironicamente, da figura científico-fictícia do “ciborgue”, criatura formada por fusões entre máquina e corpo; mistura de realidade social e ficção; e metáfora política de um mundo marcado pelo binômio ciência e tecnologia, onde as fronteiras entre humano e animal, físico e não-físico mostram-se fluídas. Para Haraway, os humanos produzidos pela sociedade capitalista pós-industrial científica e tecnológica seriam seres híbridos, posto que permanentemente inseridos em mediações tecnológicas. Portanto, “ciborgues”. Nesta mesma direção, minhas interlocutoras-ciborgues me lembram que o corpo não apenas composto por substrato biológico.

Dentro desse contexto sociotécnico, o celular smartphone configura-se como um item pessoal por excelência, ligado à construção da identidade daquele/a que o possui. A personalização da imagem de fundo, o acesso via senha bem como o entendimento do dos conteúdos guardados no aparelho como algo altamente privado são indicadores desses nexos. A existência da uma senha de acesso para os aparelhos, por exemplo, gerava inúmeros conflitos entre os membros da família Rodrigues, uma vez que Antônio exigia vigiar os celulares da esposa e da filha. Essas tensões lançavam luz sobre relações de poder e controle (entre casais, bem como entre pais e filhas) originadas e mediadas pelos celulares enquanto dispositivos extremamente pessoais.

O desejo de manter o próprio aparelho longe de olhos que bisbilhotam indicam que o celular ganha contornos de um repositório de materializações consideradas íntimas:  as conversas salvas nos aplicativos, as mensagens enviadas e recebidas ou mesmo o rolo da câmera, espécie de arquivo fotográfico de momentos e informações que se quer guardar e salvar. Tal qual automóvel, espécie de símbolo-mor do século XX, o celular se aproximaria cada vez mais do papel de estandarte dos novos tempos. Propriedade privada, individual e móvel, capaz de articular complexos sentidos e interações sociais e subjetivas.

4.“O mais importante é a câmera21

Tão ou mais importante que a conectividade à internet dos celulares smartphones são suas câmeras digitais acopladas, de tal modo que o item é considerado por alguns pesquisadores como o principal definidor desse “novo híbrido tecnológico” (Colombo & Scifo, 2005).

Anterior tanto à criação quanto à popularização dos smartphones, entretanto, o registro de imagens digitais foi disseminado, nas últimas décadas, pela invenção das câmeras digitais, dispositivos que codificam vídeos e fotografias de forma eletrônica, dispensando a utilização de um “filme” (ou película fotossensível), bem como o procedimento de revelação e ampliação física do material, barateando, com isso, consideravelmente a prática da fotografia e da gravação de vídeos.

Embora populares desde o início dos anos 2000, as câmeras digitais não permitem a mesma conectividade e pluralidade de manuseios oriundos da difusão dos celulares smartphones conectados a diversas plataformas interativas na internet. Foi somente com a criação das câmeras acopladas aos celulares, inovações bastante recentes, que as imagens digitais ganharam novas velocidades, potências e alcances. As câmeras digitais acopladas a celulares geraram novos sentidos e significados dados às imagens, ao ato de registrá-las, bem como a sua circulação.

A câmera frontal, também chamada de câmera de selfie é um recurso disponibilizado por smartphones e outros dispositivos móveis (como tablets) que permitem registros de imagem em autorretrato, possibilitando que o sujeito “fotografante” visualize previamente a imagem a ser capturada na própria tela. O recurso foi introduzido em 2003 por aparelhos lançados pelas empresas Sony e Motorola22.

De acordo com a socióloga francesa Carole Anne Rivière (2006), as câmeras de celulares teriam nos colocado diante de uma nova forma de comunicação “escrita-visual”, em que a fotografia passou a ocupar o centro das relações interpessoais, gerando nos sujeitos novas sensações de convivência e “realidade compartilhada”. Em seu potencial comunicativo através de imagens simultaneamente trocadas, salienta Rivière, o celular representaria a possibilidade da presença do Outro.

Para Gómez & Meyer (2012), as novas tecnologias de produção, processamento e distribuição/exibição de imagens fotográficas, ao criarem possibilidades inéditas de interações, seriam responsáveis pelo surgimento de novos “regimes visuais”. Em seu trabalho, os autores salientam que o iPhone seria responsável por uma profunda mudança nos sentidos e significados da fotografia.

O desenvolvimento e a popularização da fotografia digital tornaram a prática de registrar imagens um processo menos caro e difícil, aumentando a gama de situações, sujeitos e temas considerados fotografáveis. Historicamente, a fotografia sempre esteve ligada a certo ar de oficialidade. Em posse de um celular smartphone, todavia, pode-se registrar uma quantidade significativa de imagens, sem grandes preocupações com custos e recursos. Por isso, Rivière acredita que a função social da fotografia deixou de se limitar a momentos solenes (públicos ou familiares), aproximando-se de conteúdos mais fugidios e cotidianos23.

Miller et al (2016) identificam na popularização das selfies – autorretratos individuais ou coletivos, um dos símbolos-mor das fotografias digitalmente conformadas e circuladas – a generalização da descontração no ato de fotografar, prática trazida para o dia a dia pelas novas plataformas digitais.  Para os pesquisadores, as selfies, que costumam receber acusações críticas ao serem entendidas como exemplos de individualização e narcisismo exacerbados, seriam também formas de sociabilidade plurais, ao articular vínculos, afetos, memórias e outras vivências socialmente compartilhadas.

Analisando a disseminação de celulares smartphones na Itália, a pesquisadora Barbara Scifo (2004) afirma que o registro de imagens com câmeras de celular teria engendrado uma nova forma de vivenciar e experimentar a vida. Os contatos possibilitados pelos smartphones teriam como consequência o aumento exponencial de interações face a face. Para Scifo, as fotografias digitais articuladas a plataformas de comunicação via internet implicariam em transformações estéticas, relacionais e de significados, remodelando a geografia situacional da vida social.

De forma semelhante à Sciré e a Rivière, a pesquisadora italiana percebeu na articulação entre conectividade através de celulares e troca de imagens a disseminação de uma noção social segundo a qual, por meio do constante diálogo e da circulação de conteúdos, tornar-se-ia possível, ainda que em espacialidades distintas, ter a sensação de vivenciar conjuntamente situações. Para seus sujeitos de pesquisa, essa convivência não seria menos real, genuína ou importante. Muito pelo contrário. Celulares smartphones propiciariam novas formas de “estar junto”.

Scifo também atesta o papel do aparelho celular em aproximar e fortalecer relações de proximidade, por alimentar laços sentimentais e gerar códigos de experiência próprios. Nos diversos manuseios e sentidos articulados por jovens italianos, o dispositivo encarna seu potencial de produtor e mantenedor de vínculos e de intimidade. O envio e recebimento de imagens é uma interação social que invoca noções de lealdade e confiança. A pesquisadora chega a comentar, inclusive, sobre certa prática comum a jovens rapazes de registrar e trocar fotos de mulheres e meninas, uma experiência voyeurística e competitiva integral à sociabilidade masculina, em seus termos.

Em pesquisa etnográfica conduzida na ilha caribenha de Trinidad acerca dos impactos sociais da propagação do uso das “webcams” – câmeras de vídeo que captam e transferem imagens para o computador, espécie de antepassadas das câmeras de smartphones – nas comunicações pessoais, Miller & Sinanan (2014) também associam as interações imagéticas simultâneas à manutenção de relações de proximidade para além de fronteiras físicas e geográficas. Impulsionadas pelo surgimento e pela difusão de plataformas como o Skype e, posteriormente, o Facetime, as “webcams” seriam cruciais para a conservação de vínculos sociais, permitindo contato constante entre pessoas espacialmente distanciadas.

Os pesquisadores chamam a atenção, também, para certa particularidade das “webcams”: o fato de serem operadas pelas próprias pessoas registradas. Tal elemento impactaria os significados de visibilidade. Frente às câmeras de seus computadores, as pessoas tornam-se mais cientes de sua própria imagem, podendo, pela primeira vez, acessar a forma pela qual são vistos por seus interlocutores.

Historicamente, contemplar a própria imagem constituiu-se um privilégio de grupos abastados que podiam encomendar representações artísticas em que sua identidade corporal era lida pelo olhar de outros, a saber, artistas. Parte fundamental do “olhar para si”, a difusão do espelho, por exemplo, data somente do final do século XIX (Corbin, 1987). Inicialmente, aliás, o objeto esteve restrito aos homens. Banhada em pudores moralistas, a apreciação do próprio corpo, quando realizada por mulheres, mesmo que apenas no reflexo da água de suas banheiras, era considerado um indesejável estímulo erótico24.

Também oitocentista, o desenvolvimento e a difusão da fotografia estão intrinsecamente atrelados à tomada de consciência de si, sendo a afixação da própria imagem uma forma de demonstração da existência. Segundo o historiador francês Alain Corbin (1987), a popularização da fotografia – sobretudo de retratos pessoais – atestaria o desejo humano de assentar e deter a própria imagem, um processo tanto de construção de autoestima quanto de possessão simbólica de outra pessoa.

Voltando à Miller & Sinanan, as “webcams”, bem como suas descendentes câmeras frontais de celulares (podemos supor), viraram a lente para o sujeito “fotografante”, possibilitando uma ampliação considerável de registros de autorretratos. Essa “rotinização da observação de si” gerou “autoconsciência da própria imagem” em escalas inéditas. Em posse de uma “webcam” ou de uma câmera de celular (especialmente em seu modelo frontal), o sujeito deixa de ser olhado/fotografado/registrado para olhar/fotografar/registrar a si.

Tal mudança de vetor não é banal. Entre minhas interlocutoras, quando falávamos de selfies e nudes, estar no “comando” do registro de si revestia-se de grande importância, inclusive, como exercício de poder e prazer. Entendia-se, com frequência, que fotografar-se implicaria em ser visto – por si próprio ou por outros. Quando em posso de câmeras frontais, poder-se-ia definir a observação de si em seus próprios termos. “Eu comecei a fazer ‘nude’ porque era melhor eu mesma escolher o meu ângulo e a melhor foto do que a foto que alguém tirou de mim sem eu ver, pelo menos essa fui eu quem escolheu, eu que fiz”, revelou-me Ane, personagem central em minha tese de doutorado.

5.Redes Sociais: complicando as noções de público(s) e intimidade

Tão comuns quanto os celulares smartphones, são os diagnósticos preocupados que a popularização desses dispositivos esteja gerando sujeitos deprimidos, ansiosos, antissociais e viciados em tecnologia. Os temores são ainda mais prementes em se tratando de análises consternadas com os supostos impactos das tecnologias em gerações mais jovens, os ditos “nativos digitais”25. Atrela-se aos smartphones, em todo seu potencial interativo, um aumento nas tendências ao isolamento e à fragmentação, uma vez que a vida “real” seria preterida frente aos atrativos da existência “virtual”.

Um bom exemplo de pessimismo tecnológico analítico é a perspectiva da psicanalista estadunidense Sherry Turkle (2011), uma das precursoras dos estudos sobre a inserção social da tecnologia e seus impactos nas subjetividades. Seu livro “Alone together”, em tradução própria, “juntos sozinhos”, explora as relações entre tecnologia, conectividade e a solidão.  Para ela, as novas tecnologias digitais permitiriam uma vida totalmente conectada à internet. Em contrapartida, sob a ilusão da convivência virtual, as pessoas estariam cada vez mais solitárias.

Em maio de 2019, a renomada revista de divulgação científica “Scientific American” lançou um número especial dedicado às crescentes ansiedades sociais direcionadas aos smartphones. Reunindo textos de diferentes áreas, a publicação visa dispersar certo pânico coletivo originado por uma percepção difusa de que o uso constante de novas tecnologias traria impactos negativos irreversíveis para a mente (e o cérebro) dos usuários de celulares.

No âmbito das ciências sociais, chama-se a atenção, com frequência, para manuseios desses dispositivos tecnológicos que, ao invés de dispersar, avolumariam interações, reconfigurando noções de convivência, proximidade e intimidade. Muitos estudos apontam como central nesse panorama a popularização das redes sociais, plataformas que estimulariam o uso da internet, do celular e das imagens como facilitadores, propiciadores e mantenedores de vínculos sociais.

As redes sociais fazem parte de um complexo e vasto ecossistema tecnológico comunicacional e informacional gestado no início dos anos 2000. Combinando inovações técnicas e/ou digitais, redes sociais compreendem diversas plataformas que permitem aos usuários/participantes produzir e circular conteúdos, trazendo à baila transformações nas lógicas de colaboração, compartilhamento e socialização.

Existe certo senso comum de que brasileiros gostam, mais do que outras nacionalidades, de se comunicar. Sendo a internet e as redes sociais um terreno fértil para essa atividade, não se faz espantoso descobrir que o Brasil ocupa, por exemplo, o terceiro lugar em tempo “conectado à internet”26. De forma semelhante, os brasileiros estabeleceram-se como a segunda população mais ativa em redes sociais no mundo, sendo a terceira maior no Facebook (Spyer, 2018).

Plataformas de redes sociais aparecem e desaparecem em velocidades atrozes.  Tomemos, por exemplo, o caso do Orkut. Lançado em 2004, a plataforma tornou-se uma febre entre brasileiros27, mas, com a mesma rapidez com que foi incorporado, foi abandonado após a migração em massa de usuários para o Facebook, por volta de 2009 (Parreiras, 2008)28. Não obstante, as transformações e questões inauguradas ou afloradas pelas redes sociais tendem a permanecer. Como se expressar nesses espaços; que modos de interação e circulação de conteúdos eles engendram; quais seus impactos para a privacidade e a intimidade bem como quais suas consequências políticas, econômicas, morais e sociais são questões centrais na vida digitalmente atravessada.

danah boyd (2014) reconhece a popularidade de narrativas que superestimam os perigos da internet em termos de dissociação entre a vida “conectada” e o mundo considerado mais real, aquele “offline”. Ao mesmo tempo, em sua pesquisa sobre o impacto das novas tecnologias de informação na vida de adolescentes nos Estados Unidos, boyd afirma que os usos cotidianos da internet não são vividos como trânsitos entre espaços e contextos distintos ou excludentes. Muito pelo contrário. Os pesquisados de boyd utilizam a tecnologia, e em especial as redes sociais, como mais um lugar de interação e de manutenção de relacionamentos muitas vezes já existentes.

boyd (2014) aponta que, nos primórdios da internet, as pessoas movimentavam-se em torno de interesses comuns: em “chats”, por exemplo, em que desconhecidos habitavam comunidades online arquitetadas por tópicos e assuntos de interesse. Por volta de 2003, o cenário começou a se modificar. Novas plataformas transformaram o ecossistema comunicacional, fazendo da “amizade” o elemento organizador das principais atividades na rede, isto é, as interações digitais passaram a articular pessoas que se conhecem ou que são membros de redes relacionais em comum. Ao criarem novas possibilidades de interação, tais plataformas não determinam ou modelam situações, mas propiciam certas condições e dinâmicas específicas.

Deparei-me, em campo, com um cenário bastante semelhante ao de boyd. Entre minhas interlocutoras, com a exceção óbvia de hackers e ativistas digitais, a palavra internet parecia um sinônimo de utilização da rede para interações consideradas tão íntimas e valiosas como quaisquer outras entre conhecidos, familiares e amigos, ou seja, como ferramenta fundamental na manutenção de relações interpessoais. Compartilhar – termo êmico de muitas plataformas digitais para descrever circulação, envio e recebimento de conteúdos – indicava a tônica dos principais manuseios da rede29.

Outra novidade desse cenário seria a centralidade das imagens. Nas redes sociais, trocam-se freneticamente fotos, memes, emojis bem como montagens com mensagens religiosas e inspiracionais. Para Miller et al (2016), postar em redes sociais seria uma atividade essencialmente visual, que faz com que o texto, muitas vezes, torne-se periférico. Menos dependente da linguagem escrita, o WhatsApp, por exemplo, entre algumas de minhas interlocutoras, era percebido como um facilitador inédito para certos relacionamentos30: “dá para falar com os parentes do interior de Minas que não sabem ler. Meu pai, por exemplo, não consegue escrever o nome, mas já aprendeu a me enviar áudio”, explicou-me Lúcia.

Há uma interessante produção acadêmica, teórica e conceitual a respeito das redes sociais. Muitos pesquisadores utilizam o conceito analítico de “mídias digitais” ou “mídias sociais” para descrever esse universo de possibilidades comunicativas e interativas via internet (Spyer, 2018; Miller et all, 2016; Parreiras, 2015; Beleli, 2015, 2012; Baym, 2010).

No artigo escrito em coautoria com Nicole Ellison (2007), “Social Network Sites: definition, history, and scholarship”, hoje considerado um dos marcos na produção acadêmica sobre o assunto, danah boyd descreve os “sites de redes sociais” como sistemas que permitem, simultaneamente, o desenvolvimento de uma “persona” a partir de perfis, comentários impulsionadores de interações e da possibilidade de “publicação” de conteúdos produzidos pelo usuário. Para elas, “mídias sociais” incluiriam “sites de redes sociais” (Facebook, Instagram) bem como outras plataformas online, como páginas de circulação de vídeos (Youtube, Vimeo), plataformas de blog e microblogging (Twitter) e aplicativos de mensagens instantâneas (WhatsApp).

Optei, no meu trabalho, por utilizar o termo rede social de forma a me aproximar do uso cotidiano e êmico nos contextos em que interagi. Nesta pesquisa, rede social comportava tanto o Facebook quanto o WhatsApp, apelidados carinhosamente de feice e zap. O uso do termo, muitas vezes confundido com a própria internet, descrevia um ambiente de conectividade e comunicação incessantes, marcados também por um caráter “polimidiático” (Miller et al, 2016) de constante interação entre as diferentes plataformas existentes, utilizadas em conjunto e diálogo.

Segundo boyd, as “mídias sociais” trariam consigo características que as distinguiriam de espaços físicos de interação, uma vez que sua arquitetura favoreceria a prevalência de alguns elementos, em especial, a durabilidade de conteúdos amplamente acessíveis a públicos amplos e não imediatamente discerníveis, tão facilmente replicados quanto encontráveis, sendo necessários esforços específicos para a garantia de certa privacidade31.

Permeada por audiências não explícitas ou controláveis, assim como por uma falta de clareza quanto à delimitação de fronteiras espaciais, sociais e temporais, a arquitetura dessas plataformas privilegiaria a ausência de controle das informações despejadas na rede. A consequência seria a colocação de informações em “networked publics” (“públicos em rede” ou “públicos conectados”), marcados pela diversidade de alcances estruturados, intencionalmente ou não, pela combinação entre as funcionalidades dessas plataformas e os manuseios de usuários (“público por padrão e privado via esforço”, nos termos de boyd32).

Pode-se depreender daí que as redes sociais seriam feitas para serem “esparramáveis”, sendo disseminação, escala e velocidade suas grandes definidoras. Sua estruturação favorece a rápida e fácil circulação de conteúdos por vastos públicos sem grandes controles. Basta apenas um clique. Tal característica é tão poderosa quanto problemática. Se, de um lado, informações podem ser trocadas, grupos e demandas políticas podem ser organizadas, por outro, com a mesma agilidade, dão-se fluxos de boatos, fofocas, rumores, ataques à reputação, algo que minhas interlocutoras costumavam chamar de tribunal da internet.

Habituou-se a se atrelarem as novas tecnologias digitais a uma espécie de esfera pública, lugar de mobilização e organização política por onde circulam discursos, posicionamentos, opiniões e interesses. Em muitos contextos, inclusive referente aos debates sobre nudes e vazamentos, a internet realmente funciona como uma “esfera pública ampliada” (Ramos, 2013), espaço institucionalizado de interação discursiva que comporta múltiplas disputas, posições contrárias, ambíguas, contrastantes e em embate, dando voz a demandas e grupos diversos.

Não são raras, também, abordagens que associam a popularização das novas tecnologias digitais a um cenário pouco otimista no que tangeria o resguardo de informações e situações tanto íntimas quanto privadas. Intimidade e privacidade, muitas vezes confundidas e confundíveis, são apresentadas e entendidas como espaços que deveriam ser protegidos e apartados da vida pública, posto que sigilosos ou até mesmo secretos33.

Em sua análise das transformações oriundas da popularização da internet, a socióloga argentina radicada no Brasil Paula Sibilia (2009) mapeia um cenário obscuro em que a “espetacularização do eu” possibilitada pela “escrita digital de si” (práticas confessionais, instantâneas e multimídias) implicariam constante derramamento de informações pessoais como modo legítimo de habitar e interagir com o mundo. Nesse contexto, a “exposição da intimidade” seria condição sine qua non da vida em meio a uma paisagem tecnologicamente mediada.

Para Sibilia, a internet teria transformado de tal modo a intimidade, que o mundo contemporâneo talvez fosse mais bem compreendido a partir da ideia de “extimidade”. “Triunfo do exibicionismo”, a “extimidade” descreveria práticas e comportamentos sociais de usuários da rede que, sem muitos pudores, estariam dispostos a “expor” publicamente desde rotinas tão corriqueiras quanto desimportantes a segredos delicados, que não deveriam estar disponíveis para a coletividade.

Detemo-nos um pouco sobre os sentidos de “público” em tempos de redes sociais. O pressuposto por trás do termo envolve a percepção de que os/as usuários/as da rede teriam seu alcance comunicacional exponenciado, passando a ter instrumentos para falar (ou escrever) e ser ouvido por um público muito maior do que aquele possibilitado por interações face a face. A internet, aqui, é apresentada e pensada enquanto aumento de alcance e propagação de falas.  Não à toa, os termos utilizados para descrever a colocação de conteúdos em muitas dessas plataformas são publicar e o neologismo anglófilo postar. À primeira vista, tais palavras aludem a tornar público. Não obstante, colocar informações na rede seria, de fato, torná-las públicas?

Miller et al (2016) entendem por “mídias sociais” mais do que meros meios de comunicação, mas verdadeiros espaços de socialização que permitem escalas e combinações plurais de públicos e privacidade. Para articular seu argumento, os autores da pesquisa coletiva apresentam um breve histórico simplificado da comunicação pré-internet. Antes das “mídias sociais”, sujeitos contariam com formas de comunicação essencialmente privadas (contato físico, telefones, cartas) ou invariavelmente públicas (rádio, jornal, televisão). O surgimento das tecnologias digitais complicou esse cenário ao criar espaços de socialização em que público e privado podem ser escalonáveis, via complexos arranjos de escolha de audiências.

Desse modo, interações em “mídias sociais” não seriam o mesmo que projeções públicas nem corresponderiam exatamente a conversas privadas. Navegar por esse público complexamente mediado requer novos mecanismos de controle e aptidões, exigindo que pessoas conciliem fronteiras borradas, audiências em múltiplos níveis, atributos individuais e as especificidades dos sistemas, assim como os contextos em que são utilizados.

Os autores chamam de “sociabilidades escalonáveis”, esses trânsitos por escalas de comunicação que permitem lidar com diferentes públicos, inclusive dentro de uma mesma plataforma: “as mesmas mídias sociais podem ser usadas para criar grupos pequenos e discretos, com interesses particulares e, também, para reivindicar e criar um amplo consenso em torno de questões morais fundamentais” (Miller et al, 2016, p.224).

Plataformas são usadas e escolhidos em termos de públicos específicos que podem alcançar diferentes escalas, tamanhos e graus de privacidade. Ao “borrar audiências”, redes sociais complexificam a natureza da vida pública. A natureza daquilo que é público online é definida pela arquitetura e funcionalidade das plataformas atreladas ao manuseio dado a elas por sujeitos sociais, a partir da combinação entre configurações de “privacidade” e acordos mútuos entre pessoas sobre o que fazer com determinados conteúdos. Assim sendo, não é porque algo está na internet que ele deixa de ser delicado, sigiloso ou secreto.

No concernente a relações interpessoais, muito embora as interações sejam mediadas por plataformas, empresas, algoritmos e tantos outros complicadores, na prática, as pessoas entendem ser possível utilizar a internet em situações e contextos de privacidade e amorosidade em que se revelam informações como instrumento de manutenção de intimidade34.

Nas pesquisas de Miller e sua equipe, sujeitos escolhiam determinados aplicativos para relações mais íntimas, fazendo do compartilhamento um símbolo de confiança. Exemplo disso era a prática encontrada entre jovens britânicos de envio de selfies feias (“uglies”), imagens que articulavam complexos arranjos de intimidade, humor e confiança entre quem as enviava e as recebia. Em jogo, estava a expectativa de que as imagens não seriam encaminhadas para fora do grupo que as trocou. Desse modo, “a intimidade nas comunicações das mídias sociais não é pré-determinada, mas sim aplicada de forma seletiva e intencional” (Miller et al, 2016, p. 87).

Os pesquisadores identificam no WhatsApp um importante complicador desse ambiente, uma vez que seus usos permitiram muita intimidade entre as partes em comunicação através da negociação acerca de circulações de conteúdos. Em minha experiência em campo, o WhatsApp também teve especial importância como facilitador, produtor e mantenedor de vínculos e sentidos de intimidade. Relações e expectativas enredam-se em tramas de emoções, confiança e lealdade em meio a uma intimidade mediada, constantemente negociada, reafirmada ou rompida por meio da díade revelar-controlar.

Possibilitando a troca de informações não necessariamente “publicamente visíveis”, o WhatsApp propicia interações entendidas como sigilosas e afetuosas (entre elas, inclusive, a troca de nudes), situações em que envio, recebimento e compartilhamento são investidos em sentidos de intimidade e confiança35. Nesse contexto, o perigo inerente à internet não adviria de interesses de empresas e governas escusos ou de predeterminações arquitetônicas de plataformas digitais, mas justamente de condutas mal-intencionadas perpetradas por aqueles em quem se confia. Em se tratado de nudes e vazamentos, o inimigo/risco, muitas vezes, pode estar bem mais próximo.

Dito de outro modo, as redes sociais não excluem, necessariamente, a intimidade e a privacidade. boyd (2011) também acredita que, em tempos de redes sociais, a privacidade e intimidade estariam em amplo processo de reconfiguração, já que as pessoas buscariam incessantemente novas estratégias de significação e negociação, desafiando a capacidade de controle sobre informações reveladas36.

Em minha pesquisa, encontrei justamente isso: uma intimidade digitalmente mediada por aplicativos, dispositivos e aparelhos, em textos, imagens e áudios, sendo o WhastApp o principal aliado para interações e afetos considerados íntimos.

Ao permitir que as relações se tornem cada vez mais contínuas, persistentes e pessoais, as “mídias sociais” também abrem possibilidades inéditas de provocação e humilhação, tornando intimidade e intimidação duas faces da mesma moeda. Tanto extensão da sociabilidade física quanto investida em potencialidades de alcance e velocidade, as “mídias sociais” facilitam e complicam tensões e atritos. Em um ambiente facilmente esparramável, o risco de reações e comentários hostis adquire novas facetas, alcances e velocidades.

Uma consequência das interações mediadas pelas tecnologias digitais é que a internet deixa rastros, resíduos e restos na forma de “cookies”, “históricos”, prints, registros.  Prints, por exemplo, podem transformar uma troca íntima em algo duradouro e circulável para fora do controle, conferindo escala e velocidade inimagináveis, permitindo que algo seja disseminado de forma descontextualizada e assincrônica bem como perpetuando indefinidamente interações momentâneas. O print é um dos maiores exemplos da ambivalência da internet: rápido, fugidio, instantâneo, pessoal, mas paradoxalmente duradouro e potencialmente público.

Minha pesquisa mostra que a internet permite vários públicos, entre eles, alguns bastante íntimos e pessoais. Na mesma medida, ela possibilita derramamentos em escalas e alcances inéditos. No entanto, como abordei em minha tese, a audiência potencialmente problemática dos vazamentos de nudes costuma ser bastante específica. O medo em relação ao esparramar da intimidade é muito relacionado aos efeitos morais que estas disseminações podem trazer para a reputação das mulheres, em especial entre os homens de seus círculos familiares e amorosos. Na internet, pessoas são usuárias, produtoras, consumidoras, ativistas e cidadãs, mas também filhas, irmãs e namoradas.

Referências

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Beatriz Accioly Lins bia.accioly.lins@gmail.com

Doutora e mestra em Antropologia Social. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Sobre Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP).